O Ministério Público deverá ser confrontado em breve com a necessidade de investigar a alegada prática generalizada de escutas ilícitas por parte dos serviços de informações. Tudo porque João Luís, ex-diretor do Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (SIED) que está a ser julgado pelos crimes de acesso indevido a dados pessoais e abuso de poder no âmbito do chamado caso Ongoing, extravasou as fronteiras do processo na última sessão e afirmou claramente que os serviços de informações têm uma atividade regular que lhes está expressamente proibida pela lei: a realização de escutas ambientais. Perante a surpresa geral do tribunal, João Luís resolveu ‘abrir o livro’ – parte dele, pelo menos.
Questionado pelo seu advogado, Paulo Simão Caldas, sobre se sabia da existência de material utilizado “exclusivamente para escutas telefónicas nos serviços [de informações]”, João Luís afirmou em tribunal:
Antes das tecnologias existia, existe, material para escutas. Estive envolvido em várias dessas escutas e esse material ainda deve lá estar”. Aparelhos esses que, explica, serviam para escutar “telefones fixos, de sala para sala”. Hoje em dia, porém, o material técnico é outro e é utilizado em várias escutas ambientais, mas não em telemóveis: “Que eu saiba não existe nenhum para escutas de telemóveis”.
Questionado pela procuradora Teresa Almeida, que representa a acusação, o ex-operacional explicou ainda que esses meios de interceção são utilizados “para recolha de informação áudio à distância, sem que estas [quem está a ser escutado] saibam”, garantiu o arguido. Por insistência da magistrada, o ex-diretor do Departamento Operacional do SIED confirmou que se tratavam de “escutas ambientais”.
João Luís foi mais longe e afirmou, segundo reconstituição da sessão efectuada junto de vários intervenientes, que a prática generalizada de escutas ambientais era do conhecimento e tinha a autorização das chefias das secretas, sem especificar nomes.
O que é uma escuta ambiental?
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As escutas ambientais consistem na captação de sons ou imagens em ambientes fechados. Os aparelhos de escuta ou de vídeo (emissores) são escondidos em objetos de uma ou várias assoalhadas de uma casa, emitindo sinais para os recetores que gravam o som ou a imagem das pessoas presentes no espaço monitorizado pelo operacional.
Teresa Almeida afirmou no final do testemunho de João Luís que iria ordenar na sessão seguinte (que vai decorrer no dia 28 de janeiro) a extração de certidão das suas declarações para apreciação por parte do Ministério Público (MP). A magistrada pretende ouvir os testemunhos dos membros do Conselho de Fiscalização dos Serviços de Informações, previsto precisamente para dia 28, antes de enviar as declarações para o MP.
Em causa poderão crimes como gravação ilícita, devassa da vida privada, abuso de poder ou acesso indevido a dados pessoais. No caso de João Luís, poderá ser investigado por violação do segredo de Estado.
Sendo crimes públicos, o procurador que receber essa certidão não terá outra alternativa senão abrir um inquérito criminal para investigação dos crimes em causa.
Neste caso em concreto, e tendo em conta a sensibilidade uma investigação generalizada aos serviços de informações da República por parte do Ministério Público, a procuradora-geral Joana Marques Vidal deverá informar-se sobre o caso antes de ser aberto um inquérito que poderá ser histórico.
O que diz a lei
A realização de qualquer tipo escuta, seja ela telefónica ou ambiental, está explicitamente vedada aos serviços de informações, constituindo, segundo a lei portuguesa, um crime público que o MP tem a obrigação de investigar. Basta consultar as páginas dos serviços de informações na internet para constatar que tal prática é proibida.
[O SIED] também não pode realizar escutas. A Lei Orgânica do SIED impõe como limite à sua atividade a proibição de serem desenvolvidas atividades de pesquisa, processamento e difusão de informações que envolvam ameaça ou ofensa aos direitos, liberdades e garantias consignados na Constituição e na Lei. Com efeito, o artigo 34º, n,º 4, da Constituição proíbe «toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal». Ora, como os funcionários e agentes do SIED não podem investigar crimes nem instruir processos, também lhes está vedada qualquer interceção de comunicações, trate-se de chamadas telefónicas, correspondência ou quaisquer outras”, lê-se na página oficial do SIED.
O caso Ongoing
Recorde-se que Jorge Silva Carvalho, ex-diretor do SIED, está a ser julgado pelos crimes de corrupção para ato ilícito, violação do segredo de Estado, abuso de poder e acesso indevido a dados pessoais. Estes dois últimos crimes são também imputados a João Luís, homem de confiança de Silva Carvalho no SIED. Já Nuno Vasconcelos, líder executivo do Grupo Ongoing, é suspeito da pratica do crime de corrupção ativa para ato ilícito.
Os últimos arguidos são Nuno Dias, ex-agente do Serviço de Informações e Segurança (a secreta que lida com as ameaças internas) acusado de um crime de acesso ilegítimo agravado, e a sua mulher Gisela Fernandes Teixeira (ex-funcionária da Optimus) suspeita dos crimes de acesso indevido a dados pessoais e violação do segredo profissional. Ambos estão na origem do caso que deu origem a este processo: o alegado acesso dos espiões à faturação detalhada do jornalista Nuno Simas com o objetivo de descobrir as suas fontes.
A caixa de pandora das secretas
O julgamento de Jorge Silva Carvalho abriu uma espécie de caixa de pandora da segurança do Estado, permitindo descobrir o que é suposto ser secreto: a atividade dos serviços de informações. Praticamente em todas as sessões, e além da alegada realização de escutas, têm sido reveladas outras alegadas práticas ilícitas por parte dos operacionais dos serviços de informações.
Na mesma sessão no Tribunal de Instância Central, no Campus da Justiça, em Lisboa, João Luís declarou ainda que as secretas recorrem a “fontes humanas” que lhes passam informações pessoais de clientes, não só nas operadoras telefónicas, mas também em bancos, na Segurança Social ou nas Finanças, onde os serviços de informações portugueses têm vários contactos. O arguido disse ainda que estes procedimentos “marginais” são comuns:
“É o modus-operandi dos serviços ter acesso a operadoras. Existem meios técnicos nos serviços [escutas, seguimento, vigilância, entre outros], como aqueles que podem ver num filme bom ou mau de cinema e de televisão”.
O ex-director operacional falou ainda em pormenor de operações de vigilância, de fotografias que são tiradas aos alvos que estão a ser monitorizados e dos relatórios que são produzidos – tudo atividades que estão vedadas às secretas portuguesas.
João Luís disse ainda que, ao longo de 27 anos (aqueles em que esteve ao serviço das secretas portuguesas) nunca viu ninguém do Conselho de Fiscalização: “Nem no SIS nem no SIED”, acrescentou.
Jorge Silva Carvalho, o principal arguido do caso Ongoing, falou de forma genérica mas foi taxativo:
90% do modus operandi dos serviços de informações é ilegal. Em tese, porque não posso abordar este assunto em concreto, os serviços têm competências que estão descritas na lei, que explica como algumas atividades lhes estão vedadas. Mas a lei não diz que meios se podem usar. São meios claramente ilegais. Como, por exemplo, vigiar pessoas no espaço público, fotografá-las, filmá-las. São matérias que estão abrangidas pelo segredo de Estado. Para Silva Carvalho, “o segredo de Estado serve na prática para se evitar falar do modus operandi”.