Se havia uma altura para os indianos se preocuparem com o que se estaria a passar em Fort Detrick, no estado norte-americano do Maryland, era aquela. A 17 de julho de 1983, o jornal indiano Patriot publicava uma carta anónima, dizendo que esta era escrita por um “conhecido cientista e antropólogo americano”, onde só o primeiro parágrafo era suficiente para deixar qualquer um de queixo caído.
Nele, lia-se a seguinte frase: “A SIDA, a fatal e misteriosa doença que tem destroçado os EUA, pode ser o resultado de experiências do Pentágono para desenvolver novas e perigosas armas biológicas”.
Porém, a gravidade do que aquele “conhecido cientista e antropólogo americano” ficava ainda maior à medida que o texto entrava em dados mais concretos. Entre eles, dois parágrafos em concreto terão saltado aos olhos dos leitores da Patriot.
O primeiro, indicava “alguns especialistas americanos pensam que o Paquistão pode tornar-se no próximo campo de testes para estas experiências” — o que, como se lê no artigo, levaria a que a SIDA (síndrome da imunodeficiência adquirida) se “espalhasse rapidamente para a Índia, com graves consequências para as pessoas do país”. O outro, mais à frente, e já depois de o autor anónimo ter escrito que também países como França, Holanda e o Reino Unido estavam em risco, explicava como o vírus foi inicialmente espalhado “em Nova Iorque, entre imigrantes do Haiti” e que mais tarde se espalhou também por “toxicodependentes e homossexuais”. O subtexto era evidente: a CIA tinha criado uma arma biológica disfarçada de doença sem cura para matar negros, homossexuais e toxicodependentes.
Recorde-se que o contexto é o de 1983 — não havia sequer Internet, muito menos os proverbiais revoltas que incendeiam redes sociais que tanto nos ocupam os dias em 2018. Ainda assim, a informação contida naquela carta anónima foi ardendo em lume brando, devagar, devagarinho, como algumas das melhores receitas exigem. Passaram três anos até que um jornal soviético, o Literaturnaya Gazeta, publicou um artigo com o título “Pânico no Ocidente: o que está por trás da SIDA”. Descrevendo uma situação de contágio da SIDA nos EUA sobretudo entre cidades da costa Este, o jornalista do Literaturnaya Gazeta apoia-se no artigo publicado na revista indiana Patriot para dizer como a CIA testou em imigrantes haitianos, homossexuais, toxicodependentes e também sem-abrigo o vírus da SIDA. No artigo, lia-se que todos este eram “vítimas de SIDA devido a uma experiência monstruosa”.
Foi só depois de este segundo artigo ter sido publicado que um casal de cientistas da República Democrática Alemã — Jakob e Lilli Segal, ambos especialistas em bacteriologia — publicou um estudo onde corroborava tudo o que até aí se tinha escrito sobre a alegada criação da SIDA pela CIA e de como este tinha sido testado em prisioneiros que, primeiro através relações homossexuais na prisão e mais tarde em relações sexuais de todo o tipo já em liberdade, terão espalhado o vírus pelos EUA.
O selo de garantia científica foi quanto bastou para o artigo finalmente se espalhar pelo mundo. O estudo chegou às mãos de vários jornalistas do mundo — a maior parte de vários países africanos, mas também de outras partes do mundo. Ao todo a notícia foi dada em pelo menos 80 países. Entre estes, a notícia acabou por chegar ao seu ponto de origem: os EUA. A 30 de março de 1987, quase quatro anos depois de ter sido publicada numa desconhecida revista na Índia, a notícia chegou aos público norte-americano, através de uma notícia da agência Associated Press que vários meios dos EUA difundiram. No parágrafo inicial, lia-se: “Uma publicação militar soviética acredita que o vírus que causa a SIDA partiu de uma experiência com armas biológicas num laboratório do exército dos EUA”.
No entanto, nada disto era verdade. Não, o vírus da SIDA não foi criado por um laboratório dos EUA. No entanto, a notícia falsa que deu origem a tudo esta narrativa nasceu, essa sim, noutro laboratório: o que os soviéticos montaram para espalhar notícias falsas nos países do Ocidente. O esquema, amplamente estudado pela academia e também pela comunidade de intelligence norte-americana, foi recordado numa série de documentários divida em três episódios, que resulta de uma parceria do The New York Times com a BBC. O título do documentário é o mesmo do esquema montado pelo KGB para espalhar aquela informação: “Operation Infektion”.
Os Sete Mandamentos da desinformação soviética
Mas como é que esta informação falsa pôde ter tanto alcance?
O método foi explicado por vários especialistas e, ainda mais importante, três ex-espiões do KGB que desertaram para os EUA ainda durante a Guerra Fria: Yuri Bezmenov, Stanislav Levchenko e Lawrence Martin-Bittman.
Numa entrevista de 1984, este último, que trabalhou para o KGB na Checoslováquia até ter desertado para os EUA em 1968, deu uma definição sucinta do conceito de desinformação utilizado pelos serviços secretos soviéticos. “A desinformação é uma forma de espalhar informações deliberadamente distorcidas ou falsas no sistema de comunicação do adversário, com o objetivo de que esta seja aceite como informação genuína e que influencie tanto o processo de tomada de decisões políticas ou manipule a opinião publica”, disse Lawrence Martin-Bittman, que antes de ter desertado se chamava Ladislav Bittman.
Noutra entrevista de 1984, Yuri Bezmenov, ex-espião do KGB que desertou para o Canadá em 1970, descreveu em poucas linhas aquilo que considerava ser a maior parte da atuação do KGB, que de acordo com a sua definição se concentrava muito mais em campanhas de desinformação do que em espionagem propriamente dita.
“Apenas 15% do tempo, dinheiro e recursos humanos são dedicados à espionagem em si”, disse então sobre o KGB. “Os outros 85% dizem respeito a um processo lento, ao qual chamamos de ‘subversão ideológica’ ou ‘medidas ativas’ (…) ou ‘guerra psicológica’. O que isto significa basicamente é mudar a perceção da realidade de cada americano ao ponto em que, apesar da abundância de informação, ninguém é capaz de chegar a conclusões sensatas para o seu interesse, da sua famílias, da sua comunidade e do seu país.”
“É um grande processo de lavagem de cerebral, que funciona muito devagar”, acrescentou, para depois referir que o processo se divide em quatro fases: desmoralização, desestabilização, crise e normalização.
https://www.youtube.com/watch?v=y3qkf3bajd4
No entanto, no documentário do The New York Times com a BBC, é apresentada outra lista de igual pertinência para entender o método de implementação de notícias falsas pelo KGB: os 7 mandamentos da desinformação.
- Procurar fragilidades na sociedade em questão
- Criar uma mentira imensa
- Contextualizá-la com factos reais
- Não deixar rastos quanto à origem da informação
- Encontrar um “idiota útil” para veiculá-la
- Negar em todo o caso a autoria da notícia falsa
- Apostar no longo prazo
No caso da notícia falsa sobre a invenção do vírus da SIDA num laboratório da CIA, cada um dos passos foi cumprido à regra.
- “Fragilidade”: as desigualdades raciais e a discriminação contra homossexuais na sociedade norte-americana dos anos 80, tal como o desconhecimento generalizado sobre o vírus da SIDA;
- “Mentira imensa”: que o Governo infetou deliberadamente pessoas de minorias;
- “Factos reais”: a existência de um laboratório para a criação de armas biológicas no estado do Maryland;
- “Não deixar rastos”: a revista onde a notícia foi publicada inicialmente, a Patriot, não era abertamente ligado ao KGB;
- “Idiota útil”: além do casal de cientistas da Alemanha de Leste, os jornalistas que veicularam a notícia;
- “Negar em todo o caso a autoria”: mesmo depois de o caso ter sido apontado ao KGB, este negou com insistência a autoria;
- “Apostar no longo prazo”: manter as condições para esta e outras notícias se espalharem.
E assim foi — até a situação ter ficado incomportável para Moscovo.
A mentira que sobreviveu à União Soviética
De pouco valeram os esforços dos EUA pouco depois de vários jornais e telejornais do mundo terem veiculado a notícia de que o vírus da SIDA tinha uma invenção da CIA. Mesmo depois de as embaixadas norte-americanas terem conseguido publicar desmentidos na maior parte dos jornais estrangeiros que publicaram aquela notícia, e após as conclusões do casal de cientistas alemães ter sido ampla e eficazmente desmontada pelos seus colegas em todo o mundo, a União Soviética e o KGB mantiveram-se fiéis ao 6º mandamento: negar todas as acusações.
Em outubro de 1987, porém, a situação ficou demasiado pesada até para a União Soviética, então às portas do colapso. Naquele ano, o então secretário de Estado dos EUA, George Shultz, confrontou publicamente o Presidente da União Soviética, Mikhail Gorbatchov, exigindo-lhe que reconhecesse tanto a autoria como a falsidade daquela notícia. No relato que fez aos media norte-americanos sobre um encontro que teve com o líder soviético em Moscovo, George Shultz partilhou aquilo que terá dito ao seu interlocutor. Entre um longa lista de queixas, terminou com esta: “E vocês têm andado a espalhar esta treta sobre a SIDA, por isso dá para perceber por que estamos chateados”.
Um mês depois, em novembro de 1987, a União Soviética fez o retratamento possível. Num artigo publicado no jornal Izvestia, desvincularam a Academia Soviética da Ciência de qualquer investigação ou avaliação científica que tentasse provar a notícia falsa inicialmente publicada em 1983. Além disso, o próprio Mikhail Gorbatchov terá ordenado o KGB a terminar quaisquer operações de desinformação. Desta forma, quebrou o 6º mandamento, que diz perante qualquer acusação de desinformação a postura é sempre a mesma: negar, negar, negar.
Mas aqui, ao contrário daquilo que diz o provérbio português, a mentira teve perna longa. Segundo uma sondagem feita pelo think-tank RAND em 2005 — ou seja, duas décadas depois de se ter escrito que a SIDA tinha sido inventada e espalhada pela CIA —, ficou provado que à altura muitos afro-americanos acreditavam naquela teoria da conspiração.
Segundo a RAND, 15,2% de afro-americanos afirmaram que a SIDA era “uma forma de genocídio contra os negros”; 16,2% responderam que foi “criada pelo governo para controlar a população negra” e 26,6% disseram que aquele vírus foi “produzido num laboratório do governo”. E apesar de uma maioria de 75,4% dizer que os médicos e restantes profissionais de saúde estavam a “tentar impedir o contágio” do HIV nas comunidades negras, a resposta era menos benevolente quando relacionada com o governo norte-americano. Ao todo, 43,6% de afro-americanos disseram que o governo estava a usar a população de infetados com SIDA como cobaias para o uso de medicamentos retrovirais.
Mesmo quebrando o 6º mandamento, o 7º ficou garantido. No longo prazo, a desinformação russa venceu.