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O reconhecimento do papel ativo da sociedade civil na defesa de direitos e no cumprimento de deveres foi o ponto de partida para esta conversa dedicada ao tema Mais Cidadania.
A terceira conversa da série Observamos Mais decorreu com a presença de Isabel Jonet, presidente da Federação Portuguesa dos Bancos Alimentares contra a Fome, Ana Rita Ramalho, presidente da Associação Nacional de Estudantes de Medicina, Francisco Ferreira, presidente da ZERO – Associação Sistema Terrestre Sustentável e especialista em alterações climáticas, e o advogado Francisco Teixeira da Mota, conhecido defensor dos direitos humanos e da liberdade de expressão.
No Espaço Conversas Soltas Popular o debate teve a moderação de Miguel Pinheiro, diretor executivo do Observador, que conduziu a reflexão e a partilha de experiências dos convidados, nas suas diferentes áreas.
Voluntariado e cidadania
“Cidadania é participar, não é ajudar”, começou por dizer Isabel Jonet, depois da introdução de Miguel Pinheiro e do breve discurso de boas vindas de Carla Gouveia, diretora Central de Negócio, Marketing e Comunicação do Banco Popular. O Banco Alimentar nasceu há 27 anos, contando atualmente com 42 mil voluntários que são uma prova de como o voluntariado pode ser eficaz quando se organizam os esforços individuais na mesma direção. No mundo atual onde os fenómenos de exclusão tendem a aumentar em quantidade e severidade, o espírito de entrega e serviços aos outros deve ser constante e regular. Neste sentido a cidadania tem que fazer parte de uma cultura de civismo. Isabel Jonet constata que, por vezes, pode ser difícil organizar o excesso de voluntarismo das pessoas e que é necessário aumentar a nossa capacidade organização. “Às vezes há falta de eficiência por dificuldade de organização, noutros casos por dificuldades em aceitar ajudas de outros”. E depois há a questão dos pequenos poderes e dos “protagonismos” que tantas vezes levam à ineficácia das ações.
A Presidente do Banco Alimentar chamou a atenção para a importância de contabilizar também todo o voluntariado informal que acontece no país, desde as instituições do terceiro setor aos clubes desportivos. Existe bastante trabalho voluntário que não é considerado como participação cívica.
Isabel Jonet recordou a época em que a ação política era feita com entusiasmo e dedicação a causas, logo após o 25 de Abril, para lembrar que atualmente “os partidos pagam para colar cartazes.” O mesmo acontece com o envolvimento da população nos atos eleitorais. O secretariado das mesas de voto era assegurado por voluntários, que o faziam de forma apaixonada. Mas atualmente, desde o início do século XXI, passou a ser uma atividade remunerada através de um subsídio atribuído a cada membro da assembleia de voto.
O voluntariado organizado permite conhecer novas realidades e também desinstala as pessoas da sua rotina diária, contribuindo para um enriquecimento individual. Há aspetos no voluntariado que por vezes não são percebidos no imediato. Por exemplo, em instituições que lidam diariamente com falta de pessoal, onde é preciso manter um conjunto de tarefas administrativas e de contabilidade, por exemplo. Se um técnico de contas se oferecer como voluntário para fazer esse trabalho, isso vai fazer com que os cuidadores possam dedicar-se àquilo que é realmente a sua missão, sem perder tempo com a burocracia.
Os atuais modelos de comunicação nas “redes sociais levam muitas vezes as pessoas a viver ilusões e fantasias, ignorando a realidade que está ali ao lado”, referiu ainda Isabel Jonet, a propósito do cenário de desumanização da sociedade.
Cidadãos ecológicos
Em matéria de cidadania ambiental, Francisco Ferreira reconhece que somos um povo de grande sensibilidade para as questões da ecologia, do ponto de vista da perceção dos problemas, mas “ao nível da intervenção estamos bem longe do que seria desejável” apesar de se registar alguma evolução nos indicadores. Há aspetos práticos como a reutilização, ou as decisões de consumo, que continuam a não ser as mais inteligentes em termos de responsabilidade ambiental. O ambientalista abordou a questão do uso do “transporte público como um ato de cidadania”, quer pelo respeito ecológico dessa decisão, quer pela poupança direta em recursos a vários níveis.
Os exemplos que o Estado tem dado neste âmbito não são os melhores. Quando foi criada a linha SOS ambiente, a participação das pessoas a denunciar situações atingiu valores de tal maneira altos que depois não havia capacidade de resposta por parte dos organismos que tinham de desencadear respostas ativas no terreno. A operação “Limpar Portugal” alcançou um êxito excecional, que Francisco Ferreira lembrou para concluir com a ideia de que “é fácil mobilizar a população para uma ação organizada pontualmente. Mas já é mais difícil conseguir a participação das pessoas de uma forma continuada,” devidamente integrada nas práticas sociais dos cidadãos.
A cidadania sairá sempre reforçada através do investimento na educação e num maior grau de literacia ambiental. A educação e o conhecimento são essenciais para melhorar a nossa capacidade de escolha. O desenvolvimento sustentável depende da capacidade de nos questionarmos acerca do assunto, e em que medida é que ele diz respeito a cada um de nós. Esta consciencialização de que o problema diz respeito a todos é que vai permitir tomar decisões acertadas no quadro da responsabilidade perante as futuras gerações.
As universidades têm um papel chave nesta matéria já que no entender de Francisco Ferreira “é preciso mudar o ensino enciclopédico e investir na nossa capacidade de agir, filtrar e pensar estas questões”.
Exemplos de proximidade
A mais jovem participante do painel, Ana Rita Ramalho, recebeu em março o Prémio Cidadania Ativa, na área da pedagogia, atribuído pela Universidade do Porto. O campo das relações entre médicos e pacientes é essencial nas reformas que têm ocorrido ao nível da formação de profissionais de saúde em Portugal, destacou a Presidente da Associação Nacional de Estudantes de Medicina. As escolas têm vindo a introduzir “melhorias no currículo dos cursos, de modo a poder acomodar tempo de formação nas áreas sociais e humanas”, referiu a dirigente. Mudar é mais fácil do que muitas vezes se pensa, sobretudo quando nos organizamos. Afinal, é verdade que “sozinhos vamos mais rápido, mas juntos vamos mais longe”.
O trabalho de um médico “é solidário por natureza e os profissionais de saúde têm a noção de que os doentes são sempre pessoas vulneráveis” que precisam de ajuda, referiu Ana Rita Ramalho a propósito do humanismo essencial à prática clínica. Do ponto de vista dos projetos em que está envolvida, é fundamental “ver os efeitos diretos das nossas ações, porque a motivação aumenta e assim conseguimos gerar ainda mais participação”, concluiu, na perspetiva de uma cidadania ativa.
O medicamento certo, o sorriso e a informação são expectativas que devemos ter sempre que procuramos um médico. Neste sentido, Miguel Pinheiro levanta a questão da preparação dos futuros médicos, ainda em formação, para lidar com a diferença e fazer um atendimento mais próximo das pessoas. Para Ana Rita Ramalho, essa é uma grande responsabilidade que é assumida pelas escolas portuguesas. O exemplo é porventura a melhor forma de aprender as melhores práticas. Muitas vezes os médicos são voluntários na medida em que asseguram pro bono a transmissão de saberes aos jovens médicos. Porque “há coisas que não vêm nos livros, a partilha de situações problema é também exemplo de outra metodologia a privilegiar”, concluiu a Presidente da ANEM.
Liberdades de expressão
Os juízes estão sensibilizados para os direitos de cidadania das pessoas e dos jornalistas? Com mais de 30 anos de carreira, Francisco Teixeira da Mota admitiu, sem generalizar, que “há uma evolução, embora sejam normalmente muito normativos e não tenham flexibilidade para se adaptar a circunstâncias específicas”, realçando que a maior parte dos juízes já têm a noção de estar a fazer serviço público.
Outro tipo de relações é o que encontramos nos corredores do poder quando observamos a cidadania do ponto de vista do conhecimento. A realidade não é igual para todas as pessoas e isso depende, em grande medida, “do grau de informação dos cidadãos sobre qualquer assunto e sobre os direitos em particular”, afirmou Francisco Teixeira da Mota. A liberdade de expressão “é um valor inestimável, mas daí também deve resultar uma sociedade mais responsável e esclarecida”. O saber e o poder relacionam-se de diversas formas, sendo que o poder tende a ocultar informação. Nessa circunstância, só com mais informação e conhecimento é que a sociedade civil pode lutar pelos seus direitos em pé de igualdade.
O advogado lembrou o tempo em que se usava o “Hygiaphone” nos locais de atendimento ao público. O dispositivo que funcionava como intercomunicador era uma espécie de barreira física que impedia o acesso aos documentos, à informação, reforçando a ideia de controlo e de poder do lado do funcionário. A cidadania fica sempre em perigo quando deixamos de questionar. No passado existiam os dogmas, as grandes instituições que atuavam como reguladores do comportamento social, mas hoje já não é assim, “não podemos confiar acriticamente nas instituições, é preciso apostar numa sociedade mais livre e consciente, sem respeitar cegamente as verdades estabelecidas”, concluiu Francisco Teixeira da Mota.
Se não teve oportunidade de assistir em direto a esta Conversa sobre Mais Cidadania, veja aqui na íntegra.
Esta foi terceira conversa da série Observamos Mais, uma parceria entre o Observador e o Banco Popular. Em Julho vamos observar e partilhar outras experiências, agora de Mais Perto.