Enviada especial a Manchester, Inglaterra
A ligação entre Portugal e o Manchester United tornou-se direta há quase duas décadas. Carlos Queiroz abriu a porta nacional a um dos principais clubes de Inglaterra e depois dele seguiram-se Cristiano Ronaldo, Nani, José Mourinho, Bruno Fernandes e Diogo Dalot. A partir deste domingo, Ruben Amorim junta-se à lista.
A dias da estreia como treinador do Manchester United, contra o Ipswich, o português deu a primeira conferência de imprensa num Jimmy Murphy Centre lotado – bem no coração de Carrington, o centro de treinos dos red devils que nos últimos anos tem estado no olho do furacão pela ausência de condições, de tecnologia avançada e de remodelações.
Ruben Amorim chegou a Carrington e a Old Trafford para encontrar um clube muito diferente do de Carlos Queiroz, que foi campeão inglês e europeu ao lado de Alex Ferguson, e mais parecido com o de José Mourinho, que conquistou três troféus mas teve de instalar iluminação no centro de treinos para poder treinar a partir das 15h no inverno. Pelo meio, há Cristiano Ronaldo, que ficou chocado quando percebeu que nada tinha mudado nos 13 anos que passou longe de Old Trafford. Afinal, que Manchester United é este que Ruben Amorim herdou?
Queiroz, o braço direito de Ferguson
Carlos Queiroz aterrou em Manchester, pelo menos pela primeira vez, em junho de 2002. Para trás ficou uma carreira que já tinha passado pela Seleção Nacional, pelo Sporting, pelos EUA, pelo Japão, pelos EAU e pela África do Sul – uma veia de globetrotter que mantém até aos dias de hoje. Na altura, porém, o convite era praticamente irrecusável: ser adjunto de Sir Alex Ferguson.
O treinador escocês já estava em Old Trafford há mais de 15 anos, somando vários Campeonatos e até já uma Liga dos Campeões – em 1999, o ano do mítico treble em que juntou Premier League, Champions e Taça de Inglaterra –, mas tinha acabado de ficar sem adjunto. Steve McClaren, atual selecionador da Jamaica, decidiu deixar o Manchester United para iniciar uma carreira a solo no Middlesbrough e abriu uma vaga na equipa técnica dos red devils. Carlos Queiroz, então selecionador sul-africano, foi o escolhido. Mas por pouco tempo.
O Manchester United conquistou a Premier League em 2002/03 e o impacto de Carlos Queiroz enquanto braço direito de Alex Ferguson levou o Real Madrid a olhar para o treinador português como a pessoa certa para substituir Vicente del Bosque. A oportunidade de treinar Zidane, Figo, Ronaldo e Beckham falou mais alto e Queiroz deixou Inglaterra ao fim de apenas um ano para aceitar o desafio dos merengues. Foi despedido ao fim de dez meses, porém, e depressa regressou ao banco de suplentes dos red devils.
A temporada seguinte, sem Carlos Queiroz, tinha sido bem abaixo das expectativas. O Manchester United caiu de primeiro para terceiro na Premier League e não foi além dos oitavos de final da Liga dos Campeões – e a imprensa inglesa, na altura, apressou-se a justificar parte do insucesso da equipa com a ausência do treinador português, que numa única temporada tinha deixado uma marca indelével nos processos táticos do grupo.
Queiroz ficou no Manchester United até 2008, conquistando mais três Campeonatos e uma Liga dos Campeões num período já muito marcado por Cristiano Ronaldo, e o passar dos anos fizeram com que assumisse uma preponderância muito maior no universo do clube. Dava várias entrevistas, surgia em programas de comentário na BBC e na Sky Sports e parecia ter a bênção de Alex Ferguson para ser uma espécie de porta-voz não oficial da equipa técnica.
“O Carlos Queiroz era brilhante. Simplesmente brilhante. Extraordinário. Um homem inteligente e meticuloso. Ele era muito bom para mim, era um rottweiler. Foi o mais próximo que se pode estar de ser o treinador do Manchester United sem ser realmente o treinador do Manchester United”, escreveu o escocês na autobiografia. Essa posição de rottweiler, porém, criou anticorpos tanto junto dos árbitros como da comunicação social e até dentro do balneário, com Roy Keane e David Beckham a assumirem publicamente nos últimos anos que não se davam bem com o treinador português.
Atualmente, não existem grandes dúvidas de que Alex Ferguson estava a preparar Carlos Queiroz para ser o seu sucessor. O treinador português, porém, não quis esperar. Em 2008, quando Luiz Felipe Scolari deixou a Seleção Nacional, abandonou Old Trafford e voltou a Portugal para ser novamente selecionador. E deixou para trás um clube bastante diferente daquele que hoje existe.
Em 2008, há quase 20 anos, o Manchester United era campeão europeu. Conquistou a Liga dos Campeões ao derrotar o Chelsea em Moscovo e tinha o melhor jogador do mundo, Cristiano Ronaldo, que nesse mesmo ano iria levantar a primeira Bola de Ouro da carreira. Com mais de duas décadas de clube, Alex Ferguson parecia conseguir rejuvenescer um emblema através da juventude que colocava em campo – ninguém, em 2008, acreditava que o Manchester United era um clube ultrapassado por ter o mesmo treinador desde os anos 80.
A saída desse treinador, aliás, fez com que tudo mudasse em muito pouco tempo. Os red devils foram campeões pela última vez em 2013, precisamente o último ano de Alex Ferguson em Old Trafford, e nenhum treinador conseguiu chegar perto do sucesso (e da unanimidade) alcançado pelo escocês. E há alguns anos, em entrevista ao jornal The Guardian, Carlos Queiroz tentava perceber porquê.
“Não existia nada de errado em construir um futuro com base nos princípios que já existiam e que foram criados por Alex Ferguson. Essa era a decisão certa. Compreendo que a complexidade da transição não era uma tarefa fácil, mas acho que se cometeram erros críticos e cruciais. A fundação do sucesso do Manchester United tinha como base a confiança e a continuidade, os valores do clube. E acho que aconteceram demasiadas mudanças que destruíram a continuidade e a tradição no clube”, disse, na altura, o treinador português.
Mourinho, o mestre de obras que instalou iluminação em Carrington
Confiança, continuidade, valores e tradição que pareciam continuar a escassear quando José Mourinho chegou a Old Trafford. O treinador português foi o terceiro depois de Alex Ferguson, sucedendo a David Moyes e Louis van Gaal, e aterrou no Manchester United após a segunda passagem pelo Chelsea. A ideia, naturalmente, era encontrar um vencedor em série que pudesse recuperar a aura de um clube desaparecido em combate depois da saída do velho mentor – mas o objetivo, tanto naquela altura como até hoje, ficou por cumprir.
Em termos práticos, José Mourinho é o treinador mais bem sucedido desde Alex Ferguson, já que conquistou uma Liga Europa, uma Supertaça e uma Taça da Liga em dois anos e meio. Em termos empíricos, José Mourinho também foi o treinador mais polémico desde Alex Ferguson, somando episódios em que pediu respeito aos adeptos adversários, mostrou o número três com a mão para simbolizar as três ligas inglesas conquistadas no Chelsea e lembrou que era “um dos melhores do mundo, para além de treinar um dos maiores clubes do mundo”.
Além disso, protagonizou quezílias muito públicas com alguns elementos do plantel, com Paul Pogba a ser o elemento paradigmático, e nunca teve uma relação saudável com Ed Woodward, então todo-poderoso vice-presidente do Manchester United. Grande parte do desconforto de José Mourinho no interior do clube, porém, não estava relacionado com o mercado de transferências, as reações dos adeptos nas bancadas ou a falta de atitude da equipa – mas sim com as condições, ou falta delas, tanto em Carrington como em Old Trafford.
Pogba, Woodward e um balneário sem norte. Quem é que Mourinho ainda tinha do seu lado?
Em entrevista ao jornal Mirror, enquanto ainda era treinador dos red devils, o português explicou que teve de se encarregar pessoalmente de várias transformações que aconteceram no centro de treinos do clube. “Tivemos um trabalho extra porque não existia planeamento, tivemos de ser nós a fazer o planeamento. Construímos dois campos como o de Old Trafford, com as mesmas dimensões e a mesma relva”, começou por dizer, elencando alguns elementos básicos que não existiam.
“Construímos outros dois campos com uma relva específica que é muito usada em Inglaterra, devido ao tempo, é uma mistura de uma percentagem baixa de sintético com relva natural. Existem muitos campos da Premier League com essa relva. Temos um campo específico para os guarda-redes. Construímos as redes e as cercas, para as bolas não irem para longe. As luzes também foram importantes, porque os campos não tinham luz e a partir das 15h, no inverno, era impossível trabalhar. Tentámos melhorar e modernizar as condições de trabalho. Um clube pode ser gigante, como este é, mas se o investimento pára durante uns anos torna-se complicado”, acrescentou Mourinho.
O agora treinador do Fenerbahçe deixou o Manchester United em dezembro de 2018 – e, segundo os relatos de quem lá esteve depois, o “investimento” voltou a parar. Zlatan Ibrahimovic foi um dos primeiros a descrever a “mentalidade pequena e fechada” dos red devils, recordando um episódio em que teve de pagar um sumo que consumiu no mini bar do hotel durante um estágio, mas foi Cristiano Ronaldo o grande responsável pela ideia de que os ingleses pararam mesmo no tempo.
No fim de 2022, na polémica entrevista a Piers Morgan que culminou com a saída do Manchester United por mútuo acordo e a posterior ida para o Al Nassr, o internacional português assumiu a guerra aberta com Erik ten Hag, disse que estava a ser “forçado a sair” e criticou o despedimento de Ole Gunnar Solskjaer mas foi mais longe. Numa das respostas ao jornalista britânico, disse ter ficado chocado pelo facto de as condições de Carrington e Old Trafford serem exatamente as mesmas que tinha deixado 13 anos antes, quando rumou ao Real Madrid.
“Quando assinei pensei que tudo tinha mudado, tinham passado 13 anos desde que tinha saído. Pensei que tudo seria diferente, a tecnologia, as infraestruturas… Fiquei surpreendido de forma negativa. Vi que estava tudo na mesma. Parece que o clube parou no tempo. Sabia que o Manchester United não era o mesmo, mas não sabia que a diferença era tão grande”, disse Ronaldo, criticando a família Glazer por “não querer saber do clube, da vertente desportiva”.
Amorim, o “homem certo”
A ideia de que o Manchester United parou no tempo não é nova – e nem sequer pertence apenas a Cristiano Ronaldo, a José Mourinho ou a Zlatan Ibrahimovic, já que muitos das antigas figuras e referências do clube continuam a questionar como é que um emblema que outrora foi o melhor e maior do mundo é agora uma presa fácil para os principais rivais.
Ruben Amorim herda um clube em crise, sem uma Premier League conquistada há mais de uma década e refém do sucesso estrondoso do maior rival, o Manchester City. Carrington é um centro de treinos ultrapassado, com clara escassez de tecnologia e recursos, e as imagens de uma autêntica cascata a cair do telhado de Old Trafford num dia de chuva chocou o mundo há alguns meses.
Ainda assim, Ruben Amorim também herda um clube em transformação. A entrada de Jim Ratcliffe no capital do Manchester United, com 25% da estrutura acionista e o controlo total do futebol, tirou as decisões mais desportivas das mãos da contestada família Glazer e abriu a porta a decisões mais fora da caixa como a contratação do treinador português – algo que, até à chegada do dono da Ineos, dificilmente teria acontecido.
Se é certo que muito terá de mudar e ser decidido, incluindo a possibilidade de demolir Old Trafford ou de apenas remodelar o estádio centenário, também é certo que a simples decisão de apostar em Ruben Amorim já mostra uma abordagem diferente à realidade atual do futebol mundial. Esta sexta-feira, na primeira conferência de imprensa enquanto treinador do Manchester United, o português vincou a ideia de ser “o homem certo no momento certo” e de não achar que este seja um “trabalho impossível”. Resta saber se o destino de Amorim estará mais perto de Queiroz ou de Mourinho.