Quase dez anos depois, continua a escrever-se Adegga com dois “g”. Cabe a André Ribeirinho o papel de relembrar como se soletra a empresa que fez nascer em 2006, numa altura em que o mundo vínico estava de portas fechadas (ou muito perras) para o online. Mas se esta começou por ser a primeira rede social de vinhos em contexto nacional, e pioneira além-fronteiras, atualmente é muito mais do que um site onde se comentam vinhos à la carte.
O Adegga pretende ser uma plataforma que aproxima os produtores dos consumidores, não só no universo digital mas também no offline. A culpa é dos Adegga WineMarkets, eventos com calendário próprio que ao longo do ano convidam centenas (se não milhares) de enófilos a provar néctares de 40 produtores. A inovação é ainda um trademark, com a empresa a ser responsável pelo código de identificação de vinhos AVIN e pelo SmartWineGlass, um copo inteligente que permite aos visitantes dos mercados vinícolas recordar o que provaram.
Em entrevista ao Observador, um dos fundadores do Adegga recorda como foi difícil convencer consumidores e produtores da necessidade de uma rede social num mundo tido como conservador e elitista: “As notas de prova não ajudam o consumidor a perceber porque é que ele deve beber aquele vinho ou não. Zero. Nunca ninguém disse ‘Hmm, notas de violeta, é mesmo o que apetece agora!’. (…) É difícil perceber porque é que uma indústria inteira se baseia na descrição do vinho com base em notas de prova que a maior parte das pessoas não vai perceber”.
O Adegga surge em 2006. Foi difícil encontrar o vosso espaço?
O Adegga começou como uma rede social e, nessa altura, ainda nem o Facebook era conhecido (estava apenas aberto aos universitários). Imagine chegar a um dos mercados mais conservadores do mundo, o do vinho, e ter um conjunto de jovens não conhecidos na área a fazer uma rede social de vinhos. Inicialmente, os consumidores não percebiam porque é que isto era necessário. Agora, imagine do lado do produtor… Lembro-me de termos conversas com produtores onde tentávamos explicar o que fazíamos, dizendo-lhes que, estando eles na rede social, podiam promover os seus vinhos. E eles perguntavam como. O primeiro produto que tivemos no Adegga consistia num conjunto de contas anuais que permitiam aos produtores ter acesso às estatísticas de quem gostava dos vinhos e essas coisas todas… ninguém queria aquilo. Não fazia sentido para os produtores. Curiosamente, hoje vendemos uma coisa que é muito parecida, mas num contexto completamente diferente.
Sente que o Adegga mexeu com o mercado dos vinhos?
Teve impacto em Portugal porque, de repente, o produtor ia ao Google, pesquisava o nome do seu vinho e aparecia um site chamado Adegga dentro do qual estava uma pessoa a dizer que tinha gostado muito do vinho em questão. Os consumidores gostavam disso porque tinham acesso a uma opinião que não a de um crítico, mas, por outro lado, os produtores viam que qualquer pessoa tinha um palco para falar sobre os seus vinhos.
Os produtores associados ao Adegga sentiram resultados ao longo destes anos?
No início não sentiam, daí a nossa dificuldade. Por um lado, tínhamos impacto mediático, por outro, zero impacto em termos de negócio. Ao contrário de um Booking.com, o Adegga não foi um canal de vendas nos primeiros cinco anos. Se por acaso estávamos a ter impacto ao nível de vendas, não o sabíamos. E como não o sabíamos, não podíamos prová-lo.
Foi nesse momento que sentiram a necessidade de passar para o mundo offline?
Sim, por causa das vendas e por causa de uma coisa muito importante no mundo dos vinhos, isto é, o contacto pessoal. No momento em que se conhece um produtor, transforma-se completamente a opinião que se tem de um vinho — o vinho passa de um rótulo numa prateleira, a um preço simpático, para um produto difícil de fazer e que foi feito pela pessoa que está à sua frente. Os WineMarkets permitiram isso. Quando convidámos as pessoas da rede social para o primeiro WineMarket elas perceberam que podiam conhecer os produtores dos vinhos que já comentavam na rede social. E quando fizemos o segundo apercebemo-nos de que tínhamos mais pessoas a ir aos eventos do que a usar a rede social.
O que é que vos deu a entender que o modelo ia funcionar?
O feedback que tivemos aconteceu em dois níveis: um, os produtores e os consumidores adoraram; dois, vendemos. Ou seja, as pessoas compravam os vinhos de que gostavam. Então, pela primeira vez eu podia dizer a um produtor “olhe, eu posso ajudar o seu vinho não só a ser vendido, como promovido. Quer trabalhar mais comigo?”. Assim, convidei-os para o segundo evento. Aí percebemos que conseguíamos fechar um ciclo: conseguíamos convencê-los a conhecer as pessoas no online, a dar a conhecer os vinhos no offline e, depois, algumas dessas pessoas voltavam ao site. Hoje em dia, o Adegga continua a ser uma rede social de vinhos, mas a rede social é apenas uma das partes do todo.
À partida, esse parece ser um modelo de negócio óbvio. Foi difícil de implementar?
O mundo do vinho é uma das indústrias mais complicadas no que a resolver problemas que parecem óbvios diz respeito.
Como assim?
São anos e anos de formas de funcionar que têm alguns resultados. Por exemplo, quem exporta vinho vende a um importador que vende a um distribuidor… Há uma cadeia que já está montada e essas relações têm anos. O difícil no mundo do vinho é que, mesmo quando essas ligações não estão a funcionar, os produtores têm uma resistência elevadíssima à mudança. É uma indústria muito conservadora: mesmo quando têm problemas, preferem ser conservadores a tentar resolver os problemas de uma forma que nunca foi resolvida.
Li que, no Adegga, podemos estar perante uma espécie de democratização do vinho?
Tem que ver com o acesso dos vinhos aos consumidores. No Adegga nunca nos posicionámos como alguém que comunica o vinho na linguagem das elites. Fugimos sempre às notas de provas, queremos fazer uma comunicação em que o vinho é encaixado no lifestyle das pessoas.
Então, como é que comunicam o vinho?
A coisa mais importante do vinho, hoje em dia, é comunicar às pessoas que este faz parte da vida delas, seja porque a pessoa chegou a casa e está cansada e quer beber um copo de vinho, seja porque está junto à piscina e quer beber um rosé… Tem tudo que ver com o momento em que a pessoa deve consumir aquele vinho. As notas de prova não ajudam o consumidor a perceber porque é que ele deve ou não beber aquele vinho. Zero. Nunca ninguém disse ‘hmm, notas de violeta, é mesmo o que apetece agora!’. Acabei de dizer uma frase tão óbvia que torna difícil perceber porque é que uma indústria inteira se baseia na descrição do vinho com base em notas de prova que a maior parte das pessoas não vai perceber.
O cliente do vinho está a mudar?
O vinho é prazer. Obviamente que, para muitas pessoas, vinho é status (dependendo dos vinhos), mas há uma coisa comum a todas essas situações: o prazer. A única coisa que as pessoas querem é sentir confiança de que o vinho que escolheram as vai tornar mais felizes no momento em que o consumem. No início do Adegga tínhamos notas de vinho e percebemos que essa não era a forma de comunicar. Nós, enquanto indústria, comunicámos durante muitos anos desta forma e quase criámos um estigma nas pessoas, no sentido de que o vinho tem de ser comunicado assim.
Também a propósito disso, parece existir um certo estigma quando se escolhe um vinho…
Sim. Quando falo de uma indústria conservadora tem que ver com isso. Temos um problema enorme: as pessoas não conseguem escolher vinhos, é difícil escolher vinhos, é uma coisa complicada. Porque há oferta, porque a comunicação não é feita de forma clara e porque se tem uma garrafa à frente que não se pode provar, por isso é que as provas são tão importantes. É um medo que foi criado nas pessoas, de que há melhores vinhos do que outros. E há. Mas a questão é que não são os pontos ou as críticas de uma pessoa que nunca se viu na vida que devem determinar que aquele vinho é melhor do que o outro. A nossa opinião é mais válida do que a do crítico.
Será que isso é a componente elitista do vinho a funcionar?
É essa componente elitista que, de certa forma, deve ser removida. Quando um produtor está à frente do consumidor não existe um crítico a recomendar um vinho, não existe uma nota de prova, não existe nada. Existe, sim, um produtor a contar a história de porque é que fez o vinho. O vinho é perceção. O melhor vinho do mundo pode ser aquele de que menos se gosta. O que nós fizemos durante anos — nós sendo a indústria do vinho –, foi mostrar às pessoas que se alguém diz que aquele vinho é o melhor, toda a gente também o deve achar. É um erro. Se não se gosta, não se gosta.
Os vinhos têm modas?
Têm, completamente. Dou um exemplo muito prático: os vinhos rosé cresceram imenso nos últimos dez anos. Nos últimos dois, em França, são a única categoria de vinho que cresce uns 30% a dois dígitos, é uma coisa louca. Para tudo no vinho existem estudos. No caso dos rosés, os estudos mostram que há novos consumidores que querem consumir vinho, que o tinto e o branco são complexos demais para eles. Já o rosé encaixa-se em todas as situações, trata-se de um vinho muito flexível, que tanto vai com peixe como vai com carne. O rosé bebe-se em qualquer sítio, não é preciso pensar se poderá ter uma acidez demasiado elevada para a combinação com prato. Bullshit. Não é isso que as pessoas querem. É demasiado complexo.
Como é que trabalham as instituições responsáveis por comunicar o vinho em Portugal?
Respondendo diplomaticamente, num mundo conservador, aqueles que têm a obrigação de fazer a promoção dos vinhos são ainda mais conservadores do que os conservadores. Tem que ver com a forma como as instituições funcionam e, salvo raras exceções, o trabalho é feito dentro da zona segura do conservadorismo e não da zona ligeiramente insegura, mas com melhores resultados.
Qual é a imagens dos vinhos portugueses lá fora?
99,9% do mundo não sabe que existe vinho português. Portugal está no top 10 dos produtores mundiais, mas o maior produtor faz 100 mil vezes mais vinho do que nós. Itália e França são conhecidos como países de vinho, Portugal não. Para nós é quase uma ideia estúpida pensar assim. A resposta típica da indústria a isso é: mas os nossos são melhores e ganham mais prémios. Desde quando é que ter prémios e não ter canais de distribuição resulta? Pode-se ganhar o prémio, mas se o vinho não está acessível…
O mal não está apenas na comunicação, mas também nos canais de distribuição?
Sim. É preciso ter o Turismo de Portugal a promover o vinho, os canais oficiais a fazerem-no, todos os institutos… Devia haver uma comunicação com harmonia. Nós, em Portugal, ainda estamos a precisar de fazer esse trabalho. Quando se tem um budget mais pequeno do que o de outros países e se tenta usar as mesmas armas… A melhor sala de provas para o vinho português é o país. É por isso que é um erro os produtores acharem que, quando vão para fora, têm de concorrer com o vizinho do lado. Muito antes de concorrer com o vizinho, estão a colaborar para trabalhar a imagem do vinho português.
Falta esse sentido de unidade?
Não existe essa visão.
Mas em Portugal existem os Baga Friends e os Douro Boys…
Esses são grupos privados que se uniram para fazer uma coisa. Se as regiões fizessem o mesmo trabalho enquanto região… O país tem um papel, as regiões têm outro; se estiverem coordenados funcionam bem juntos. Imagine um evento fora: se se levar as regiões todas vai ser uma confusão, se se levar as melhores estas ajudam a que as pessoas se interessem pelo vinho português — “Adoro o Alentejo e o Douro, mas se Portugal tem vinho tão bom como este, provavelmente há mais regiões assim”. A questão é que as instituições nunca podem dar primazia, pelo que se comete o erro de tentar comunicar tudo.
Mas as regiões não se podiam autopromover?
Podiam e podem. Fazem iniciativas por elas, mas nenhuma pensa fora da caixa. Usam os mesmos meios, com budgets mais pequenos.
Tinha noção que este era um mundo tão complexo quando criou o Adegga?
Não. Eu era um engenheiro informático que não bebia vinho quando criei o Adegga. Vi o Adegga como uma oportunidade de resolver um problema de uma indústria. Mas não foi só uma oportunidade de negócio, houve outra coisa: percebi que quando as pessoas falavam de vinho faziam-no com paixão. Comecei a interessar-me pelo vinho. Vir de fora da indústria permitiu-me questionar coisas que quem está por dentro não questiona. O que aconteceu depois é que o vinho mudou a minha vida, porque eu não gostava de vinho, não comia bacalhau nem queijo, era bastante esquisito. O vinho fez-me descobrir prazeres que estavam associados à comida. Comecei a desenvolver os aromas, não no sentido de saber o nome deles, mas de os sentir. A comida é provavelmente a melhor coisa que aconteceu ao vinho — porque toda a gente fala a linguagem da comida e ninguém fala a linguagem do vinho. Toda a gente sabe dizer o que está ou não salgado, ninguém no vinho vai dizer “hmm… podia ter passado mais dois meses na madeira”. A linguagem do vinho é obscura, é escondida.
Considera-se um embaixador do vinho português?
Claro que sim. Sou alguém que é visto no mundo do vinho como um inovador, ou seja, nos canais em que se discute a inovação no vinho sou visto como exemplo. Olhe a vantagem que isso tem para o vinho português…
Por falar em inovações: recentemente apresentaram novidades.
Basicamente temos duas coisas que estão a ser lançadas: o Adegga Selected e o Club A, que é basicamente um clube de vinhos onde se paga um valor mensal e se tem acesso aos eventos do Adegga, aos vinhos exclusivos e a uma quantidade de outras coisas sem ser preciso fazer uma filtragem [de informação]. O Club A funciona por mercados, lançámos em Portugal e vamos lançar na Alemanha e na Suécia.
E o Adegga Selected?
O Adegga Selected é uma coisa que basicamente estende os WineMarkets. O que acontece nos mercados é que as pessoas vêm aqui, conhecem o produtor, gostam dos vinhos, compram-nos e provam-nos em casa… Nos dias a seguir ao evento, as pessoas tinham por hábito comprar os vinhos nas lojas. Percebemos que havia muitos produtores que queriam vender diretamente — há uma quantidade de vantagens nisso e, obviamente, as pessoas querem ter um contacto direto com os produtores. Então, no final do ano passado pensámos em como podíamos estender o modelo dos WineMarkets, mas voltando ao online. Mas aqui com o valor acrescentado de que já tínhamos as ligações estabelecidas entre os produtores e os consumidores — só que queríamos estendê-las a 365 dias por ano.