“A minha filha nasceu cá e mandei-a embora por haver muita resistência aos imigrantes.” Iqbal tem 33 anos, vive em Portugal há três e esta manhã chorou a contar a sua história a André Ventura, que acusa de se aproveitar politicamente dos imigrantes sem apresentar soluções. Num português esforçado e em que faltam as palavras, o imigrante do Bangladesh assegurou ter todos os papéis “direitinhos” e criticou o Chega por apenas “reclamar” e não apresentar propostas que resolvam os problemas. Enquanto contava aos jornalistas o que tem sentido na pele, gritaram-lhe “Viva Portugal” e “volta para o teu país”.
Poucos minutos antes do arranque da arruada no centro da Póvoa de Varzim, um homem vestido com uma t-shirt azul, calças de ganga e chinelos levantou preocupações junto da comitiva do Chega. Trocaram-se impressões e alertas. Quando Ventura chegou, o homem aproximou-se: “Só quero fazer uma pergunta. Só uma pergunta.” Conseguiu chegar perto do líder do Chega que, ao contrário do que é habitual mesmo com imigrantes, se mostrou mais preocupado, provavelmente pelo alerta prévio. Remeteu a tal pergunta para o final das declarações aos jornalistas e um dos seguranças afastou-o da bolha.
Pelas movimentações era notório que o homem continuava a provocar inquietação e, ironicamente, acaba por ser uma pessoa do Chega a levá-lo até André Ventura. Um segurança ainda tentou impedir, mas a mulher tranquilizou-o: “Ele só quer fazer uma pergunta.” Está demasiado perto de Ventura e Tânger para ser retirado dali sem causar alarido — e conseguiu o que queria: falar com o presidente do Chega.
Para começo de conversa, Iqbal fez questão de assegurar que está legal em Portugal, que tem visto e “tudo direitinho”. Contou que trabalha numa estufa, mas dedicou-se essencialmente a dar o exemplo dos pescadores, recorrendo aos números de indonésios que saem em barcos para pescar (diz que numa empresa que tem 10 pessoas, oito são da Indonésia). “Não quero reclamar, mas muitos portugueses não querem trabalhar no mar”, explicou, o que Ventura nem contraria, mas atira as responsabilidades para a empresa, ao dizer que “o Estado não pode estar a dar casas a outras pessoas quando não há para os nossos”.
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O líder do Chega trocou uns segundos de conversa com Iqbal, que lhe contou que tinha retirado a filha de Portugal quando sentiu que havia muitas pessoas contra a presença dos imigrantes. “Vi muitas pessoas a reclamar”, diz enquanto não sustém as lágrimas e remata que “há pessoas boas e pessoas más em todo o lado, não é tudo igual”.
A mulher que o levou até Ventura vai traduzindo e atirando as culpas para longe do Chega: “O André [Ventura] não está a governar, não pode fazer nada para já. Mas não vai esquecer.” Esquecendo ou não, foi tempo da caravana seguir e Iqbal ficar para trás. Antes ainda houve tempo para o presidente do Chega argumentar: “Tem de cumprir as regras, você e todos.”
Iqbal ficou ali, rodeado de jornalistas, a justificar que também ele “não gosta de quem vem sem vistos ou documentos”, ainda que não veja o Chega a dar soluções: “Ele está sempre a reclamar e a protestar, mas não diz como resolver, só quer política… Eles dizem que vão fazer uma lei muito boa, dizem ‘[queremos] tudo na lei e ninguém fora da lei’ porque só quer fazer política… porque é a terceira [força política] e quer ficar maior.”
Sabe que o Chega tem crescido, que se tornou a terceira força política a nível nacional e sente-se “triste” e “chateado” pelo discurso de ódio crescente na rua. Sugere que o partido é racista com os imigrantes e culpa o Chega pela necessidade de retirar a filha deste ambiente.
Enquanto falava, os atos acabaram por lhe dar razão: uma mulher que seguia na comitiva do Chega e ficou para trás a assistir não teve qualquer pudor, junto aos microfones, em reiterar “se estás mal, volta para o teu país”, enquanto um jovem, que ouviu Iqbal por alguns minutos, gritou: “Viva Portugal. Parem de lhe dar palco. Ainda existem portugueses neste país.” Não travou Iqbal, mas serviu de exemplo aos dias em que diz ser alvo de insultos racistas e dedos apontados. “Vocês viram o que o senhor fez, muitas pessoas agora zangam-se”, justifica.
Sem filha em Portugal, Iqbal e a mulher continuam por cá, mas reconhece que “não vai chorar para cá ficar”, principalmente por ter “tudo direitinho” e saber que contribui. Mais do que isso, sente que tem a “vida em risco” e até que há quem o queira “matar”. A resistência que o levou a preferir ficar longe da filha de 14 meses é a mesma que continua a sentir nas ruas portuguesas.