O caso das violações de crianças e adolescentes britânicas por gangues de homens de origem paquistanesa remonta quase ao início do século (terão começado em 2004) e estendeu-se pelo menos até 2013. No entanto, só a partir desse mesmo ano começaram as condenações em tribunal. Durante anos, agentes da polícia e procuradores do Ministério Público britânico ignoraram os crimes, com receio de serem acusados de racismo ou islamofobia. O caso saltou agora para a ribalta mediática porque o Partido Trabalhista, atualmente no poder, bloqueou um inquérito sobre a atuação do primeiro-ministro nos vários casos, quando Keir Starmer era responsável pelo departamento do Ministério Público que investiga os crimes públicos, entre 2008 e 2013.

Segundo o The Telegraph, Jess Phillips, a ministra que tem a cargo a pasta da violência sexual, recusou-se a lançar um inquérito público sobre os abusos sexuais levados a cabo por gangues em Oldham, uma zona nos subúrbios de Manchester. Phillips recebeu duas cartas do Conselho de Oldham em que os políticos locais pediam a abertura de um inquérito público para investigar as suspeitas de abuso sexual naquele distrito entre 2011 e 2014. Numa decisão que está a ser bastante criticada pela oposição, Jess Phillips recusou o pedido, argumentando que cabe às autoridades locais investigarem o caso.

Em ato contínuo, começaram a surgir várias críticas à decisão de Phillips, nomeadamente da parte do Partido Conservador, agora na oposição. Chris Philp, o ministro sombra dos conservadores com a mesma pasta de Jess Phillips, defende que a conduta de Starmer deve ser investigada. “Eu não posso especular sobre as motivações pessoais de Keir Starmer, mas acho que examinar a conduta da Procuradoria do Reino Unido, inclusive durante o período em que Keir Starmer era o diretor do departamento, seria uma das coisas para as quais este inquérito certamente deveria olhar”, defendeu, em declarações à BBC Radio 4.

Na rede social X, a ex-primeira-ministra conservadora Liz Truss acusou ex-responsáveis no Ministério da Administração Interna de “desculparem bandidos islâmicos mascarados” e que, com esta decisão, “fica claro de que lado” está Jess Phillips. Uma das críticas mais contundentes veio, no entanto, do exterior e pela voz de Elon Musk.

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O futuro membro da administração Trump escreveu, no X, que Phillips “merece estar na prisão” por causa da decisão “vergonhosa” que tomou, ao recusar investigar a conduta de Keir Starmer. “Quem era o chefe do CPS [Crown Prosecution Service] quando gangues de violadores foram autorizados a explorar meninas sem enfrentar a justiça? Keir Starmer, 2008-2013. Quem é o chefe de Jess Phillips agora? Keir Starmer. A verdadeira razão pela qual ela recusa investigar os gangues de violadores é porque isso obviamente levaria à culpa de Keir Starmer“, acusou Musk.

Relatório aponta falhas à polícia e ao Ministério Público britânico

O caso de Oldham foi apenas um dos vários confirmados em todo o Reino Unido em que dezenas de menores de idade foram exploradas ou abusadas sexualmente por grupos de cidadãos de origem paquistanesa, a terceira maior comunidade imigrante no país, segundo os censos de 2021, com mais de 650 mil pessoas — sendo que há ainda mais de 1,6 milhões de britânicos com origem naquele país asiático.

Um relatório, publicado em 2022, apontou falhas às agências governamentais na proteção das menores, maioritariamente oriundas de famílias pobres, e que foram abusadas em council houses (casas do estado atribuídas a pessoas com baixos rendimentos), bares de shisha ou táxis.  O relatório inclui declarações de uma das vítimas alegando que raparigas foram forçadas a entrar numa gaiola e obrigadas a “latir como um cão ou a vestirem-se como um bebé” por abusadores que descreveu como “pervertidos”. Uma das entidades alvo de críticas foi a própria polícia, que, nuns casos, levou a cabo investigações fracassadas e, noutros, mostrou indiferença perante o risco em que vítimas poderiam estar — quando, perante as denúncias, enviava as menores para os locais onde eram alvo de abusos sexuais. Uma outra vítima garantiu que tinha sido instruída por um gangue a “procurar crianças em nome dos homens que abusavam dela”.

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Em 2012, quando já dirigia o departamento dedicado aos crimes públicos há quatro anos, Keir Starmer admitiu que a entidade que liderava abandonara raparigas durante vários anos, dando como exemplo a decisão de retirar a acusação contra um suspeito de violação, em 2009, quando havia provas suficientes para deduzir a acusação.

Starmer reconheceu, na altura, que a etnia dos suspeitos foi um fator que influenciou o trabalho dos procuradores. “Em vários casos que nos foram apresentados, particularmente envolvendo grupos, há claramente uma questão de etnia que deve ser compreendida e abordada. Como procuradores, não nos devemos esquivar disso. Mas se formos honestos, é a abordagem das vítimas, a questão da credibilidade, que fez com que esses casos não fossem processados no passado. Houve uma falta de compreensão”, reconheceu o atual primeiro-ministro.

Trabalhistas afastam-se dos crimes com receio de perdas eleitorais

Esta semana, um ex-dirigente local do Partido Trabalhista em Rochdale (outro subúrbio a norte de Manchester onde se registaram vários crimes do género) revelou que um ex-presidente do labour o havia avisado de que chamar a atenção para a etnia dos membros dos gangues poderia prejudicar o partido, numa zona de grande imigração asiática e onde os votos da comunidade paquistanesa podem ser importantes.

O The Telegraph lembra que, na imprensa britânica, começa a circular a tese de que Jesse Philips descartou a uma investigação sobre os crimes em Oldham porque o seu círculo eleitoral de Birmingham Yardley (nos subúrbios da terceira maior cidade do Reino Unido) tem uma alta proporção de residentes muçulmanos, sendo que, nas eleições gerais do ano passado, Phillips conseguiu segurar o lugar na Câmara dos Comuns numa eleição renhida, decidida por menos de 700 votos.

Foi em Rochdale que, em 2012, nove homens foram condenados por tráfico sexual e outros crimes, incluindo violação. Oito eram de origem britânica-paquistanesa e um era um requerente de asilo afegão. Desde então mais 33 homens foram condenados, com o Departamento da Polícia da área da Grande Manchester a pedir desculpa publicamente por não ter investigado de forma mais minunciosa as primeiras denúncias que foram surgindo.