O Banco de Portugal admitiu uma “possível relevância criminal da conduta dos signatários” das cartas de conforto que asseguravam o reembolso pelo BES do investimento realizado por entidades venezuelanas em dívida das empresas do Grupo Espírito Santo (GES). Numa mensagem enviada em julho ao então administrador com pelouro jurídico do banco, Pedro Machado, responsável pelo departamento de supervisão do Banco de Portugal pediu a Rui Silveira que lhe fornecesse uma declaração escrita assinada por ambos signatários (Ricardo Salgado e José Manuel Espírito Santo) confirmando que as cartas foram redigidas pelos próprios ou por sua ordem.

O Banco de Portugal foi informado da existência desta cartas no próprio dia (noite) em que a comissão executiva do banco as conheceu, a 15 de julho, através do envio de cópia dos documentos, tendo o banco acrescentado que tinha sido pedida uma “averiguação urgente dos factos em questão e das respetivas potenciais implicações para o BES”. Pedro Machado pediu ao banco que esclarecesse se a “correspondência, em termos de procedimento, forma e conteúdo, constitui uma garantia juridicamente vinculativa concedida pelo BES aos destinatários”, de acordo com documentos enviados à comissão parlamentar de inquérito aos atos de gestão do Banco Espírito Santo e Grupo Espírito Santo (GES).

Banco de Portugal estranhou falta de cuidado e rigor das cartas

Dois dias depois, Pedro Machado pediu a Rui Silveira “esclarecimentos por escrito” de Ricardo Salgado porque apesar do cargo não ser referido na carta, a assinatura parecia a do ex-presidente do BES. Machado quer provas da autenticidade da carta e das assinaturas, explicando que a “dúvida suscita-se fundadamente, visto que os termos pouco cuidados e tecnicamente pouco rigorosos em que as cartas aparecem redigidas parecem dificilmente conciliáveis com a experiência profissional dos supostos signatários”.

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Em resposta, Rui Silveira adianta ter confirmado pessoalmente com os dois ex-membros da comissão executiva. Na troca de correspondência (por mail) com alguns colaboradores do banco, o então administrador com o pelouro jurídico revela que falou pessoalmente com Salgado no dia 16 de julho. O ex-presidente do BES confirmou as duas cartas, mas não se lembrava se tinha assinado mais documentos com conteúdo idêntico. José Manuel Espírito Santo só se lembra destas duas cartas. Amílcar Morais Pires, Isabel Almeida (diretora financeira) e Ana Rita Barosa afirmaram desconhecer as missivas.

Apesar de assinadas à revelia do resto da comissão executiva, das regras internas do banco e das ordens do Banco de Portugal, os pareceres jurídicos internos e externos sustentaram a sua validade, pelo que a auditora KMPG impôs que fossem provisionadas responsabilidades de 267 milhões de euros a 100%, mesmo no caso de o banco decidir contestar. Este foi um dos factos extraordinários que fez disparar o prejuízo semestral do BES.

As cartas de conforto em nome de entidades identificadas com a Petróleos da Venezuela (Fundo de Desarrollo Nacional da Venezuela e Banco de Desarrollo Economico Y Social da Venezuela) foram assinadas em nome do BES por Salgado e Espírito Santo no dia 9 de junho, antes do presidente do banco se ter demitido. Estes compromissos vinculam o BES a garantir a liquidez (na prática a reembolsar) o investimento realizado pela Petróleos de Venezuela (PDVSA) em títulos de dívida de empresas do GES.

A importância da Venezuela para o BES e para Portugal

No Parlamento, Ricardo Salgado sublinhou que a Petróleos da Venezuela, era um cliente importante do BES e que estava disponível para investir (700 milhões de euros) no aumento de capital da Rioforte. Foi por isso que foram escritas as cartas de conforto que, segundo ex-presidente do BES, apenas asseguravam a substituição da dívida da ESI (Espírito Santo Internacional) por dívida da Rioforte, o que não foi possível concretizar.

José Manuel Espírito Santo revelou na comissão de inquérito que colocou a sua assinatura a pedido do ex-presidente do BES. O gestor foi chamado por Ricardo Salgado que lhe explicou a razão das cartas, tendo realçado ser absolutamente necessário enviá-las e que precisava de sua solidariedade. “Perguntei se estava tudo conforme e assinei porque fiz confiança. Quem é que em Portugal não confiava no Dr. Ricardo Salgado?”

Quando revelou a existência das cartas, a 15 de julho, o então administrador João Freixa, assinalou que os clientes da Venezuela tinham importantes recursos depositados no banco e que estariam disponíveis para trocar os títulos de dívida por depósitos na sucursal de Caracas, o que seria importante para a liquidez do BES. Freixa lembrou ainda que uma das entidades beneficiadas era responsável por um programa de social de distribuição de alimentos, pelo que o não reembolso de dívida do GES “se traduzirá inevitavelmente num facto político muito relevante naquele país, o qual poderá inclusivamente ter repercussões no relacionamento com Portugal e com outras empresas portuguesas ativas na Venezuela”.

Marc Oppenheimer, representante do Crédit Agricole, questionou a necessidade de assumir já a perda total, porque isso fragilizaria a posição negocial do banco, mas a auditora ameaçou com uma “qualificação das contas” (reservas) e a maioria dos administradores acabou por concordar com a provisão tal como aconteceu com a assunção total das perdas com obrigações do BES transacionadas pela Eurofin. Estas operações estarão entre os factos referidos no comunicado do Banco de Portugal que indiciam a prática de atos de gestão gravemente prejudiciais para os interesses do BES e em incumprimento das determinações que “podem ter consequências em matéria contraordenacional e, porventura, criminal”. Estas suspeitas foram investigadas no quadro da auditoria forense ao BES.

Os argumentos para contestar a validade

Já a 6 de agosto de 2014, em carta endereçada a Vítor Bento, Rui Silveira, que entretanto tinha sido suspenso de funções, remete para o primeiro presidente do Novo Banco argumentos que poderiam dar força à pretensão de contestar a validade dos compromissos assumidos na Venezuela.

Rui Silveira admite que não “se afiguram dívidas quanto à vinculação do BES”, apesar das cartas terem sido assinadas “sem o conhecimento prévio dos restantes membros da comissão executiva” e de não terem sido “objeto de qualquer deliberação desta, nem tão pouco de registo contabilístico em rubrica competente”. No entanto, assinala que há uma “condição precedente de cuja verificação poderão ser ou não reclamados, pelos respetivos destinatários, as obrigações garantidas em alternativa”. Ou seja, para que a garantia comprometesse o BES, a Petróleos da Venezuela deveria ter subscrito títulos emitidos pela Rioforte em substituição da dívida que tinha em carteira da ESI (Espírito Santo Internacional). Essa operação não aconteceu, na sequência dos processos que culminaram com a insolvência das suas sociedades do GES. “Do exposto resultará que pode não estar verificada a condição de exigibilidade do cumprimento das obrigações de prestação alternativa validamente assumidas pelo BES”.

Quando contestou a decisão do Banco de Portugal de o suspender de funções do BES, por ter a tutela da auditoria interna, Rui Silveira deu o exemplo das cartas de conforto à Venezuela para ilustrar a sua colaboração com o supervisor e o cumprimento do seu dever de diligência enquanto administrador do banco.