“Uma medida desadequada, desnecessária e excessiva”, que dá azo à criação de uma “sociedade civil policial”. É este o entender da Comissão Nacional de Proteção de Dados, que emitiu esta terça-feira um parecer sobre a proposta do Governo de criar um registo criminal de pedófilos, e de permitir que os pais possam ter acesso parcial à informação. Ministra da Justiça vai estar esta quarta-feira no Parlamento a defender a proposta.

O parecer, assinado pela presidente da CNPD, Filipa Calvão, junta-se desta forma aos restantes oito pedidos de apreciação já feitos pelo Parlamento desde que a proposta saiu do Conselho de Ministros e deu entrada na Assembleia, em março. O entender da Proteção de Dados destrói totalmente o diploma do Governo identificando seis pontos onde, a seu ver, se está perante violações de princípios legais e constitucionais:

– A proposta “não é adequada a realizar a finalidade de acompanhar a reinserção social dos condenados e auxiliar a investigação criminal, não justificando a restrição de direitos, liberdades e garantias”;

– É “discriminatória”, por promover a “estigmatização e exclusão social”;

– A inclusão de registos anteriores à aprovação da proposta de lei, com efeitos retroativos, “viola o princípio da legalidade”;

– A possibilidade de consulta pública do registo e das informações pessoais nele contidas trata-se, segundo a CNPD, de uma “sanção acessória encapotada” que acresce às penas já previstas na lei;

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

– O acesso dos pais à informação, ainda que parcial, “não satisfaz a finalidade de acompanhar a reinserção social dos condenados e auxiliar a investigação criminal” e restringe, “sem justificação”, o direito de privacidade e proteção dos dados pessoais. É, por isso, “uma medida desadequada, desnecessária e excessiva”, lê-se.

– A permissão de acesso aos cidadãos (pais) “transfere” a função de prevenção criminal do Estado para os cidadãos, ameaçando os valores da “segurança, ordem e tranquilidade pública” e promovendo o risco de criar uma “sociedade civil policial”.

Ao longo de todo o parecer, de 27 páginas, a Proteção de Dados aponta o dedo ao acesso por terceiros, neste caso cidadãos com responsabilidades parentais de menores de 16 anos, a um registo criminal específico por defender que viola, em toda a linha, “os princípios da proteção de dados, nomeadamente de adequação, necessidade e proporcionalidade e da minimização dos dados pessoais”. Resta saber, diz a comissão, se a “omissão” destes princípios constitucionais no diploma se deve a um “lapso” ou a uma “opção político-legislativa”.

Outro aspeto muito criticado é a possibilidade de um agressor condenado a 10 anos de prisão poder permanecer 20 anos na lista, o que, segundo a CNPD, “pode revelar-se numa perpetuação que não é compaginável com os ideais de reinserção social orientadores de qualquer sistema penal moderno, onde se situa o português”. Mais: qual o critério que poderá levar os pais a justificar “fundado receio” para terem acesso às informações na lista? “Um rumor, uma conversa de vizinhos, uma desconfiança pessoal?”, questiona a Proteção de Dados, afirmando que o diploma é omisso nesse ponto e levantando outra dúvida – havendo suspeita sólida, por que não se remete a queixa diretamente para as autoridades competentes?

PGR sugere que condenados possam pedir para ser retirados

A Procuradoria-Geral da República não acredita que a lista de pedófilos vá contra a Constituição no que respeita às entidades públicas sujeitas a segredo profissional, mas o mesmo não se aplica aos pais das vítimas. E, nesse sentido, Joana Marques Vidal faz sugestões ao legislador, nomeadamente para retirar da proposta toda a parte relativa à permissão de acesso pelos pais.

Uma outra sugestão feita pela PGR é a de que a lei preveja a possibilidade de o pedófilo pedir para que o seu nome seja retirado da lista. Lê-se no parecer:

“Sugerimos que se preveja a possibilidade de o visado requerer a um juiz, de forma fundamentada, que o seu nome seja retirado do registo por deixar de ser necessário para as finalidades de proteção dos direitos dos menores e prevenção do crime, nomeadamente por deixar de existir risco significativo de reincidência”.

No parecer enviado também esta semana à Assembleia da República, o Conselho Superior do Ministério Público diz que a opção de permitir aos pais aceder parcialmente às informações da base de dados lhe “suscita dúvidas fundadas quanto à proporcionalidade da medida” e como tal à violação do direito à privacidade, defendido pela Constituição. Para que não o violasse e houvesse uma restrição ao direito à privacidade devia ser “compensada pela salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.

Ora para a PGR, o acesso “por parte de cidadãos particulares” a dados dos condenados significa “uma gravíssima restrição dos direitos” que “poderá excluir completamente o condenado de qualquer convívio em sociedade”.

O Ministério Público põe as duas coisas na balança para dizer que das duas uma: ou a informação é partilhada com todas as pessoas que privam com a criança, desde pais, avós, professores ou outros familiares e a medida tem resultados, ou a pessoa que acedeu aos dados do pedófilo guarda a informação para si e “fica reduzida a eficácia da proteção de menores” que leva à justificação de restrição do direito à privacidade do condenado.

E não “parece crível” à PGR que uma pessoa “alarmada” pela presença de um condenado por violação de menores, não partilhe a informação com outros. “Se o conhecimento alargado pela população afeta a eficácia do reinserido do agente, a adequação da medida ficará, também por esta via posta em causa”, lê-se.

Tendo em conta que, como está desenhada, a medida vai contra a Constituição, a PGR sugere mesmo que se retire da proposta a “possibilidade de os cidadãos acederem à informação”.

A proposta do Governo tem sido criticada por todas as entidades judiciais a quem o Parlamento pediu pareceres jurídicos, e tem sido alvo das críticas de todos os partidos da oposição. O debate na generalidade, com a presença da ministra da Justiça, vai ser feito esta tarde, no Parlamento. A votação da proposta está agendada para quinta-feira.