Duas respostas diferentes do Governo sobre a lei da eutanásia, que foi aprovada no Parlamento ainda em 2023 mas ainda não está regulamentada, fizeram com que se instalasse a confusão e a dúvida sobre o real estado do processo. Agora, os partidos que assinam a lei — PS, BE, PAN e IL — lançam o alerta: aprovada a lei, o Governo terá mesmo de “cumprir” e não pode refugiar-se em “vetos de gaveta”, estando mesmo em causa “um convite à interrupção do Estado de Direito”.

A confusão foi lançada esta semana, quando o Ministério da Saúde confirmou, numa resposta enviada aos deputados do PS, que estaria em “fase de elaboração” da regulamentação da lei, para que possa ser posta em prática, justificando a demora com a “complexidade” do procedimento e a “dilatação dos prazos” que ocorreu por causa da dissolução do Parlamento, no final do ano passado.

A resposta era uma novidade — afinal, o PSD sempre tinha dito que esperaria pela decisão do Tribunal Constitucional, que tem em mãos dois pedidos de fiscalização sucessiva da lei, e até evitou mencionar o assunto no programa eleitoral da Aliança Democrática — e pareceu surpreender até o parceiro de coligação, o CDS, que perguntou ao Executivo se tudo não passaria de um “lapso”. E o ministro António Leitão Amaro pareceu esta quinta-feira confirmar que sim, ao garantir que afinal  “o Governo não tem em circuito legislativo nenhuma iniciativa legislativa relacionada com a morte medicamente assistida”.

Governo nega iniciativa sobre eutanásia em andamento e garante que negociações do OE serão retomadas com “recato e lealdade”

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Ora a correção indignou os partidos que propuseram e conseguiram aprovar a lei, e que têm estado à espera de que a regulamentação fique pronta (primeiro ainda no Governo Costa, e agora com Montenegro). Em declarações ao Observador, a deputada socialista Isabel Moreira corrige Leitão Amaro: “Não há processo legislativo nenhum em curso. O processo legislativo já terminou e a lei foi aprovada”, sublinha a constitucionalista.

“A única coisa que há a fazer é cumprir e regulamentar a lei, e foi isso que o Governo nos respondeu, que a lei está a ser regulamentada. O que não é muito difícil, uma vez que a lei é muito pormenorizada. Portanto, tem de cumprir a lei e respondeu-nos em conformidade”, recorda, numa referência à resposta que veio por escrito do Ministério da Saúde. Depois, acrescenta: “Não consigo compreender o alcance de declarações que venham noutro sentido. Num Estado de Direito cumpre-se a lei”.

A propósito do desagrado do CDS, a deputada socialista vai mais longe. “Fico surpreendida com que o CDS esteja confortável com uma não regulamentação, ou seja, com um convite à interrupção do Estado de Direito”. E faz a pergunta ao contrário, questionando os democratas-cristãos se acreditariam que um próximo Governo poderia “simplesmente não fazer nada” quanto a uma lei que fosse aprovada nesta conjuntura. “É um novo paradigma do direito constitucional. Fico perplexa”.

[Já saiu o quarto episódio de “Um Rei na Boca do Inferno”, o novo podcast Plus do Observador que conta a história de como os nazis tinham um plano para raptar em Portugal, em julho de 1940, o rei inglês que abdicou do trono por amor. Pode ouvir aqui, no Observador, e também na Apple Podcasts, no Spotify e no Youtube. Também pode ouvir aqui o primeiro, o segundo e o terceiro episódios]

Também a Iniciativa Liberal, numa resposta ao Observador, sublinha a facilidade de regulamentar uma lei tão “detalhada e circunscrita”, pelo que não compreende que o PS, “por inércia ou incompetência”, e agora o PSD ainda não o tenham feito. “O subterfúgio utilizado por Luís Montenegro de que preferia aguardar pela pronúncia do Tribunal Constitucional também não tem qualquer sustentação, já que este pedido não pressupõe qualquer efeito suspensivo”.

A IL atribui, assim, o atraso na regulamentação à “pressão do CDS”: “O que este Governo está a fazer é nada mais que um veto de gaveta. Tenta na secretaria impedir uma lei aprovada e que está em vigor de ser aplicada, já que precisa de ser regulamentada para tal. Sem regulamentação é como se não estivesse em vigor, já que não pode ser aplicada”. Os liberais acrescentam que, se “já não há processo legislativo em curso”, a matéria já não é da competência do Governo, a quem cabe apenas “regulamentar para que a lei possa ser aplicada”: “O que se espera é que o faça de forma diligente e em respeito pelos demais órgãos de soberania, ou seja, sem arranjar manobras dilatórias para atrasar essa regulamentação”.

Bloco critica “guerrinhas” na AD, PAN fala em “preconceito ideológico”

No Bloco de Esquerda, mais avisos. O líder parlamentar, Fabian Figueiredo, também comenta a relação entre os parceiros de coligação, criticando as “trapalhadas” e “barafunda” na Aliança Democrática, e defende: “O institucionalismo tem de se sobrepor às guerrinhas dentro da AD”. O líder da bancada do Bloco fala praticamente em uníssono com os socialistas e os liberais, lembrando que “o Estado de Direito tem regras e a lei é muito clara”, pelo que o Governo não se pode refugiar em “vetos de gaveta ou procedimentos à margem da lei”.

O Bloco junta a isto um outro argumento: sendo esta uma das leis “mais debatidas e fiscalizadas” da democracia portuguesa, uma vez que enfrentou obstáculos no Palácio Ratton e em Belém até ser aprovada, não é válido o argumento do Executivo, que disse várias vezes estar à espera da pronúncia do Tribunal Constitucional. “É um processo legislativo finalizado. O que se pede é que o Governo aja de acordo com as regras da democracia e do Estado de Direito, independentemente das guerras culturais que haja no campo da AD”, atira Figueiredo, em declarações ao Observador.

Também o PAN, igualmente responsável pelo desenho da lei, lança críticas ao Governo de Montenegro: “A regulamentação da morte medicamente assistida não pode ficar bloqueada por preconceito ideológico deste governo, quando foi aprovada pela Assembleia da República”.

Este “atraso”, prossegue o partido de Inês Sousa Real numa resposta enviada ao Observador, tem várias consequências negativas: “Nega o direito a uma última escolha de quem está em situação de doença e sofrimento irreversíveis, para além de acentuar as desigualdades, pois quem tem recursos financeiros terá a capacidade de o fazer no estrangeiro”. Resta saber se o Governo dará mais esclarecimentos sobre o estado em que está, afinal, o processo de regulamentação da eutanásia.