Com apenas 19 anos, Kevin Lik já foi preso por traição à Rússia, condenado a quatro anos de prisão e libertado na histórica troca de prisioneiros entre Moscovo e o Ocidente. Menos de três semanas depois da sua libertação, o jovem com nacionalidade alemã e russa deu uma entrevista à BBC em que admitiu que sempre teve esperança de ser utilizado como moeda de troca pelo Kremlin para recuperar “o assassino favorito de Putin”.

Não te preocupes, vai tudo correr bem“: Lik ouviu estas palavras da boca de agentes dos Serviços Federais de Segurança da Rússia (FSB) duas vezes na vida. A primeira em fevereiro de 2023, quando foi acusado de traição. A segunda a 28 de julho de 2024, horas antes de ser libertado e se reunir com a mãe.

A libertação de Lik foi semelhante à relatada por outros prisioneiros libertados pela Rússia: foi retirado da prisão onde cumpria pena, forçado a assinar um pedido de clemência a Vladimir Putin e a esperar várias horas sem qualquer explicação, antes de ser colocado num avião com destino à Turquia.

A sua prisão, quando tinha apenas 18 anos, tem menos paralelos com os restantes prisioneiros. Enquanto as outras 15 pessoas eram jornalistas, opositores do Kremlin ou ativistas políticos desde os anos 80, Lik é estudante e a pessoa mais jovem de sempre a ter sido condenada e presa pela Rússia por traição.

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Kevin Lik nasceu na Alemanha, filho de mãe russa. Aos 12 anos, mudou-se para a terra natal da progenitora, Maykop, na zona russa do Cáucaso. Era um aluno exemplar, com diplomas de mérito e um interesse por História. As eleições presidenciais de 2018 despertaram-no para a política, depois de a sua mãe, funcionária pública, ter sido forçada a votar em Vladimir Putin, sob pena de perder bónus salariais no trabalho, contou ao canal britânico, numa conversa por videoconferência.

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Na mesma altura, com apenas 13 anos, causou um escândalo na sua escola por ter trocado a fotografia do Presidente russo que se encontrava na sua sala de aula por uma de Alexei Navalny. Os professores disseram-lhe que “a escola não é lugar para a política” e recomendaram-lhe que fosse mais cuidadoso. “Um professor disse que, no tempo de Estaline, teria levado um tiro”, recorda Lik.

A tentativa de fuga que levou à detenção

Meses depois de a Rússia ter invadido a Ucrânia, a mãe de Kevin decidiu regressar à Alemanha, para evitar o recrutamento do filho, prestes a fazer 18 anos. Contudo, o pedido para retirar o seu nome do registo militar foi recusado e, enquanto tentavam apanhar um voo em Sochi dias depois, foram puxados para dentro de uma carrinha pelas FSB e levados de volta para Maykop.

Foi neste momento que Kevin Lik ouviu pela primeira vez que “ia tudo correr bem”, quando descobriu que estava acusado de traição. A acusação baseava-se em fotografias que tinha tirado de uma base militar perto de sua casa. O jovem admitiu ter tirado as fotografias, mas negou que tivesse intenção de as passar a alguém e o Ministério de Defesa russo confirmou que as fotografias não representavam um risco para a segurança nacional.

Ao longo de dez meses de investigação, Lik percebeu que as FSB tinham anos de fotografias e registos telefónicos seus. Um dos seus professores testemunhou contra si, acusando-o de ter passado informações a oficiais alemães durante uma visita de estudo a Moscovo. O jovem justifica a deslocação à embaixada com um pedido para um documento de identificação alemão, uma vez que, à data da viagem, tinha acabado de fazer 16 anos.

Em dezembro de 2023, Lik foi condenado a quatro anos de prisão. A acusação citava a sua admissão de culpa e remorsos pelas ações, assim como a sua juventude, para a pena mais leve — a condenação por traição podia ir até aos doze anos.

A esperança de ser usado como moeda de troca entre Berlim e Moscovo

Kevin Lik partilhou com a BBC que nunca perdeu a esperança de ser trocado por Vadim Krasikov. O antigo agente das FSB estava a cumprir pena por homicídio na Alemanha e Lik esperava que o facto de ter nacionalidade alemã pudesse despertar interesse para uma possível troca.

Putin quis de volta o seu “assassino favorito” e Ocidente aceitou para “salvar inocentes”. As negociações da troca histórica de prisioneiros

O desejo acabou por ter resposta. Antes, passou vários meses numa cela solitária e, depois de completar 18 anos, foi transferido para a população geral de uma colónia penal nos arredores de Krasnodar, onde relatou ter sido mal tratado pelos outros prisioneiros. Em julho de 2024, encontrava-se na colónia penal de Arkhangelsk, no norte da Rússia.

No passado dia 30 de julho, a sua mãe fez uma publicação a denunciar o seu desaparecimento desta prisão, depois de lhe ter tentado enviar uma encomenda que nunca foi entregue. Dias depois, mãe e filho reencontraram-se na Alemanha. Kevin Lik admite que só quando o avião descolou rumo à Turquia é que percebeu que as suas suposições de troca estavam corretas e ia voltar a ver mãe.

“Não tenho desejos de vingança, mas quero muito participar em atividades da oposição“, declarou agora Lik à BBC. Apesar da juventude, afirma ter reconhecido desde cedo que a Rússia não é uma democracia e aponta o dedo a Vladimir Putin: “É só um jogo de xadrez, é claro que não há justiça”.