As regras em Portugal para a contratação pública, em particular de grandes obras ou equipamentos, abrem uma via rápida para um elevado nível de litigância nos tribunais em relação aos concursos, o que acaba por atrasar (ainda mais) a execução de muitos dos projetos. Da ferrovia aos metros.

A maior encomenda da história da CP — a compra de 117 comboios para os serviços urbano e regional — está paralisada nos tribunais há mais de seis meses por causa de impugnações. A CP pediu a invocação do interesse público, mas a contestação por parte dos concorrentes afastados ainda não está resolvida e o contrato não pode avançar para o Tribunal de Contas emitir um visto. Só  depois deste passo pode começar a produzir efeito pelas regras atuais.

Esta quarta-feira no Parlamento, o presidente da CP, Pedro Moreira, atribuiu a excessiva litigância nos concursos públicos às regras da contratação pública e disse que são os próprios fabricantes a fazer esta associação. “A litigância é maior em Portugal porque somos o país mais transparente neste tipo de concursos”, afirmou.

O portal onde os concursos são realizados permite que todos os concorrentes tenham acesso aos detalhes das propostas uns dos outros e, dada a complexidade dos procedimentos, não há um único fabricante cuja proposta não tenha alguns erros. Esses lapsos são usados pelos outros concorrentes para apresentarem reclamações ou pedirem esclarecimentos e, no limite, impugnarem os resultados e atrasarem as adjudicações. Ou seja, com a legislação em vigor, é muito fácil encontrar fundamentos para litigar e as ações de impugnação procuram sempre ter um efeito suspensivo da produção de efeitos do contrato que é preciso ultrapassar junto do tribunal.

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Maior encomenda da CP vale 746 milhões e prevê que 100 comboios sejam montados em Portugal

O contrato de 746 milhões de euros foi adjudicado pela CP ao agrupamento Alstom/DST há quase um ano, em dezembro de 2023, e depois de um concurso que foi aprovado em 2021 quando Pedro Nuno Santos estava na pasta das Infraestruturas. O concurso foi lançado no final desse ano e demorou dois anos a ser decidido. O ministro que se seguiu na pasta, João Galamba, justificou a demora no processo de adjudicação com a cuidado e a preocupação da empresa em evitar ou mitigar o risco de litigância, mas não se conseguiu fugir às inevitáveis impugnações dos que perderam.

[Já saiu o quarto episódio de “A Grande Provocadora”, o novo podcast Plus do Observador que conta a história de Vera Lagoa, a mulher que afrontou Salazar, desafiou os militares de Abril e ridicularizou os que se achavam donos do país. Pode ouvir aqui, no Observador, e também na Apple Podcasts, no Spotify e no Youtube. E pode ouvir aqui o primeiro episódio, aqui o segundo e aqui o terceiro.]

Semanas depois de anunciada a adjudicação, os concorrentes afastados — a CAF e a Stadler — impugnaram o procedimento em Tribunal Administrativo invocando ilegalidades na propostas feitas pelos vários concorrentes.

Um destes concorrentes, a austríaca Stadler, ganhou no final de 2019 o concurso para o fornecimento de 22 automotoras para o serviço regional da CP, naquela que foi a primeira encomenda para material circulante novo após os cortes do período de assistência financeira a Portugal. A impugnação de um outro concorrente, a espanhola CAF, paralisou o processo durante meses e a CP só conseguiu levantar o efeito suspensivo em outubro de 2020, quando assinou o contrato. A primeira entrega destas automotoras atrasou pelo menos um ano.

Contrato assinado. Novos comboios regionais começam a chegar em 2024 com um ano de atraso

Regimes extraordinários para minimizar efeito de contenciosos

Esta corrente de impugnações envolve outras grandes empresas de transportes e de infraestruturas públicas e nota-se mais nos momentos que existe mais dinheiro para gastar, como tem acontecido nos últimos anos com os fundos do PRR (Plano de Recuperação e Resiliência). E é para travar mais delongas na execução já atrasada destas verbas que o Governo aprovou um regime extraordinário para contratos e obras públicas financiadas com dinheiro europeu.

Um dia antes, na terça-feira, na comissão parlamentar de obras públicas, a secretária de Estado da Mobilidade apontou também o contencioso como um dos motivos para as derrapagens temporais nos projetos de expansão do Metro de Lisboa. Cristina Pinto Dias deu como exemplo a linha vermelha, cujo processo esteve parado durante cinco meses por causa de impugnações judiciais. Mas garantiu que, com as novas regras, que já foram para promulgação, essa demora seria reduzida a um mês e meio.

Expansão do Metro de Lisboa com atrasos até 30 meses. Não está em causa a obra (que avança), mas sim fontes de financiamento

Em causa estão regimes extraordinários propostos pelo Governo e aprovados no Parlamento para agilizar e acelerar contratos públicos financiados pelo PRR. Ao nível do contencioso e pré-contencioso, está previsto, em casos de impugnação de atos de adjudicação, que o levamento do efeito suspensivo automático possa ser efetuado com uma decisão sumária do juiz. Fica também consagrada a possibilidade de recurso à arbitragem entre as partes. Há ainda um diploma para permitir que os projetos avancem sem necessitarem de esperar pelo visto prévio do Tribunal de Contas, passando a fiscalização a ser realizada ao mesmo tempo que o projeto é executado.

Na semana passada também o presidente e vice-presidente da Infraestruturas de Portugal, a empresa que tem mais frentes de obras em Portugal — e que é responsável pela rede de alta velocidade —, referiram as impugnações como fontes de atraso, ainda que neste caso seja apenas mais um fator numa lista mais longa de culpados.

Atrasos na ferrovia. Da visita do Papa aos roubos de material e um plano “desadequado” e impossível de executar em quatro anos