A tese

Vítor Constâncio tentou, com uma carta de duas páginas, colocar um ponto final no assunto: devido à “posição institucional do BCE”, que “responde perante o Parlamento Europeu”, a sua presença não pode ser exigida na comissão parlamentar. Nem presencialmente, nem por videoconferência — nem, sequer, por escrito.

Os factos

Não é só em Portugal que Constâncio tomou esta posição. Também na Irlanda o BCE – e Vítor Constâncio, ele próprio – recusou participar num inquérito à crise bancária que assolou o país em 2010. Mario Draghi e Vítor Constâncio foram várias vezes convidados a participar nesse inquérito e ambos se escudaram com a disposição legal que faz com que o BCE, enquanto autoridade monetária, responda, efetivamente, em termos primordiais, ao Parlamento Europeu.

É essa a resposta que, segundo a carta de Constâncio, tem sido “comunicada formalmente a Parlamentos nacionais (inclusive ao Parlamento português)”.

Porém, a certa altura durante a preparação do inquérito irlandês, Mario Draghi disse que Vítor Constâncio estaria disponível para participar numa “troca informal de visões”, “no âmbito do seu mandato”, que pudesse acrescentar valor ao inquérito. Após esta abertura de Draghi, segundo quem elaborou este inquérito, a Comissão ficou “estupefacta quando Vítor Constâncio rejeitou essa participação no processo enquanto este estivesse em fase de recolha de provas e até que entregasse o seu relatório final”.

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Na conclusão do relatório, a comissão irlandesa deixou fortes críticas ao “falhanço do BCE, em especial, em colaborar com o inquérito, ainda que [a comissão] reconheça que não havia obrigação legal para o fazer“.

Há, contudo, uma grande diferença entre o inquérito irlandês e a comissão Banif. Os factos sob análise na comissão irlandesa remontam ao final da década passada, quando o BCE não tinha ainda os poderes de supervisão bancária que recebeu em novembro de 2014. Em contraste, ao longo de todo o último ano de vida do Banif a responsabilidade última pela supervisão deste banco era do Mecanismo Único de Supervisão (BCE) — ainda que, como banco mais pequeno, a responsabilidade mais imediata fosse do Banco de Portugal.

Só por este facto — e nem é necessário entrar nas trocas de e-mails em que Vítor Constâncio aparecia citado em e-mails da presidente do supervisor europeu, Daniele Nouy, como parte envolvida neste processo — a resposta dada à comissão irlandesa não pode, discutivelmente, ser a mesma que é dada à comissão do Banif.

Por outras palavras, se na altura dos problemas da Irlanda o BCE não era mais do que a autoridade monetária (ainda que tenha tido um papel crucial, nomeadamente, na questão das perdas aos obrigacionistas sénior que estiveram em cima da mesa mas não avançaram). No problema do Banif, por outro lado, o BCE estava diretamente envolvido na supervisão e teve um papel crucial na forma como a resolução foi feita.

Mas voltando à frase de Constâncio, e ligando à discussão dos últimos parágrafos, o BCE tem ou não obrigação de prestar contas aos parlamentos nacionais?

Tem, sim. O artigo 21º do regulamento de 2013 que atribuiu poderes de supervisão bancária ao BCE diz o seguinte:

Os parlamentos nacionais dos Estados-Membros partici­pantes podem, através dos seus próprios procedimentos, solici­tar ao BCE que responda por escrito a quaisquer observações ou perguntas que lhe tenham apresentado relativamente às atribui­ções que lhe são conferidas pelo presente regulamento.

A fundamentação legal para explicar porque é que Vítor Constâncio deve participar na comissão é que existe uma responsabilidade de supervisão e porque é isso que explica um dos considerandos (55) do regulamento que criou o Mecanismo Único de Supervisão.

Se, por um lado:

O BCE deverá, por conseguinte, responder por essas atribuições perante o Parlamento Europeu e o Conselho, como instituições democraticamente legitimadas que representam os cidadãos da União e os Estados-Membros.

Por outro lado, o considerando 56 diz que:

O BCE também deverá transmitir aos parlamentos nacionais dos Estados-Membros participantes os relatórios que dirige ao Parlamento Europeu e ao Conselho. Os parlamentos nacionais dos Estados-Membros participantes deverão poder dirigir observações ou perguntas ao BCE sobre o exercício das suas atribuições de supervisão, às quais o BCE poderá responder. (…) O parlamento nacional de um Estado-Membro participante também poderá convidar o Presidente ou um representante do Conselho de Supervisão a participar numa troca de impressões em relação à supervisão das instituições de crédito nesse Estado-Membro, juntamente com um representante da autoridade nacional competente. Este papel dos parlamentos nacionais é apropriado, dado o impacto que as medidas de supervisão podem ter nas finanças públicas, nas instituições de crédito, nos seus clientes e empregados e nos mercados dos Estados-Membros participantes.

Conclusão

Enganador. Não existindo dúvidas de que o caso Banif e as medidas de supervisão tiveram impacto nas finanças públicas, como se ressalva no considerando 56, a regulamentação que entregou ao Mecanismo Único de Supervisão os poderes de supervisão deixa claro que Vítor Constâncio deve responder às perguntas e poder participar, pelo menos, “numa troca de impressões”. A justificação que foi dada à comissão irlandesa não pode ser repetida no caso Banif porque na altura dos problemas na Irlanda a supervisão não era responsabilidade do BCE.

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