Enviado especial do Observador em Paris, França

Muda a modalidade, mantém-se o cenário. Ali, onde antes estavam quatro tapetes de esgrima, encontra-se agora o recinto onde já começaram as várias categorias do taekwondo – que desta vez não tem portugueses em prova como aconteceu por exemplo em Tóquio mas que conta com o campeão Rui Bragança na equipa de voluntários destinada a este venue. Nem tudo é igual entre o cenário idílico do Grand Palais, sobretudo pelo ambiente apesar de tudo menos ruidoso do que tínhamos visto na semana passada. Quando um francês está em competição, aí parece que tudo vai cair; quando são outros atletas, exceção feita a norte-americanos que andam por todo o lado, aplaudem-se os fins dos parciais, ouve-se um bruuuuuáááá em alguns pontos, por aí. Aliás, desde que chegámos nos combates de manhã, a maior ovação foi mesmo para quem perdeu.

Emmanuella Atora, do Gabão, defrontava a chinesa Zongshi Luo quando colocou mal o pé, levantou-se e foi percebendo que algo não estava bem. Tentou, não aguentou. Foi assistida, acabou por cair mesmo de vez. Em clara desvantagem no marcador, a africana tentava dar o melhor de si mas a lesão não a deixava fazer mais. Fim do combate, grande ovação para a derrotada, limpeza do piso, novo combate de seguida nesta manhã non stop. Os atletas entram após serem anunciados quando os treinadores já estão nos seus locais, há um cumprimento entre atletas que vão também saudar os técnicos contrários, novo combate. Sempre a andar, com as paragens a serem mais frequentes pela forma como de quando em vez os treinadores pedem o VAR, curvando-se e entregando um cartão ao árbitro para que os mesmo analise a situação e o número de pontos.

O que poucos pareciam saber ali era que estava prestes a começar a campanha da agora atleta búlgara Kimia Alizadeh contra a iraniana e campeã do mundo de -53kg Nahid Kiani. O que poucos pareciam saber ali era que a grande história do dia estava neste combate de -57kg ainda a contar para os oitavos da categoria.

Acabada de sagrar-se campeã da Europa na primeira grande prova internacional em que combateu com as cores da Bulgária, Kimia, de 26 anos, iria fazer os terceiros Jogos Olímpicos pela terceira equipa diferente. Começou em 2016 no Rio de Janeiro pelo Irão, país onde nasceu, tendo passado a ser a primeira mulher iraniana medalhada na prova na competição com um bronze e esteve em Tóquio-2020 a representar a formação dos refugiados apesar de ter recebido um convite da Alemanha, onde ficou após deixar o país. Agora começava uma nova fase. “Agora, com nacionalidade búlgara, tudo é mais fácil para mim. Estou a enfrentar coisas novas e sinto que tenho mais responsabilidade e estou a gostar muito disso”, comentara à Reuters. Era quase como se conseguisse encontrar um pouco de sossego depois de tempos tão conturbados.

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Nascida em Karaj, com família originária do Azerbaijão, Kimia Alizadeh, que até 2016 era tratada de forma errada por Zenoorin, entrou cedo na modalidade e foi começando a ter um palmarés prometedor com a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos da Juventude e a de prata nos Mundiais, já depois do bronze nos Jogos Olímpicos. Depois, fartou-se. Assumiu que estava demasiado saturada daquilo que via no Irão, deixou o país e fez mais tarde questão de explicar essa mesma atitude, tornando-se uma persona non grata ao mesmo tempo que era escolhida pela BBC como uma das mais inspiradoras e influenciadoras do mundo em 2019.

“Sou uma das milhões de mulheres oprimidas com quem as pessoas que mandaram a brincar durante anos. Olhavam para mim da maneira que queriam. Vestia aquilo que eles dissessem. Todas as vezes em que sentenciavam que tinha de ficar em casa, eu respeitava. Quando viam que estava em forma, exploravam-me. Não quero estar sentada à mesa com a hipocrisia, as mentiras e a injustiça. Este é um regime de corrupção e de mentiras”, escreveu na sua conta oficial do Instagram. Por alguma razão ela é conhecida como tsunami pelo que tinha a vindo a fazer mas agora toda a sua vida tinha mudado como se um furação tivesse passado. “Fui a uma prova na China e falei muito com atletas de Taiwan e Coreia do Sul, também escrevi muito no meu diário. Percebi que a distância até à liberdade é demasiado grande. Não estávamos na prisão mas era como estivéssemos. Os homens podiam andar, nós tínhamos de andar com segurança”, contou.

A execução do lutador Navid Akfari por ter estado em manifestações contra o governo ou a forma como a árbitra Shoreh Bayat foi ameaçada por surgir num torneio sem hijab foram mais dois exemplos que fizeram com que nem olhasse para trás, entre o refúgio nos Países Baixos e o estatuto de refugiada na Alemanha. Em 2020 ficou à beira das medalhas mas foi por figuras como Kimia Alizadeh que não só a equipa refugiada foi ganhando outra expressão como houve cada vez mais coragem para que outros deixassem o Irão em busca de melhores condições. No caso da atleta, a situação limite foi quando numa prova internacional foi proibida de defrontar uma israelita, o que fez com que colocasse um ponto final definitivo na ligação ao Irão.

“Ser vista como um exemplo é difícil porque sentes imensa responsabilidade em tudo o que fazes. Sobretudo para as pessoas mais novas, todos olham para ti a ver o que fazes e a dizer que querem seguir também este caminho. Eu penso sempre em fazer apenas o que está correto e aquilo que para mim é o correto passa por mostrar-lhes qual é o caminho certo. Claro que é complicado quando deixas o teu país e se enfrenta uma série de questões como uma nova língua, uma nova cultura, novas pessoas. É difícil mas é um novo início, quis perseguir os meus objetivos”, acrescentara antes dessa estreia pela Bulgária nos Jogos de Paris.

No entanto, e logo a abrir, quis o sorteio que a agora búlgara defrontasse logo uma iraniana, Nahid Kiani. “É um sentimento estranho porque já em Tóquio, quando lutei contra o Irão, tinha à minha frente a minha mulher amiga, a minha colega de quarto. É um sentimento estranho que não consigo descrever em palavras o que significa”, projetara. Essa era a história: a primeira mulher a jogar pela Bulgária no taekwondo começava de novo a caminhada contra a pessoa mais próxima que teve na modalidade. Partilharam competições, viagens, sucessos, derrotas, o quarto em todos os estágios. Agora voltavam a ser apenas rivais, sendo que, em 2020, a TV estatal iraniana falava de Kimia como “sem abrigo” sem nunca referir o seu nome e dizendo apenas que fazia parte de uma equipa de refugiados. A história ganhava mais um novo capítulo.

Apesar da proximidade, o ambiente era tenso no combate contra uma Nahid Kiani que, depois do título mundial conquistado na modalidade, foi usada como imagem em publicidades com o cognome de “Mulher da sua terra, o Irão”. Também teve os seus atos de “rebeldia”, colocando fotos sem hijab no Instagram dizendo “mulher, vida, liberdade: o meu silêncio não é sinal de satisfação”. Até isso foi “esquecido”, ainda mais depois do resultado de hoje: apesar de ter começado a perder frente a Kimia Alizadeh por 10-7, ganhou o segundo parcial por 6-5 e conseguiu um fantástico triunfo após um empate a sete a dois segundos do final.

A história tinha mudado mas houve um ponto em comum entre ambas quando chegaram à zona mista. A atleta que perdeu, Kimia Alizadeh, passou pela zona mista a recusar falar com todos os jornalistas e nem mesmo quando o responsáveis de comunicação do Comité da Bulgária a chamou tocando no braço para que pudesse falar com a imprensa local a atleta parou. Já no caso de Nahid Kiani, foi chamada à pressa pela sua treinadora para que viesse receber os parabéns de um membro governativo e do presidente do Comité antes de passar pelo espaço de quem tem direitos de transmissão, responder a duas perguntas de uma cadeia do Irão e de seguida ser novamente puxada pela treinadora para ir embora, também porque teria mais provas para disputar e que no final lhe iriam permitir chegar à medalha de prata. Aqui, houve mesmo empate.