É uma babilónia na cozinha, não ao nível das línguas e culturas mas antes dos percursos e experiências. “Foi mesmo estreia, estreia absoluta. Tanto para a equipa como para os clientes. Para as duas partes. A cozinha aqui é como uma grande fusão de ideias”. Ao telefone com o Observador, na manhã a seguir à estreia oficial do Éon, Tiago Bonito fala desse arranque e apresenta uma equipa de 12 que ainda se está a conhecer. Os elementos vêm de diferentes partes do Porto, uns acumulam mais de uma década de passagem por outros espaços, outros têm menos experiência.

Para a noite de arranque, na passada quinta-feira, sentou cerca de metade da lotação prevista da sala, 20 pessoas, que partilham o idioma comum da alta gastronomia (e estão longe de ser novatos). “São pessoas exigentes, que já conheço e que já me acompanharam noutros projetos. Até brinquei que nem me deixaram aquecer o motor. Estavam curiosos mas também é um bom sinal de confiança”.

O chef Tiago Bonito

O cenário foi o restaurante do novo Palacete Severo, a antiga “casa portuguesa” que o arquiteto, engenheiro e arqueólogo Ricardo Severo da Fonseca e Costa ergueu para a família no começo do século XX, restaurada e renascida como boutique hotel, na rua com o mesmo nome, na zona da Boavista. E cuja cozinha é agora liderada pelo chef que em janeiro de 2023 terminou o vínculo com a Casa da Calçada Relais & Chateaux, que entretanto seguia para obras.

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Ali chegara, a Amarante, em abril de 2017, com 30 anos, para render André Silva. Passados dez dias mudou a carta. Em outubro desse ano apresentava o seu menu para o período outono/inverno, e em novembro alcançava a estrela Michelin. Depois do Largo do Paço, Tiago Bonito assinou o menu do Través, no Hotel das Virtudes, também no Porto, onde mantém o dedo de consultor, agora com “menos regularidade”, e em maio começou os trabalhos no palacete, importando o seu registo mas apenas uma referência saída da anterior morada. “O estilo vai ser muito semelhante porque sou eu mesmo. Mas neste menu só temos um prato semelhante ao que eu tinha no Largo do Paço, todos os outros são pratos novos para este novo restaurante. Não são pratos trazidos de um passado para o presente; o tempo também nos ajuda a mudar, também nos ajuda a pensar.”

Um momento de bastidores saído da noite de estreia, esta quinta-feira, que o chef registou na suas stories de Instagram

Quanto ao Guia Michelin e a eventuais desenvolvimento nesta constelação, o tempo dirá o desfecho. “Queremos fazer um bom serviço e queremos trabalhar para a excelência. Se os resultados forem positivos, obviamente que temos todo o gosto em ter essa distinção, mas não depende de nós. Digo muitas vezes, não há estrelas sem clientes, e as maiores estrelas são os clientes, são as pessoas que nos visitam. São as pessoas que estão do nosso lado todos os dias. Obviamente, se tivermos prémios sobre esse trabalho, claro, ficamos muito orgulhosos.”

Menu no Éon, serviço à carta no Bistrô Severo (na foto) assumidamente palco de pratos de conforto

Sem tropeções da memória, e quase sem pausas para respirar, do outro lado da linha o chef debita com precisão invejável cada item do novo menu, e respetiva composição. Uma viagem no tempo que liga os pontos das diferentes eras, com “o produto acima de tudo”, trazendo técnicas novas que realçam “a nossa gastronomia”.

Neste Éon, os sabores bem nacionais, e em particular o doce da hospitalidade duriense, convocam assim um cozido à portuguesa, um bacalhau à brás ou a receção servida pelas famosas amêndoas torradas, aqui com um toque de sal. “Tudo coisas ligadas a mim pessoalmente, que todos nós conhecemos. O projeto nasce com a ideia de preservar as memórias, a que a minha cozinha também está muito ligada. É a intemporalidade, o luxo é viver o passado no presente. Reavivar memórias e criar novas memórias, como um intervalo de tempo que não tem começo nem fim. Daí também o nome Éon”, explica.

É com aqueles três destaques que o menu de degustação arranca. Segue-se o Caviar 3.o, o “único produto que entra na cozinha que não é nacional” — e que inclui três tipos de caviar, para um momento que vai desde o ouriço de Viana ou Esposende ao crocante de algas. Passamos para um atum rabilho “extremamente gordo” a que junta a acidez de um gelado de maçã e pepino, terminando com um caldo japonês feito à base de atum seco. Próxima paragem? Um carabineiro com uma espuma Al ajillo. Passamos para o peixe, um cherne, ao sal, com um arroz caldoso do baixo Mondego, “das minhas origens”, com muito mar e contraste com a doçura da gamba branca do Algarve. Segue-se uma etapa terra e mar, concretizada com uma lula pescada à mão, recheada com uma mousse de paio do lombo de porco preto, com um molho de iogurte e harissa, “que puxa mesmo as lembranças de ir à taberna, daquelas lulas com o palitozinho.”

Os interiores no Palacete Severo

Saltamos para o novilho, uma carne mirandesa servida com puré de aipo fumado e cogumelos da estação. Passamos depois para uma “pré-sobremesa” que vai buscar a batata doce de Aljezur e a passagem de Tiago Bonito pelo Algarve. “Lembro-me dos mercados e de as senhoras de mais idade venderem batata doce assada embrulhada em jornal”. O caviar acrescenta salinidade extra ao assado e o resultado é um gelado de batata doce com uma espuma de créme frâiche e chocolate. Em plena temporada da laranja, tangerinas e toranja, terminamos o menu com citrinos, que “tanto me fazem lembrar a infância”. O papel de embrulho para estas recordações é o mascarpone e o chocolate do Equador.

Com a sazonalidade na ponta da língua, não há margem para desempenhos assim-assim. “Sempre que um produto for ficando fora de época vamos trocando. Não vamos trabalhar com nada que não tenha sabor, digamos assim. Se for preciso trocar uma carne ou um peixe, troca-se. Com estes vinte lugares queremos aproveitar para dar o melhor ao nosso cliente.”

História, arte e ainda um Bistrô que de Severo só tem o nome

Tiago garante que não houve pedidos especiais dos atuais donos do hotel — “deram-me liberdade total para desenhar o menu” — mas a francesa Geraldine Banier já provou este menu “várias vezes”. “Têm que saber o que estamos a fazer e vender”. Já em funcionamento, antes mesma da inauguração do Éon, encontra-se o Bistrô Severo, também a seu cargo. Neste cenário, o plano é servir “uma cozinha de conforto, acima de tudo”, com destaque para o receituário portuense. “Queremos trabalhar com cliente visitante, mas também com cliente nacional, em que as pessoas possam vir semanalmente, diariamente, ou em ocasiões especiais. Mas que encontrem a comida de conforto.”

Aqui segue-se o ritmo da carta, que tem direito a um extra, em homenagem à nacionalidade dos donos do hotel. “Trazemos um bocadinho dos dois mundos. O foie gras de França e também a pêra-bêbeda, com vinho do Porto, que usamos como sobremesa.” Mas o essencial são iguarias como um cordeiro de leite, uns camarões tigre, um rosbife, umas pataniscas ou um bolinho de bacalhau. Tudo imediatamente reconhecível. E num lado ou noutro, mais alinhado na ementa ou descontraído, dir-se-ia que as expectativas, de ambos os lados, se mantêm constantes.

“Acho que os clientes procuram ser desafiados, e cada vez mais surpreendidos. Costumo dizer que não damos só comida, damos também experiências. Queremos trabalhar as memórias acima de tudo e avivá-las. Mas também se possível criar. Não podemos só pensar em trabalhar as memórias do passado, também queremos criar memórias futuras. Uma boa cozinha, um bom produto mas algo diferenciador”.

O engenho e os dotes artísticos não se ficam pelo reduto da cozinha e pela confeção dos pratos. Com apenas 20 quartos e suítes, todos desenhados pelo designer de interiores Paulo Lobo, o cinco estrelas Palacete Severo tanto se destaca pelos elementos históricos, entre  vitrais, cerâmicas e trabalhos em madeira, como pelas exposições que acolherá.

Este endereço transforma-se agora na segunda casa da Perspective Galerie, cuja extensão portuense faz a ponte com a Perspective Galerie Paris. Originalmente localizada no coração da capital francesa, em Saint-Germain-des-Prés, lançada em 2010 por Geraldine, então com o seu nome, foi rebatizada já este ano, representado cerca de 30 artistas. “On View – Da natureza, com a natureza”, a mostra de arranque, estende-se até 9 de novembro e conta com obras de Osias André, Martinho Costa, Maria Lino, Lucile Martinez, Juan Manuel Rodriguez, Eléna Salah, Luís Troufa.

Do cultivo da alma para os cuidados com o corpo e mente, não falta ainda um Spa Severo, que ao contrário do apelido promete zelar pela pele com serenidade, aqui entregue à marca Olivier Claire. A oferta do hotel é complementada pelo jardim, piscina exterior, ginásio, biblioteca e sala de eventos.

Palacete Severo, Rua Ricardo Severo, 21, 4050-515 Porto. Diária a partir de 320 euros. Menu a partir de 150 euros