Título: Caminhos de Ferro: Geografia, património e turismo
Autor: Paulo Carvalho
Editor: Imprensa da Universidade de Coimbra
Páginas: 218
Preço: 12,50 € 


A Imprensa da Universidade de Coimbra surpreende muito positivamente ao incluir no seu catálogo este livro sobre temática que se diria actual no nosso país, se ele não tivesse já sete décadas de desatenção a esta vertente tão sugestiva da mobilidade de ócio e lazer. Dificilmente poderia ter sido diferente, de facto — e a lacuna bibliográfica que Paulo Carvalho se propôs obliterar é boa prova disso. O desmantelamento da rede ferroviária do Alto Minho ao Algarve que o fontismo criou, a destruição de velhas locomotivas e carruagens (transporte urbano incluído, como em Braga, vendido para sucata; v. p. 65), a degradação de estações e apeadeiros, a falta duma museologia bem instituída capaz de conservar ou replicar artefactos patrimoniais de qualidade — e a ausência de outros circuitos monumentais além do rio Douro —, nenhuma outra consequência poderiam ter senão a incapacidade portuguesa de aproveitar o que noutros países e continentes representa há muito um assinalável valor económico e cultural — na linguagem de hoje: um activo estratégico —, ainda que de alcance variável, seguindo as políticas, a dimensão e o espírito das nações. O termo ‘turismo ferroviário’ data de 1950-60 (p. 89), e a rede de ferrovias turísticas da Alemanha alcança actualmente 1300 km, a da França 1200 km, a da Áustria 1100 km. Na Inglaterra mobiliza ainda hoje qualquer coisa como 1000 locomotivas a vapor (p. 23).

A linha férrea foi historicamente determinante no desenvolvimento do turismo e do ócio, em estâncias termais e de montanhas e nas zonas balneárias marítimas, a partir de 1870. Em 1907, por exemplo, a Sociedade de Propaganda de Portugal publicava um «Mapa Excursionista de Portugal» (p. 159). Ia-se de comboio de Tua a Bragança, de Ponte de Sôr a Marvão, de Évora a Borba. Passámos de 2344 km de vias férreas em 1895 para 2527 km «em exploração» no ano passado, havendo ainda c. 1100 km — quase metade, portanto — ao abandono ou quase. Não surpreende, por isso, que a fotografia da capa deste Caminhos de Ferro: geografia, património e turismo seja a dum comboio parado numa estação… na Escócia.

A União Europeia instituiu 2021 como «ano europeu da ferrovia», para que se torne reconhecida como «um dos meios de transporte mais sustentáveis, inovadores e seguros» (p. 17), mas em países como o nosso, em que aos erros do passado se junta a visão curta do presente, tão lúcido propósito pouco efeito prático tem ou poderá ter, enquanto a consciência ambiental se mantiver tão reduzida como agora. E seremos loucos ou ingénuos retintos se pensarmos que o interesse crescente de estrangeiros por turismo ferroviário no nosso país, ou a benignidade ambiental do transporte ferroviário, forçarão uma mudança de agulha quanto à preferência portuguesa pela mobilidade automóvel, e quanto mais exuberante melhor.

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O capítulo «Turismo ferroviário em Portugal» traça em linhas muito largas a história recente — duas décadas apenas — da «estruturação de produtos de turismo ferroviário» pela CP. O primeiro, inaugurado em 1998, foi o Comboio Histórico do Douro, com locomotiva a vapor, cinco carruagens de madeira restauradas e 254 assentos, para viagens de 36,5 km entre Régua e Tua — um sucesso três anos depois garantido pela inscrição do Alto Douro Vinhateiro como património mundial. Durante uma década, de Junho a Outubro e apenas aos sábados e domingos, a média anual foi de 4200 viajantes, 60 % dos quais portugueses. Desde Julho de 2017 há também, aos sábados, em ocasiões festivas e basta, o Comboio Histórico do Vouga a Vapor, 37 km de caminho entre Aveiro e Macinhata do Vouga, com música e cantares tradicionais a bordo e uma visita ao pequeno museu ferroviário da localidade de destino e ao centro histórico de Águeda, cujo município colabora neste projecto. A procura tem sido exponencial: 1639 passageiros em 2019, 3900 em 2022, com taxas de ocupação acima dos 84% (p. 167).

Em Dezembro de 2013 entrou em cena o Comboio Presidencial — e que azul! —, com viagem inaugural de Santa Apolónia ao Entroncamento, após quatro anos de restauro de seis carruagens «de máximo conforto» dos outrora Trens Reais nas oficinas do Museu Nacional Ferroviário, ali instalado. Só três anos depois, em 2016, teve início a sua utilização comercial por privados em eventos especiais «para o segmento superior» (p. 167), com dez viagens entre São Bento e Pinhão promovidas por um restaurante algarvio com duas estrelas Michelin. Desde 2017 — mas interrompido pela covid-19 — outro concessionário preferiu o período primaveril e a época das vindimas dourienses, com refeição a bordo a cargo de chefs consagrados, portugueses e estrangeiros: The Presidential Train Gourmet Experience, assim mesmo, «uma experiência cultural, gastronómica e turística única no mundo», de acordo com a publicidade. Em 2022, uma viagem de 10 h com prova de vinhos na Quinta do Vesúvio, animação e almoço gourmet no comboio custou 750 € por pessoa. A cada «experiência» (sic) o seu preço.

Também em 2022 decorreu a primeira viagem comercial do Comboio Vintage do Tejo, com quase 500 lugares disponíveis para um trajecto que começa em Santa Apolónia e termina em Castelo Branco. São 40 € por adulto. «Tratando-se de um passeio turístico em composição ferroviária de inegável valor histórico, acredita-se — diz Paulo Carvalho — que o sucesso desta iniciativa possa induzir interesse pela organização de outras viagens do mesmo género, embora a dificuldade de disponibilização de composições vintage da parte da CP constitua um entrave ao desenvolvimento da oferta, quer na linha da Beira Baixa, quer em outras linhas de reconhecido potencial para atrair os entusiastas do turismo ferroviário» (p. 174). Não é este o único entrave: construída pela EDP, a barragem da Foz Tua submergiu em 2017 parte da via férrea da linha do Douro até perto de Brunheda, e desde essa altura uma réplica dum comboio a vapor com quatro carruagens aguarda a recuperação de 16 km da linha férrea, contratada em 2019 — e ainda por concluir… — para repor a mobilidade quotidiana e turística naquele percurso, com operador e manutenção do canal ferroviário dum futuro Tua Express, a 25 km/h… (foto, p. 175).

Caso para dizer que, tal como no escandaloso caso da Linha da Beira Alta, a «paixão pela ferrovia» de certos governantes nunca teve pernas para andar…

Num conceito alargado da mobilidade sobre carris ou de cremalheira, que inclui eléctricos, ascensores e funiculares, não podia deixar de ser referido o eléctrico de Sintra à Praia das Maçãs — e que entre 1930 e 1953 chegava às Azenhas do Mar. Inaugurado em 1904, alcançando Colares, foi suspenso em meados dos anos 70, recuperado de 1996 a 2004 em 11 dos 14,6 km que chegou a ter (sai agora da Estefânia, para a Praia) e faz diariamente, do fim de Março ao fim de Outubro, apenas três viagens em cada sentido aos fins de semana e feriados, e seis nos dias úteis, apesar de a sua frota de serviço aparentemente permitir mais. Cada trajecto dura 45 minutos, custa 5 € aos adultos (eram 3 € em 2019) — mas está excluído de qualquer assinatura mensal de transporte.

O funicular do Bom Jesus de Braga (1882), o primeiro movido a contrapeso de água na Península Ibérica, percorre 274 m em breves minutos e ganhou ainda maior fama em 1991, quando o Santuário foi classificado como Património Mundial da UNESCO, e o Santuário de Santa Luzia, em Viana do Castelo, também é servido desde 1923 por um funicular com 650 m de extensão, reabilitado em 2007; devem, todavia, ser considerados mais parte do turismo religioso que de qualquer outro, no caso como ocasional turismo de património ferroviário (em Viana há mesmo um passe mensal, a 30 €). Pelo seu lado, o Ascensor da Nazaré (1889), o Funicular dos Guindais, entre a Batalha e a Ribeira do Porto (1891, reconstruído em 2004), e o Funicular de Viseu, 400 m entre a Sé e a Feira de São Mateus (2009), são equipamentos que, a troco de algumas moedas, poupam provas de esforço e fôlego a um elevado número de peregrinos, visitantes ou locais, e quase nada representam como «turismo ferroviário» em si mesmo; são amabilidades locais, digamos assim, como o comboio da Praia do Barril, em Tavira (1 km, em 8 minutos, 1,5 €), o da Costa da Caparica (9 km até à Fonte da Telha), desactivado em 2022, depois de 62 anos a pisar nervosamente aqueles carris na areia, algumas linhas de eléctricos antigos na cidade do Porto ou os ascensores — tão grafitados!! — do Lavra, Glória e Bica em Lisboa. Mais relevantes, inclusive como grandes obras de engenharia, são sem dúvida o Elevador de Santa Justa, justamente apreciado também pelo panorama sobre a capital e o Tejo que proporciona, e o Caminho de Ferro do Monte, que de 1912 a 1943 ligou a cidade do Funchal à freguesia do Monte, a 850 m de altitude, num trajecto ascendente de quase 4 km, iniciado em 1893-94 — e de que hoje persiste apenas um centro interpretativo, criado em 2021 (v. pp. 51-53).

Paulo Carvalho faz um bom resumo das mais famosas linhas ferroviárias de turismo histórico, incluindo os comboios de luxo — o mais perto de nós é o Transcantábrico, entre Santiago de Compostela / Ferrol e Bilbao / San Sebastián, criado em 1983 (oito dias, quarto duplo a 18 500 €). Muito procurado, o Royal Scotsman desdobra-se desde 1985 em roteiros de 3 a 8 dias — inclui visitas a destilarias!! — pelas Highlands, de Julho a Outubro, com preços que ascendem a 12 500 libras (p. 97). A viagem no Blue Train (três dias e 1600 km entre Pretoria e Capetown) custa pelo menos c. 1600 € por cabeça. No Canadá, há um sortido de opções, uma delas um percurso de 5 dias nas Montanhas Rochosas em carruagens de 1916 e 1931 restauradas, por 9300 € ou mais. No Peru, o Belmond Andean Explorer proporciona viagens de 3 dias e duas noites entre Cusco e Arequipa (700 km a uma altitude de c. 3850 m) por c. 3500 €. Na Índia, o Maharajas’ Express oferece quatro opções de roteiro, a mais dispendiosa, a de 7000 €, por sete dias de passeio em cabine de luxo. Ainda assim, a Society of International Railway Travelers — uma agência de viagens — considera que «12 dos 25 melhores comboios de luxo do mundo, em 2022, estão na Europa» (p. 107).

Há depois os comboios ditos panorâmicos, como o Glacier Express suíço — 291 km, 91 túneis, 291 pontes e 7-8 h entre St. Moritz e Zermatt — ou a Linha de Flåm norueguesa, 20 km por uma hora numa das linhas ferroviárias mais íngremes do mundo, com um declive de 55 graus em três-quatros do percurso entre fiordes, cascatas, rios e glaciares até Myrdal, onde conecta com comboios que ligam Bergen e Oslo. Na Argentina, os aficionados de comboios em montanha podem experimentar o Tren a las Nubes, uma viagem de uma hora e 44 km (ida e volta) a c. 4200 m de altitude, e na Nova Zelândia o Northern Explorer perfaz 680 km entre Auckand e Wellington pelo planalto central, Espiral Raurimu, montanhas geladas de Ruapehu e parque nacional de Tongariro, em mais uma «espectacular viagem» de comboio panorâmico (p. 116). A Snowdown Mountain Railway, que percorre 7 km no parque nacional que lhe dá nome no País de Gales, é considerada «uma das viagens ferroviárias mais cénicas do mundo» (p. 138), e alterna composições diesel modernas e composições originais ou recuperadas (Heritage Steam). Uma das «mais impressionantes do mundo» é a Nilgiri Mountain Railway, em Tamil Nadu (Sul da Índia), reconhecida pela UNESCO em 1999: 46 km, 16 túneis, 250 pontes e 208 curvas percorridos em 5 h no percurso ascendente, de 326 até 2203 m de altitude.

A oferta parece ilimitada… deixando literalmente a perder de vista as mais que modestas opções portuguesas, próprias dum país pequeno, sem revolução industrial e desenvolvimento comparáveis, que não teve e nunca poderia ter tido grandes gares ferroviárias convertíveis em museus de arte moderna, como o Quai d’Orsay, em Paris (1977), ou da língua portuguesa, como a Estação da Luz, em São Paulo (2006, depois 2021), nem museus ferroviários tão impactantes quanto o de Kyoto (2016), que ocupa 30 000 m2 e exibe 50 veículos, «dos quais sobressai a maior e mais bem preservada colecção de locomotivas a vapor do Japão, além de comboios eléctricos e comboios que operam em linhas de alta velocidade» (p. 40).

Até a atenção comercial dada à reposição dum pequeno número de viaturas circulantes em meios urbanos não é mais do que a importação de receitas bem sucedidas em metrópoles como Istambul (desde a década de 1990; v. pp. 144-45), Hong Kong, Zurique ou Genebra, a maior parte das vezes com programas e bilhetéria articulados com museus da especialidade (na Alemanha, há mais de uma dezena deles; v. pp. 149-50). Pretender que uma suposta Rede Nacional de Museus Ferroviários, ou quaisquer museus de eléctricos, tenham expressão em termos europeus é um delírio que o trabalho de Paulo Carvalho põe claramente de lado, pela largueza de elementos recolhidos neste livro, ainda que deixe perceber que não teve condições de conferir presencialmente — e aceita-se — muita da informação obtida pela internet. Sabe, em todo o caso, muito bem que o Museu dos Transportes Urbanos de Coimbra, criado em 1995, descarrilou por completo em 2011, e de nada serviu proposta de 2015 para a reintrodução de duas linhas na cidade, a Beira Rio e a Baixa-Alta (pp. 63-64).

A transferência dos direitos de utilização do domínio público ferroviário, do Estado para os municípios, particularmente em regiões despovoadas e depauperadas abriu portas e janelas à multiplicação de subconcessões para a exploração, por 25 anos, de estações ferroviárias e apeadeiros, convertidos para restauração ou alojamento ocasional. Ao mesmo tempo, 450 km de 14 «ecopistas» (green ways) em duas décadas financiadas pela UE (pp. 70, 74) — mas sem estatísticas de uso, como é habitual — vieram inviabilizar duma vez por todas a recuperação duma rede nacional de transporte ferroviário que seja geograficamente coerente com a desejada ou desejável descarbonização e aproveite as infra-estruturas existentes. O programa «Revive Natureza», criado por um decreto-lei de 25 de Outubro de 2019, insistindo na massiva «turistização» do território, também lança à exploração comercial tudo o que ainda reste de casas de guardas florestais e de cantoneiros — na tola presunção de que a sua função original jamais fará falta ao país… Carvalho enumera só uma parte dos 58 edifícios ferroviários postos em arrendamento ou venda pelas IP-Património, remetendo para link deste suposto «serviço público» com um designativo clamoroso: «oportunidades». Brutal! Um país em bicos dos pés, em vendas de oportunidade e de cabeça perdida também. É mesmo o que temos. Ou somos.