Demorou anos, mas a ameaça de ações milionárias contra o Estado por causa de uma recusa de visto do Tribunal de Contas no processo de renegociação de contratos PPP rodoviárias começou a materializar-se.

A subconcessionária do Douro Interior instaurou “uma ação arbitral com vista a obter a condenação no pagamento, por parte da Infraestruturas de Portugal, S.A., das denominadas compensações contingentes vencidas e vincendas, peticionando o valor de 232,6 milhões de euros”. A informação é avançada no relatório de Orçamento do Estado para 2025 onde também se lê que a previsão dos encargos com algumas PPP (parcerias públicas privadas) rodoviárias para os próximos anos não “contempla o pagamento das denominadas compensações contingentes, constantes dos contratos atualmente em vigor”.

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Além da Douro Interior, estão em causa novas ações a exigir os pagamentos paralelos em mais concessões — Baixo Tejo, Litoral Oeste e Algarve Litoral. Estes foram os contratos renegociados que não receberam visto do Tribunal de Contas, na sequência de uma decisão de 2018.

Esta ação foi colocada pela concessionária não obstante existir um relatório da comissão de negociação que elimina os pagamentos contingentes. Só que este relatório foi entregue aguarda uma resposta do Governo há vários anos, de acordo com informação obtida pelo Observador já depois de publicado este artigo. E como essa solução negociada não teve ainda luz verde, a concessionária avançou com a litigância.

A decisão original é relativa ao contrato da Algarve Litoral que tinha a requalificação da Estrada Nacional 125, levando a IP a suspender os pagamentos previstos na renegociação contratual. Em resposta, a concessionária avançou contra o Estado para rescindir o contrato e exigir mais de 400 milhões de euros. E  conseguiu já uma condenação parcial do Estado numa ação cautelar.

A recusa de visto à Algarve Litoral criou um nó górdio jurídico que contaminou outras concessões e gerou um enorme risco financeiro para o Estado e para a Infraestruturas de Portugal que é o cofre do Estado para estes compromissos.

O relatório do orçamento remete as duas situações — a ação contra o Estado e o não reconhecimento nas projeções de encargos futuros com as PPP dos montantes dos pagamentos contingentes — para uma auditoria do Tribunal de Contas de 2012. Esta auditoria foi uma peça central na acusação do Ministério Público, conhecida no final de 2021, contra ex-governantes de José Sócrates por causa das renegociações destes contratos. E constituiu também o fundamento para os juízes recusarem em 2018 dar luz verde à renegociação de contratos feita anos antes, durante o programa de assistência da troika.

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O fio deste novelo leva-nos a recuar até 2009 e 2010 quando o Tribunal de Contas recusou, pela primeira vez, dar visto prévio a vários contratos de subconcessão rodoviária já assinados pelo Estado. O motivo foi a constatação de que as condições finais contratadas com o vencedor de cada concurso eram piores do que as da oferta inicial feita. Entre os dois momentos, a apresentação de propostas e a adjudicação, ocorreu o epicentro da crise do subprime quando o Lehman Brothers faliu, o que resultou num agravamento dos custos de financiamento que se traduziu em contratos menos favoráveis para o Estado.

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A recusa de visto colocou o Governo de Sócrates em estado de alerta e obrigou negociar uma solução entre o Estado e os privados que para isso contaram com a assessoria de dirigentes do próprio Tribunal de Contas. Essa solução reduziu os custos para o Estado para o nível inicialmente previsto, mas criou pagamentos contingentes que não constavam de forma explícita dos contratos revistos e autorizados. Estes pagamentos paralelos teriam lugar se os privados não conseguissem refinanciar os custos da concessões a valores mais baixos do que os fechados em plena crise financeira.

Poucos anos depois — na já referida auditoria de 2012 — o mesmo Tribunal de Contas veio a pôr em causa esses pagamentos considerando-os ilegais porque não foram considerados nas decisões de atribuição do visto prévio.

Para além do inquérito judicial das PPP rodoviárias já citado, esta auditoria veio a ter outras consequências jurídicas e contratuais que podem vir a ganhar uma enorme relevância financeira. Durante o Governo de Passos Coelho, a IP então liderada por António Ramalho encetou processos negociais com os privados das subconcessões decididas no Governo anterior (de José Sócrates), e os bancos que as financiaram, com o intuito de reduzir a fatura do Estado. Essas renegociações foram concluídas com sucesso, ainda que implicando a redução dos investimentos previstos e assunção pelo Estado do risco com as manutenções. Mas quando estes contratos foram submetidos novamente ao visto do Tribunal de Contas, o resultado apanhou a IP de surpresa.

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Os juízes não ficaram convencidos sobre a poupança de custos apresentada pela Infraestruturas de Portugal. Isto, porque, consideraram que o cálculo da poupança estava a ser feito em relação a pagamentos contingentes cuja legalidade não foi reconhecida pelo Tribunal de Contas. E recusaram dar o visto prévio a um dos contratos renegociados — Algarve Litoral. Este decisão gerou toda uma cadeia de incertezas sobre as restantes negociações e a IP decidiu mesmo não enviar mais contratos renegociados ao Tribunal. Sem estes produzirem efeito, uma das concessionárias — a Douro Interior detida pela Ascendi — avançou com um tribunal arbitral a exigir o pagamento das compensações contingentes subjacentes ao único contrato que teve de facto o visto prévio do Tribunal de Contas. Ainda que mais tarde o mesmo Tribunal de Contas tenha posto em causa a sua legalidade na auditoria de 2012.