O antigo secretário de Estado das Infraestruturas justificou a mudança da administração da ANA, antes do processo de venda realizado em 2012, com o facto de a gestão na altura em funções querer “impor o seu modelo de privatização” ao Governo do qual fazia parte. E esse modelo previa a construção de um novo aeroporto financiado com as receitas da privatização da gestora aeroportuária.

Sérgio Monteiro respondeu esta quarta-feira às questões dos deputados da comissão parlamentar de economia e obras públicas, na sequência de uma auditoria do Tribunal de Contas a esta privatização, que foi divulgada mais de dez anos depois da operação, que se realizou durante o Governo de Pedro Passos Coelho.

Em resposta ao deputado comunista António Filipe, que chamou o antigo governante, Sérgio Monteiro explicou que a administração em funções na ANA no início de 2012 —  nomeada pelo Governo anterior do PS e que já tinha concluído o mandato — pretendia “impor o seu modelo de privatização que tinha como objetivo o desenvolvimento de uma nova infraestrutura aeroportuária num momento em que o país não precisava, em detrimento do encaixe financeiro”. Esse modelo era defendido pela administração da ANA pública “à revelia das orientações dadas pela tutela política e pelo acionista” e implicava “sacrificar o encaixe financeiro num momento em que o país não tinha dinheiro para suprir os compromissos”.

A opção da privatização dos 100% da ANA “tem a ver com o contexto da necessidade, o país estava na situação que estava”, disse Sérgio Monteiro, sublinhando que havia necessidade de “maximizar o encaixe financeiro” e abater a dívida pública num momento em que o país estava sob assistência financeira.

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Três anos depois da privatização da ANA, o crescimento do tráfego de passageiros em Lisboa ultrapassou as previsões, atingindo o patamar a partir do qual a concessionária teria de ativar a cláusula contratual de reforço da oferta de capacidade. O que foi feito em 2015 com a proposta de um aeroporto complementar no Montijo que acabou por não avançar, arrastando no tempo o processo de decisão política sobre o novo aeroporto até este verão.

Reconhecendo que a situação mudou no que toca à necessidade de reforço da capacidade aeroportuária em Lisboa, o antigo governante questiona-se porque não foi aproveitada a oportunidade dada pela pandemia, que deixou os aeroportos vazios, para trabalhar nessa nova infraestrutura.

Privatização da ANA teve “inconsistências graves” e não salvaguardou o interesse público, diz Tribunal de Contas

“Erros graves” e falta de contraditório

A auditoria do Tribunal de Contas à privatização da ANA, divulgada em janeiro deste ano, concluiu que a operação não salvaguardou o interesse público, por incumprimento dos seus objetivos, como o de minimizar a exposição do Estado aos riscos de execução. Sérgio Monteiro não acompanha o entendimento do Tribunal de Contas sobre este processo numa auditoria que, diz,  “tem erros técnicos graves” e “um conjunto de outras considerações que porventura são opiniões”.

A nomeação de uma nova equipa para a ANA, liderada por Ponce de Leão, antes de se iniciar o processo de privatização e que depois se manteve em funções com o acionista que ganhou o processo, a Vinci,  é uma das fragilidades apontadas pelo Tribunal de Contas ao processo de venda. A auditoria destaca a mudança de posição da administração da ANA sobre a proposta do grupo francês que passou de desfavorável na oferta inicial a positiva na oferta vinculativa.

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Agradecendo ao deputado comunista ter-lhe dado a oportunidade de “fazer o contraditório” que não pôde fazer na auditoria do Tribunal de Contas, que não ouviu os antigos governantes, Sérgio Monteiro rejeita a ideia de que tenha havido um conflito de interesses.

“É verdade que a Vinci manteve a mesma administração, mas foi essa administração que contribuiu para que a Vinci pagasse mais de 600 milhões de euros do que o segundo melhor concorrente à privatização. Se, como prémio, se contratou a mesma administração, acho que é um louvor à competência daquela administração. Julgo que não há conflito de interesses”.

O antigo secretário de Estado voltou a elogiar o processo que conduziu, destacando o valor do encaixe obtido pelo Estado, que não teve paralelo com o resultado de qualquer outra operação — 16 vezes o múltiplo do EBITDA (margem bruta da ANA). “Foi uma operação de referência em termos mundiais”. Questionado sobre o facto de só um terço ter sido usado para abater a dívida pública, Sérgio Monteiro indica que o resto permitiu evitar que o Estado fosse forçado a contrair nova dívida.

A privatização da ANA foi anunciada como tendo permitido uma receita bruta de 3.080 milhões de euros, mas a esse valor é preciso retirar a dívida contraída pela empresa para pagar o contrato de concessão ao Estado. O antigo governante elogiou ainda os resultados da gestão privada, citando a estimativa de partilha de lucros com o Estado de 3.100 milhões de euros prevista no Orçamento para este ano. E contrariou a ideia de que a Vinci só ganhou mais dinheiro que o previsto quando comprou a ANA porque durante estes 11 anos a empresa teve lucros e deu dividendos, mas também investiu cerca de 600 milhões de euros na rede aeroportuária. “Os resultados da gestão privada estão aí e orgulham-nos enquanto país”.

Sérgio Monteiro recusou ainda a ideia defendida na auditoria de que houve uma mudança das regras do jogo na fase final que teria beneficiado a Vinci. “Não houve mudança de regras na fase final porque a todos os concorrentes tiveram acesso à versão de minuta do contrato de concessão. Foi dada igualdade”. Sobre o pagamento de dividendos e a dívida que a ANA teve de contrair para pagar ao Estado antes de ser vendida, o ex-secretário de Estado diz essas operações foram compensadas no preço final pago pela Vinci, como seriam se fosse outro o comprador.

Em relação ao facto de a lei de salvaguarda dos ativos estratégicos ter sido pública já depois de vendidos 100% da ANA, o secretário de Estado lembra que este regime nunca poderia ser aplicado à compradora da ANA porque a Vinci é uma empresa da União Europeia. E argumenta que a concessão dada por 50 anos teria de envolver todos aeroportos porque apenas o de Lisboa era lucrativo.

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Para além de Sérgio Monteiro e do Tribunal de Contas, o Partido Comunista pediu ainda audições dos ex-ministros das Finanças Maria Luís Albuquerque (que enquanto secretária de Estado liderou a venda da ANA pelas Finanças) e Vítor Gaspar, e até de Pedro Passos Coelho. Já o PSD avançou com a uma série de pedidos para ouvir os responsáveis socialistas que tiveram a tutela da gestora dos aeroportos após 2016.