Quase duas semanas depois do início do Euro 2024, João Félix ainda não tinha entrado em campo. O avançado português não foi opção de Roberto Martínez nos primeiros dois jogos, contra a República Checa e a Turquia, mas esta quarta-feira era titular contra a Geórgia — num encontro que significava muito mais do que o simples encerramento do Grupo F.
Contra a Geórgia, João Félix tinha de mostrar e de se mostrar. Aos 24 anos, preso a um contrato com o Atl. Madrid até 2029 e a uma cláusula de rescisão absurda de 350 milhões de euros, passou a última temporada emprestado ao Barcelona e é na Catalunha que quer ficar. Na Catalunha, porém, pode não existir dinheiro suficiente para ficar com ele. Mas vontade não falta.
Joan Laporta quer João Félix, João Félix quer o Barcelona, o Atl. Madrid quer resolver um problema e o problema não larga o Atl. Madrid: e o jogo desta quarta-feira, onde o avançado até foi dos melhores da Seleção Nacional mas não conseguiu fugir à nuvem negra da exibição pobre e da derrota merecida, de pouco ou nada serviu para abrir uma porta num beco sem saída onde o melhor dele parece estar sempre por chegar.
Uma novela catalã, entre as declarações de amor de Laporta e o calculismo de Cerezo
Há menos de um ano, nos últimos instantes do mercado de transferências de verão, o empréstimo de João Félix ao Barcelona tornou-se a história do mês. Em pacote com João Cancelo, que vinha do Manchester City, o avançado português tinha mais uma oportunidade para relançar a ainda curta carreira e mostrar que tudo o que já se passou no Atl. Madrid é apenas uma questão de adaptação.
“Acho que todos sabem o quão contente estou por estar aqui. Eu, a minha família, os meus amigos. Foi sempre algo para que trabalhei. Como já disse antes, era um sonho de criança. Desde miúdo que via o Barcelona. Venho para ajudar, sou mais um. É um sentimento único e é algo que procurava há muito tempo. Sempre tive a vontade de trabalhar para chegar ao nível mais alto e é daí que vem a paixão por este clube”, disse João Félix na apresentação, ao lado de Joan Laporta e com um sorriso de orelha a orelha.
E tudo começou por correr bem. Logo na estreia a titular, a meio de setembro, fez o primeiro golo pelos catalães, assistiu Lewandowski para outro e teve dezenas de pormenores brilhantes que colaboraram para a goleada imposta ao Betis. Quando a equipa começou a cair, porém, João Félix também começou a cair: terminou a temporada sem ser titular, com 10 golos e seis assistências em 44 jogos e sem qualquer troféu, já que o Barcelona ficou no segundo lugar da La Liga, perdeu a final da Supertaça e não passou dos quartos de final da Taça do Rei e da Liga dos Campeões.
Pelo meio, ao longo da temporada, a questão da continuidade de João Félix tornou-se uma autêntica novela. A par do filme que acompanhava Xavi — que anunciou em janeiro que saía, voltou atrás em abril e acabou mesmo por ser despedido e substituído por Hansi Flick —, a imprensa espanhola debruçou-se incessantemente sobre a possibilidade de o Barcelona conseguir segurar tanto João Félix como João Cancelo, colocando a frágil situação financeira do clube como único obstáculo.
Joan Laporta nunca escondeu a intenção e ainda em março, antes de Xavi mudar de ideias e anunciar a permanência, revelou desde logo que pretendia ficar com os dois internacionais portugueses. “Acho que vão continuar. Espero que o Atl. Madrid não coloque nenhum inconveniente à continuação de João Félix connosco e penso que o Manchester City também não o fará. Temos um agente que está a trabalhar no assunto, que é o Jorge Mendes, e que sabe da nossa intenção de continuar com os jogadores. O que não posso dizer agora, porque vai depender muito dos valores, é se vamos assinar ou prolongar o empréstimo”, disse, na altura, o presidente do Barcelona.
A sinceridade de Joan Laporta abriu a porta a conversas doces e a elogios mútuos entre João Félix e Enrique Cerezo, presidente do Atl. Madrid que sempre se mostrou muito irredutível na hora de equacionar perder dinheiro com um investimento que em 2019 custou 126 milhões de euros aos cofres colchoneros. “O normal é que ele queira ficar. O Barcelona quer e ele quer o Barcelona, por isso, estamos todos muito contentes. O Barcelona vai ficar com um magnífico jogador. Adaptou-se muito bem ao Barcelona, está a jogar muito bem e desejamos-lhe toda a sorte do mundo”, disse Cerezo em entrevista ao Mundo Deportivo, com o jogador a responder dias depois.
“Vamos ver se me facilitam as coisas. Pelo Cerezo, acho que sim, porque é um senhor fantástico, espetacular. Tenho muito respeito e apreço por ele. Vamos ver o que vai acontecer. Sempre foi muito bom para mim, para a minha família, especialmente para a minha mãe, que estava sempre presente nos jogos. Tenho uma boa relação com ele”, vincou o internacional português, que antes de sair emprestado renovou até 2029 pelo Atl. Madrid e tem uma cláusula de rescisão de 350 milhões de euros.
Já no início do atual mês de junho e na sequência de notícias que davam conta de que João Félix tinha sido o motivo do desentendimento entre Joan Laporta e Xavi que culminou no despedimento do treinador, o presidente do Barcelona reiterou a intenção de lutar pelo avançado. “Queremos que os dois Joões continuem, a situação não mudou. Tenho a informação, por parte do Deco, de que o Hansi Flick os considera jogadores de grande qualidade. Aliás, quando estava no Bayern Munique teve interesse em contratar o João Félix”, garantiu.
Um Europeu que não está a ajudar ninguém — a começar pelo próprio
Era neste contexto que João Félix chegava ao Campeonato da Europa. Com contrato com o Atl. Madrid até 2029, sem saber se fica ou não no Barcelona e sem perspetivas de interesse de outros clubes do mesmo calibre. O avançado entrou naturalmente na convocatória de Roberto Martínez, sem as críticas do início da temporada e de uma altura em que não jogava há vários meses, e era uma das opções mais válidas para o ataque da Seleção Nacional.
Contudo, ao fim de dois jogos, não tinha qualquer minuto. Os alarmes soaram em Espanha, onde o jornal Marca adiantou desde logo que o Atl. Madrid tinha delineado um plano que estava a sair furado: os colchoneros apostavam na valorização do jogador no Euro 2024 e estavam dispostos a libertá-lo por 60 milhões de euros. Por outro lado, a mesma publicação garantia que o Barcelona ia esfregando as mãos de contente, já que a desvalorização do jogador no Euro 2024 permitia realizar o negócio por um valor inferior ao expectável e não tornar ainda pior a débil situação financeira do clube.
Até porque, nos últimos dias, o discurso de Enrique Cerezo endureceu. “A situação é exatamente a mesma de há 15 dias e de há três meses. João Félix é jogador do Atl. Madrid e está emprestado ao Barcelona. Não sabemos qual vai ser a resposta do Barcelona e, quando soubermos, tomaremos as decisões que teremos de tomar”, defendeu o presidente dos colchoneros à margem da apresentação da IV edição da MadCup, no Wanda Metropolitano.
Por tudo isto e por mais alguma coisa, o jogo desta quarta-feira era de importância vital para João Félix. Por muito muito que o avançado de 24 anos tivesse desvalorizado o atual momento da carreira na conferência de imprensa do dia anterior, era óbvio que os primeiros minutos no Campeonato da Europa podiam ditar a permanência no Barcelona, o regresso ao Atl. Madrid ou a ida para outras paragens. E Joan Laporta, Enrique Cerezo, Hansi Flick e Diego Simeone sabem todos, sem exceção, qual é a opção preferida do jogador.
“O que é que está a faltar? Sinceramente, é difícil responder a essa pergunta. Tento sempre fazer o meu melhor, como venho a dizer ao longo dos anos. Trabalho sempre para estar ao melhor nível, tento fazer o melhor para ajudar a equipa. Eventualmente, em algumas situações, as coisas não têm corrido bem. Mas nunca me vão ver a baixar os braços e seguramente ainda vão ver-me triunfar, como sempre imaginaram desde o início, quando apareci no Benfica. Os melhores momentos ainda vão chegar”, disse o internacional português na conferência de imprensa desta terça-feira, onde mostrou confiança numa presença no onze inicial contra a Geórgia e negou qualquer desagrado com Roberto Martínez por ainda não ter jogado no Europeu.
A titularidade confirmou-se, mas no pior jogo da Seleção Nacional no Euro 2024. O avançado cumpriu os 90 minutos e até foi dos melhores da equipa de Roberto Martínez, principalmente na primeira parte, assinando um remate que assustou Mamardashvili e realizando quatro passes para finalização, um registo máximo no coletivo português. A influência de João Félix esbateu-se na segunda parte, onde também Portugal foi caindo de rendimento à medida que os minutos foram passando, e o jogador ficou associado a uma derrota surpreendente, mas mais do que merecida.
No final de junho, à beira dos oitavos de final do Euro 2024, João Félix ainda não sabe onde vai jogar na próxima temporada. Pode ser no Barcelona, se os catalães conseguirem encontrar o negócio possível. Pode ser no Atl. Madrid, se os colchoneros não quiserem negociar. Ou pode ser noutro sítio qualquer, se a proposta certa aparecer. Certo é que, mesmo com 90 minutos cumpridos esta quarta-feira, o avançado parece continuar num beco sem saída onde o seu melhor está constantemente por chegar.