O grupo francês Vinci que comprou a ANA no início de 2013 propôs desde o início da negociação o Montijo como solução para reforçar a capacidade aeroportuária em Lisboa. A proposta para desenvolver um novo aeroporto no Montijo com duas pistas fez parte da oferta inicial da então candidata à privatização da gestora dos aeroportos.

A revelação é feita numa auditoria do Tribunal de Contas à privatização realizada pelo Governo de Pedro Passos Coelho e só agora foi concluída, numa altura em que está em consulta pública a recomendação para que o novo aeroporto seja construído no Campo de Tiro de Alcochete. Esta proposta da Comissão Técnica Independente conta com a oposição da concessionária privada.

Privatização da ANA teve “inconsistências graves” e não salvaguardou o interesse público, diz Tribunal de Contas

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A Vinci foi a única dos cinco concorrentes a manifestar a sua preferência pelo Montijo. A proposta ainda não vinculativa suscitou dúvidas à administração da gestora dos aeroportos, então pública, que foi chamada a pronunciar-se sobre o mérito técnico e estratégico destas ofertas. Tal como todos os outros concorrentes, a proposta da Vinci defendia a utilidade de potenciar até ao fim a capacidade da Portela, admitindo a necessidade de um novo aeroporto entre 2030 e 2040, mas apenas o grupo francês manifestou preferência pelo Montijo (ainda que não excluísse outras opções).

A ANA, então liderada por Ponce de Leão, sinalizou que a proposta detalhada revela “aspetos fracos, sobretudo na resolução dos problemas de capacidade de Lisboa”. E concluiu que “não permite atingir os objetivos enunciados”. A preferência pelo Montijo parece ser “não exequível ou adequada”, para além de ser dissonante com o que defendia então a administração da empresa pública, refere a auditoria do Tribunal de Contas.

Apesar de ser uma “solução inovadora”, a ANA considerava o Montijo “pouco realista”. “Revela o mérito em procurar uma solução que compatibilize capacidade operacional e otimização financeira, mas não se julga viável, nem técnica nem ambientalmente”, dizia então a gestão pública da concessionária para quem a “solução técnica proposta de expansão para a terceira fase alterando uma proposta apresentada pela ANA (e afastada em 1994) parece não ser exequível”.

Para além de várias restrições operacionais e das dificuldades ao controlo de tráfego e à gestão eficiente da transferência de passageiros, a ANA considera que colocaria “uma pressão inaceitável sobre o estuário do Tejo”. Ainda que a sua validação competisse à NAV (Navegação Aérea) que teria de avaliar implicações nos movimentos da própria Portela e com o Campo de Tiro de Alcochete, a ANA concluía: Não se julga viável nem técnica nem ambientalmente”.

Avaliação inicial da ANA não foi logo entregue ao Tribunal

Segundo a auditoria, esta avaliação às propostas iniciais de compra não foi logo entregue ao Tribunal de Contas pela a Parpública quando esta remeteu a documentação sobre a privatização para uma primeira ação de fiscalização que, apesar de ter seguido para contraditório em 2016, acabou por não ser concluída. Há ainda referência a ausência de anexos, em particular no que toca à apreciação feita pela ANA às ofertas iniciais (desfavorável à Vinci), e a incongruência de datas dos documentos.

Em contraditório, a empresa pública desvaloriza o parecer da ANA na escolha do vencedor porque não era vinculativo. A Parpública alega ainda que as dúvidas sobre o projeto estratégico da Vinci para o reforço da capacidade aeroportuária foram dissipadas pelo tempo. O que é contrariado pela auditoria onde se defende que as “reservas colocadas à opção para o NAL (Montijo) que o tempo tem vindo a confirmar”.

Três anos depois destas ofertas, em 2015, a ANA privada apresenta ao Governo a proposta de um aeroporto na base aérea do Montijo complementar ao aeroporto de Lisboa cuja capacidade seria também reforçada. Esta solução dual foi proposta nos termos do contrato de concessão e totalmente financiada pela ANA, dispensando a construção de um novo aeroporto de Lisboa que substituísse a Portela e cujo custo seria muito mais elevado. A informação divulgada pelo Tribunal de Contas não permite concluir se esta proposta da concessionária era distinta da inicialmente feita pela Vinci. Mas foi aceite inicialmente pelo Governo do PSD/CDS e, mais tarde, pelo Governo de António Costa que viria a assinar em 2019 um memorando com a concessionária. A solução acabou por cair por causa do parecer negativo de duas autarquias.

Mas recuando ao final de 2012 e à avaliação inicial feita pela ANA às ofertas não vinculativas à sua privatização, a preferência terá sido dada às propostas dos concorrentes Fraport, Eama, e, em menor escala, Ferrovial, “não apenas pelas considerações relativamente ao novo aeroporto, mas também pela otimização que pretendem fazer do atual aeroporto”. A gestora considerava contudo que o interesse estratégico da aquisição da ANA para o projeto dos concorrentes é uma mais-valia para a capacidade negocial no Estado, em particular no caso de quatro propostas, incluindo a da Vinci nesse lote.

Já nesta fase não vinculativa, os franceses apresentaram uma oferta financeira de 2,5 mil milhões de euros, superior à dos outros candidatos (a segunda melhor era de 2,2 mil milhões), tendo passado à fase seguinte da privatização.

Tribunal não encontra explicação para ANA mudar de posição e valorizar proposta da Vinci

Quando chegou a hora de avaliar as propostas vinculativas dos quatro candidatos que as apresentaram, a proposta da Vinci já aparece na apreciação feita pela administração da ANA como “a mais forte e competitiva de todas as apresentadas pelos concorrentes”. Não se refere se esta proposta final incluía a preferência do concorrente francês pelo Montijo. A Vinci também ganhava em termos financeiros — melhorou a proposta que já era mais alta em 580 milhões de euros — e era a que apresentava menor risco de execução.

Mas a auditoria do Tribunal de Contas diz que a apreciação das propostas técnicas “levanta mais incerteza”. Considerando que a operação tinha outros objetivos para além do financeiro, indica que não foi entregue evidência de que esses objetivos — reforço da ANA, da aviação portuguesa e da economia, minimização dos riscos para o Estado, benefícios para os utilizadores das infraestruturas aeroportuárias e um ambiente regulatório adequado — estavam associados a “critérios, ponderações, métricas e prioridades que permitissem com objetividade apreciar as propostas técnicas vinculativas”.

É uma “omissão” que contribui para “materializar o risco de a decisão final sobrevaliar a proposta selecionada, devido à descricionaridade não compatível com a transparência e rigor técnico que deveria fundamental tal decisão”, Para esta situação pesa também o que a auditoria descreve como a “desconformidade evidente na apreciação da ANA entre a proposta não vinculativa e a vinculativa” para a qual não foram entregues (pela Parpública), e segundo o Tribunal, a evidência dos fundamentos para a alteração das propostas, para além da constatação de que a oferta financeira da Vinci superou em muito as outras.

Transição da gestão pública da ANA para a privada criou potencial conflito de interesses

A auditoria analisa a transição da gestão da ANA pública para a ANA privada e considera que a mesma não acautelou eventuais conflitos de interesse. Começando por notar a pressa do Governo em nomear um novo conselho de administração no início do processo de privatização — quando o mandato anterior já tinha terminado em 2011 — os juízes consideram que os gestores estariam confrontados com um “período tão curto de expectativa de exercício de funções”, uma vez que a empresa ia mudar de acionista, para além de não terem a experiência da anterior gestão que estava em função desde 2008 (e que tinha sido nomeada pelo Executivo socialista de José Sócrates).

Essa dupla circunstância constituiu, refere a auditoria, “um risco material para a proteção cabal dos interesses nacionais”. Esse risco foi potenciado quando um representante da Vinci afirmou publicamente a intenção de manter a administração da ANA pública. “Não temos uma equipa para substituir a gestão e por isso vamos manter a equipa na qual confiamos, mas seremos acionistas a 100% e seremos nós a decidir o conselho de administração”. Esta citação é atribuída a um gestor não identificado da Vinci, empresa que à data da privatização da ANA não tinha experiência na exploração de aeroportos da dimensão do de Lisboa.

Na cronologia incluída na auditoria, esta declaração foi feita depois da ANA pública ter enviado à Parpública a apreciação das propostas não vinculativas na qual são apontadas fragilidades à estratégia da Vinci. Mas antes da ANA ter feito a apreciação das propostas vinculativas onde valorizou também do ponto de vista técnico a oferta da Vinci.

Destacando a “desconformidade” entre os dois pareceres, a auditoria considera que a entrada de sete administradores no conselho de administração da ANA privada contraria a ideia de que a Vinci não teria gestores. Por outro lado, considera que a declaração pública feita pelo representante do futuro acionista da ANA “colocou os membros do conselho de administração da ANA pública em potencial situação de conflito de interesses, cuja infirmação implicaria, como condição necessária, a cessação de funções de membros do conselho de administração da ANA quando esta se tornasse uma empresa privada. Porém, tal como anunciara, a Vinci manteve todos os membros em funções”.