“Melhores cuidados, menos estigma”. Este foi o mote da edição do Angelini University Award deste ano. Foi no Pavilhão do Conhecimento, em Lisboa, que durante o dia 3 de novembro se reuniram especialistas, alunos, doentes, para discutir soluções para uma melhor gestão da doença, de forma a melhorar os cuidados e aumentar a literacia. Mas não só. Este foi o dia dedicado à tão esperada entrega dos prémios a dois projetos universitários que se propuseram a mudar o paradigma desta doença em Portugal.
A primeira parte do dia foi dedicada à discussão do verdadeiro problema: de que forma é olhado um doente com epilepsia? Qual o estado da doença em Portugal? Onde reside o estigma? O que podemos nós, enquanto sociedade, fazer para que este possa, de facto, ser erradicado? Que desafios representa esta doença para doentes, cuidadores e profissionais de saúde? Para colocar todos estes temas em cima da mesa, contou-se com a presença de vários especialistas de renome da área da neurologia, como a Isabel Luzeiro, Presidente do Conselho Superior da Ordem dos Médicos e Presidente da Sociedade Portuguesa de Neurologia (SPN), Carla Bentes, Presidente da Liga Portuguesa Contra a Epilepsia (LPCE), José Pimentel, Neurologista e Professor de Neurologia da Faculdade de Medicina de Lisboa, Sofia Quintas, Neuropediatra dedicada à área de epilepsia e epilepsia refratária.
Em todos os painéis que compuseram a manhã as conclusões foram similares e cimentaram as razões que deram origem a este evento: é preciso agir. É preciso unir esforços, combinar conhecimento e procurar melhorar os cuidados oferecidos, bem como fomentar a literacia. Mais do que medicação, o objetivo passa por procurar soluções que melhorem a qualidade de vida de cada doente. Ainda assim, quando o estigma esteve no centro do debate, tornou-se evidente que a vergonha é, ainda, uma verdadeira pedra no caminho.
“Nenhum diabético esconde que é diabético, mas um doente com epilepsia esconde que é epilético e é isso que temos que vencer. Os doentes precisam de ter apoio, de perceber que são iguais aos outros. Com restrições, mas todos nós temos condicionantes. Devem saber que existem instituições que podem contactar para pedir ajuda. É nosso objetivo aumentar a adesão do doente à terapêutica e a facilidade para lidar com a doença. Mas só a literacia conseguirá permitir que isto aconteça”, foram palavras de Isabel Luzeiro, aquando da sua intervenção sobre a Epilepsia e a Interdisciplinaridade, mas poderiam ser as de Carla Bentes, José Pimentel, Sofia Quintas, Raquel Costa, mãe de uma criança com síndrome de DRAVET, ou Fernanda Rodrigues, que vive com epilepsia há mais de 50 anos, intervenientes da primeira mesa-redonda da Conferência, moderada pelo jornalista Paulo Farinha.
“Este caminho não é um caminho a direito. É preciso ter programas de literacia em saúde e para a epilepsia. Se nós fizermos só agora, durante cinco anos, e pararmos no tempo, não conseguimos chegar a todas as pessoas. Tem de ser algo contínuo e que envolva todos os setores da sociedade. Se queremos progredir, o caminho é longo, mas circular, temos de voltar sempre ao princípio. Não podemos parar. Porque as pessoas crescem, porque se esquecem, porque aparecem pessoas novas”, reforça a Carla Bentes, Presidente da LPCE.
Se é verdade que esta é uma doença que não escolhe géneros ou idades, também é verdade que o impacto do estigma que ainda lhe está associado é capaz de atingir, também, e em grande escala, crianças e jovens. E os números falam por si: nesta que é uma realidade para 50 mil portugueses e famílias, 83% dos doentes com menos de 18 anos têm vergonha em partilhar com os demais a sua condição. “Para os adolescentes o impacto é imenso. Normalmente nem querem partilhar. E isto traz um impacto psicológico muito grande. Às vezes, mais complicado do que lidar com a epilepsia é a componente emocional que advém do diagnóstico”, foi uma das partilhas de Sofia Quintas, Neuropediatra, sendo em seguida corroborada pelas palavras de Raquel Costa: “A fase do diagnóstico é avassaladora. É muito difícil explicar a dimensão de uma epilepsia refratária como esta”. Ainda assim, no meio do tanto que ainda há para fazer, vão existindo vários casos de sucesso. E o de Fernanda Rodrigues foi um exemplo disso mesmo e terminou a manhã com chave de ouro: “Eu nunca me considerei uma doente, eu tinha aquele problema. Não encarava aquilo como uma doença, era algo com o qual eu tinha de saber lidar e explicar às pessoas. A minha filha também, sempre me conheceu assim. Felizmente, talvez os meus pais não tivessem conhecimentos suficientes para me fazerem sentir como uma doente. Eu própria sempre pus na cabeça que era uma pessoa igual aos outros e que ia conseguir fazer tudo, também”.
Projetos que prometem fazer a diferença
Depois de uma manhã recheada de conversas, de questões levantadas e respostas prontas a serem colocadas em ação, foi altura de testemunhar o grande momento do dia: a entrega de prémios a estudantes universitários. Numa segunda mesa-redonda, moderada novamente por Paulo Farinha, e que contou com o contributo de Carla Bentes, Presidente da LPCE, Isabel Luzeiro, Presidente do Conselho Superior da Ordem dos Médicos e da SPN, Luís Lourenço, Presidente da Direção da Secção Regional do Sul e Regiões Autónomas da Ordem dos Farmacêuticos, e Miguel Telo de Arriaga, Chefe da Divisão de Literacia em Saúde e Bem-Estar da DGS – membros do júri -, a conclusão foi óbvia: este foi um ano de sucesso e a qualidade das candidaturas fala por si. Prova disso mesmo foi a necessidade da criação de uma Menção Honrosa, destinada a reconhecer a excelência dos projetos apresentados. Foram 43 projetos a concurso, mais de 140 estudantes, 20 universidades de norte a sul do país, 31 professores e 24 especialistas envolvidos. Dos cinco projetos finalistas, apenas dois foram recompensados com o prémio monetário – dez mil euros para o primeiro lugar e cinco mil euros para o segundo.
A ferramenta digital de apoio à pessoa com epilepsia e cuidadores informais, EpiGest, foi o projeto vencedor. Representado por David Loura, Suzete Soares, Andreia Costa e Ana Margarida Coelho, alunos do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica Portuguesa e da Escola Superior de Enfermagem de Lisboa, com a orientação da Professora Doutora Andreia Costa e da especialista Ana Margarida Coelho, é um projeto que irá desenvolver uma plataforma para oferecer às pessoas as ferramentas necessárias para aumentar a sua literacia.
“O nosso objetivo é que esta plataforma não seja apenas um repositório. É uma plataforma que vemos como uma oportunidade para chegar às pessoas, para que haja uma relação bidirecional, dando a doentes e cuidadores algumas ferramentas para ajudar na gestão da doença, na prevenção de complicações, mas também com a possibilidade de percebermos como podemos melhorar a plataforma e que desafios é que os doentes vivenciam todos os dias. Nos dias que correm, o contacto que existe com os profissionais de saúde tende a ser cada vez mais individualizado – focado nas necessidades específicas de cada um – e é isso que pretendemos com esta plataforma”, explica David Loura, acrescentado ainda à lista a ligação à comunidade.
Focado nos doentes, cuidadores e profissionais, este é o projeto que pretende também estabelecer contacto com a comunidade envolvente e contribuir, assim, para a diminuição do estigma. O que é certo é que se mostrou realmente capaz de fazer a diferença e é com o cheque final na mão que a vitória assume um gosto especial: “É um reconhecimento pelo esforço que foi feito por toda a equipa. Um reconhecimento que os profissionais de saúde não estão só na prática clínica todos os dias, estão também no um para um com as pessoas que neste caso são portadoras de doença crónica, mais especificamente epilepsia. No fundo, é o concretizar de uma ideia, de um sonho, que esperamos ter a oportunidade de continuar a desenvolver”.
Já o segundo lugar foi ocupado pelo ‘HelpEpi: Em crise epilética, dá a mão’ – um projeto de formação para professores do 2.º ciclo.“Vamos formar os professores porque sabemos que estão em contacto direto com as crianças, que depois vão crescer e ser adultos que conseguem agir perante estas crises”. No fundo, a missão passa por reduzir o estigma, aumentar a literacia em epilepsia e capacitar a comunidade: “para além das sessões de formação para os professores, vamos ter plataformas digitais onde vamos disponibilizar vários recursos. Além disso temos também o manual de aplicação do projeto, para que depois os nossos parceiros, profissionais da área, possam também replicar o projeto”, partilha Ana Justo, uma das representantes, que se junta a Ana Carvalho, Ana Pinto e Inês Serra, estudantes da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica de Lisboa, para reforçar a importância deste prémio: “Este segundo lugar sabe muito bem. Com este apoio, com esta ajuda, conseguimos chegar mais longe e continuar a pensar no presente e no futuro”.
‘The Sound of Silence’, apresentado por estudantes da Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Coimbra, que pretendia a deteção automática de crises através de dispositivos waEEG, foi o projeto distinguido com a Menção Honrosa. Já o projeto EpiTracker, idealizado por estudantes da Escola Superior de Saúde Egas Moniz, que propunha uma ferramenta direcionada a testemunha de crises epiléticas, funcionando como tutorial em tempo real de medidas de intervenção perante a crise e de registo, conquistou o prémio da votação do público.
O que é certo é que todas as ideias se mostraram “dignas de prémio” e a tarde foi rica em partilha e conhecimento. Afinal, unir a academia à ciência não só é o futuro como se quer parte do presente.
Com o dia a chegar ao fim, os aplausos foram dados, os prémios entregues e fica a certeza de que os jovens são, efetivamente, o futuro. Mas como ficou claro ao longo de todo o evento: este é um caminho que se quer feito em conjunto e, na hora de combater o estigma, essa deve ser a missão de toda uma comunidade!