Um “abraço” indesejado. É assim que os críticos internos do Bloco de Esquerda definem a presença de Augusto Santos Silva no Fórum Socialismo, o evento que marca a rentrée do partido. O convite ao socialista, que também já tinha sido alvo de crítica no Abril Abril — um órgão mais ligado a figuras do PCP –, é visto no setor mais crítico (e minoritário) do partido de Mariana Mortágua como uma aproximação indesejada da “ala direita” do PS.

A crítica, que já corria entre os elementos da Convergência — grupo que reúne os principais críticos da linha atual da direção — é concretizada no blogue do grupo pelo ex-deputado Carlos Matias, que acusa a cúpula bloquista de ter recusado incluir nomes do partido, menos afetos à direção, no programa da rentrée.

Desde logo, para Matias, o convite a Augusto Santos Silva, assim como à constitucionalista Teresa Violante (ex-militante do PSD, tendo participado num evento de preparação do programa eleitoral do PS), mostra que o partido quer ir “mais longe” em duas linhas de orientação que os críticos têm considerado erradas: a cedência a posições belicistas da NATO e as propostas “vagas e equívocas” quando se trata de “demarcar-se politicamente do PS”.

Neste texto, recordam-se críticas violentas que Santos Silva chegou a fazer, em 2009, ao Bloco (“das forças mais conservadoras e reacionárias” que conhecia). Entretanto, houve uma “evolução”, ironiza o ex-deputado: as “expectativas” de Santos Silva quanto ao Bloco mudaram, tendo em conta o “progressivo alinhamento” do partido com a “grande frente da guerra e do armamentismo”.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Este não é o primeiro choque no interior do Bloco a propósito da posição do partido quanto à guerra na Ucrânia. Como o Observador escrevia antes da convenção bloquista do ano passado, os críticos internos já então acusavam a direção de se aproximar das posições da NATO e de “romper” com a história do Bloco. Para os críticos, o partido deveria criticar abertamente a NATO e a União Europeia, sem ambiguidades, e abster-se de participar numa delegação parlamentar que visitou Kiev, para mostrar que rejeitava a visão “militarista” promovida por NATO, EUA, UE e o Estado português. Para a direção, os críticos estavam à procura de uma forma de “desculpabilizar” a Rússia e “diluir” as suas culpas, aproximando-se perigosamente da posição que tem vindo a ser defendida pelo PCP — e que tem deixado o partido isolado.

Tensão no Bloco sobre Ucrânia. Críticos acusam direção de se colar à NATO e “romper” com história do partido

Críticas a “desastrosa” linha “cordial” com PS. Direção quer combate “unitário”

A outra crítica que a participação de Santos Silva, que irá ao Fórum Socialismo para falar sobre “Como mobilizar e unir a cidadania no combate à extrema-direita”, vem suscitar não é de hoje: há muito que a linha minoritária no Bloco defende que o partido devia ter rompido há mais tempo as alianças com o PS, discordando daquilo a que chama o “geringoncismo” vigente no partido. Ou seja, para este grupo, o Bloco viciou-se na proximidade ao poder e age como um “satélite” do PS.

Mas a “necessária mobilização” de novos setores para a luta contra a extrema-direita não pode, na visão dos críticos, “apagar a responsabilidade que PS e PSD (sobretudo estes) têm pelas medidas anti populares que adubam o terreno onde crescem “Chegas & Cª”, escreve o ex-deputado. “Para a direção do BE ,o combate à extrema-direita exige que não se turve a entente cordiale com o PS, linha estratégica que vem sendo adotada pela maioria da direção do Bloco, com resultados eleitorais desastrosos”, critica Matias. “Para a maioria da direção do BE, amplitude à direita? Claro! À esquerda? Nem por isso”.

Neste texto, Matias, tal como outras fontes da Convergência que falaram com o Observador, garante que o “abraço” entre Santos Silva e a direção do Bloco implicou “a exclusão do programa do Fórum de diversos rostos de esquerda (alguns do próprio Bloco)” — segundo as informações apuradas pelo Observador, todas as propostas apresentadas por Manuel Carlos Silva, membro da moção E (que reuniu os críticos internos na última convenção do Bloco) foram rejeitadas e incluíam o próprio e outros elementos críticos da direção, como os ex-deputados Carlos Matias e Pedro Soares, assim como o histórico Mário Tomé. Ainda assim, o próprio Manuel Carlos Silva fará uma apresentação sobre um livro da sua autoria. O Observador questionou a direção do Bloco sobre esta queixa, mas não teve resposta.

A direção bloquista explicou o convite a Santos Silva com a vontade de contar com contributos de um campo político mais alargado para enfrentar a ameaça da extrema-direita. Ao Expresso, depois de ter sido conhecida a participação do socialista na rentrée bloquista, o dirigente Adriano Campos explicava: “Como se viu em França, o combate à extrema-direita não será eficaz se for reduzido a um partido ou campo político. Nos próximos anos o combate deve contar com momentos unitários e com contributos de vários dirigentes”. E rejeitava, precisamente, que isto viesse significar que o Bloco está a perder a sua “radicalidade” — como argumentam os críticos.

Site onde escrevem comunistas também critica Bloco. Discordância estende-se à Venezuela

As críticas à opção do Bloco também se fizeram ouvir no Abril Abril, um site ligado à Associação Abril Abril, onde escrevem e participam comunistas e rostos ligados à CDU. Reagindo ao programa do Fórum Socialismo, um texto publicado no site referia-se a Santos Silva como um “ávido defensor do imperialismo” e ironizava: “O evento que pretende discutir temas à esquerda e debater o legado de Vladimir Lénine ou Amílcar Cabral, irá receber como orador Augusto Santos Silva, um dos principais rostos da submissão de Portugal aos interesses da União Europeia, Estado Unidos e NATO”.

E prosseguia, sugerindo que muitos analistas identificaram a tática de Santos Silva para lidar com André Ventura — “uma constante troca de palavras” — como “uma tática de retro-alimentação” que acabou por dar mais gás ao líder do Chega.

No Abril Abril, Santos Silva é identificado como “uma das principais vozes na defesa do reforço do militarismo e da guerra” e uma figura conhecida pela “sua grande simpatia face aos EUA”. O texto terminava com mais uma farpa, identificando “bastantes pontos de ligação entre o ex-presidente da Assembleia da República e o partido coordenado por Mariana Mortágua, nomeadamente a visão sobre a Venezuela e o apagamento da natureza do poder político ucraniano”.

No que toca a tensões à esquerda pelas posições assumidas por cada partido no âmbito internacional, a troca de farpas não fica, de resto, por aqui. Se o Abril Abril criticava, também neste texto, a “visão sobre a Venezuela” do partido de Mariana Mortágua, o Esquerda.net, portal do Bloco de Esquerda, publicava um artigo assinado pela jornalista e membro do PSOL Ana C. Carvalhaes e pelo professor e presidente da Sociedade Venezuelana de Educação Comparada Luís Bonilla-Molina, intitulado “A esquerda pró-Maduro abandona os trabalhadores e o povo da Venezuela”.

O conteúdo não era difícil de adivinhar: uma crítica sobre supostos “progressistas” de esquerda que acreditam num falso “anti-imperialismo” de Maduro. Um reflexo discreto da diferença de opiniões que ganha força e separa, em Portugal, boa parte da esquerda nas questões internacionais.