A história da música nos anos 90 tem muitas ramificações e curvas. Aconteceu de tudo um pouco: consolidação de tendências, novos géneros, cruzamentos de linguagens, micro cenas que geraram grandes estrelas. A democratização da tecnologia, que já vinha detrás, e tornou normais, primeiro o sampler, depois os computadores pessoais, facilitou a reinvenção do conceito do-it-yourself que vinha do punk e lembrava que é possível fazer as coisas de forma artesanal, música incluída, e quem não tiver guitarras, pode experimentar outros instrumentos. Surgiram bandas, editoras, revistas, edições domésticas, clubes.
Beck, uma das figuras mais carismáticas e criativas reveladas nos anos 90, vem desse espírito DIY, à deriva entre as referências do passado e a procura de uma identidade. Nunca foi punk mas tocava guitarra, porque gostava de folk e blues. Também se interessava por hip hop e usava outras ferramentas, nomeadamente pratos de gira-discos e microfone, como esclarece o refrão “I got two turntables and a microphone” de “Where it’s At”, canção de Odelay concebida para fazer a ponte entre “Loser”, do álbum Mellow Gold, e Odelay, o disco que provou que Beck não era só fogo de vista
Odelay faz agora 25 anos, a idade de Beck quando gravou as canções. Continua a intrigar que um disco assim tenha sido feito por alguém com 25 anos (mas com ar de ter 16) e tenha sido um sucesso, mas é surpreendente perceber que a passagem dos anos não apagou o seu fervilhar. Nem todos os álbuns que marcam épocas envelhecem de forma feliz, muitos ficam-se pela cristalização de um tempo, mas Odelay, talvez por ser bastante experimental e desregrado, ou até disparatado, conserva muito do seu fator surpresa original.
Ainda assim, Odelay é fruto de uma época, representa um certo estado de coisas, uma geração. Na altura chamavam-lhe slacker generation, ou Geração X, tinha crescido com muito tempo livre, a MTV, o walkman, as câmaras VHS, os computadores e os vídeos jogos, mas também com várias contraculturas associadas a géneros musicais como punk, pós-punk, hardcore ou metal, reinventados pelos slackers em grunge ou nu metal. Kurt Cobain é, obviamente, a cara e o coração da slacker generation, desencantada e desajeitada por definição. A sua morte, em Abril de 1994, deixou um vazio que Beck de algum modo preencheu quando emergiu da obscuridade com “Loser”. Mas Beck não era o novo Cobain. Nem queria.
Inicialmente, o single de “Loser” teve uma tiragem de 500 exemplares, mas isso não impediu que o refrão pateta de um perdedor confesso, incendiasse, primeiro as college radio americanas, depois o mundo inteiro. Beck passou de desconhecido a estrela, sem ter tempo de se aperceber do processo. Apesar de Mellow Gold, o álbum de “Loser”, ser bastante afirmativo do seu génio, e de músicos como Thurston Moore ou Johnny Cash, mostrarem publicamente o seu respeito, para a maioria, ele continuava a ser “un perdedor, uma estrela fugaz com alguma piada e uma canção que ficava no ouvido.
Beck mergulhou na música cedo, aos 15 anos abandonou a escola e começou a tocar blues nas ruas de Los Angeles, onde tinha nascido e vivia. Antes dos 20 anos, mudou-se para Nova Iorque, passou pelo circuito antifolk, começou a escrever canções inspirado pela sessões de spoken word, mas acabou por regressar à base, L.A., onde foi recrutado por um produtor, num bar onde tocava a sua versão desconstruída de folk. Apesar de dominar as técnicas e canções clássicas, a sua abordagem era quase sempre iconoclasta e passava por mudar completamente as letras das canções quando se aborrecia. Talvez fosse o ADN. Beck é filho de um músico e compositor, David Campbell e de Bibbe Hansen, artista visual que, na adolescência, era uma das super estrelas de Andy Warhol e dançava nos espectáculos dos Velvet Underground. O avô é AL Hansen, um dos fundadores do Fluxus, um movimento artístico internacional dos anos 60 e 70, com uma abordagem experimental e multidisciplinar. A sopa genética levou-o sempre por caminhos desviados mas ajudou-o também a aceitar a nova e desconfortável condição de “estrelita” e seguir em frente, sem perder identidade ou autonomia.
Com Odelay, Beck tenta fazer um disco de hip hop à sua maneira. E consegue, com a ajuda dos Dust Brothers, que tinham trabalhado em Paul’s Boutique dos Beastie Boys. Consta que Odelay foi um puzzle difícil de montar, há até quem diga que o título é uma brincadeira com “oh, delay” (oh! atraso), embora numa entrevista a David Letterman, em 1996, Beck tenha afirmado que era uma expressão com que tinha crescido e significava “right on!” (qualquer coisa como “correto” ou “certeiro”)). A complexidade da produção é evidente, as canções estão cheias de coisas, mas são orelhudas. “Devil’s Haircut”, “New Pollution”, “Hotwax”, “Where It’ s At”, parecem desconjuntadas no seu corte e colagem de samples estranhos, mas continuam a funcionar plenamente como canções pop. O disco também tem canções mais estranhas como “Derelict”, com ecos orientais, ou mais folk, como “Lord Only Knows”, mas mantém sempre uma atitude enviesada, deixando os géneros contaminarem-se uns aos outros. O que cola tudo são as técnicas de produção hip hop. A palete de samples manipulada pelos Dust Brothers é extensa e diversificada. Inclui Lee Dorsey, Black Sabbath, Sly and the Family Stone, até Schubert (em “High 5”). “Jack-Ass”, uma das canções mais lentas, a mais bonita do disco e uma das melhores de Beck, também tem um sample (de “It’s all over now Baby Blue”, na versão dos Them) mas contrasta com o resto por ser tão irresistivelmente simples e melódica. Ainda assim, nem em “Jack-Ass” se percebe de que fala Beck. Provavelmente de coisa nenhuma, ou muitas de em simultâneo, já que aplicava as técnicas da beat generation e escrita livre para escrever as suas canções e nunca fez questão de as explicar. Em vez de ser um problema, teve o efeito de tornar Beck num dos mais originais escritores de canções das últimas décadas.
Vinte e cinco anos depois, Beck está bem firme no estatuto de cabeça de cartaz. Provou que não era apenas “Loser” e permanece inquieto e inventivo, esquivo a rótulos. Odelay continua um dos seus melhores discos. O quinto álbum na discografia oficial de Beck, o segundo na versão que ignora as obscuridades folk (Golden Feelings, de 1993 e Stereopathetic Soulmanure e One Foot in The Grave, ambos de 1994), e o primeiro da sua verdadeira emancipação como artista, continua a surpreender e divertir, a brilhar na sua confusão e ironia. Um marco dos anos 90 que sobrevive.