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“Encontrar formas de trabalhar uns com os outros e superar a fragmentação”. Foi a promessa deixada por Ursula von der Leyen na sua intervenção da passada quarta-feira, momentos depois de ter visto os seus 26 comissários aprovados pelo Parlamento Europeu. A fragmentação de que fala a presidente da Comissão Europeia ficou visível na sua taxa de aprovação — apenas 54% dos eurodeputados votaram a favor, o valor mais baixo desde 1993. Ao mesmo tempo, foi a primeira vez desde 1999 que todos os comissários foram aprovados.
Os dois recordes ilustram a política de Ursula von der Leyen, feita de equilíbrios e cedências. Contudo, não retiram legitimidade à Comissão Europeia — que toma posse este domingo — para o seu trabalho durante os próximos cinco anos. A garantia é deixada ao Observador por duas eurodeputadas portuguesas, a social-democrata Lídia Pereira (do Partido Popular Europeu, o PPE) e a socialista Marta Temido (do Grupo dos Socialistas e Democratas, o S&D).
A partir deste domingo, Von der Leyen “tem muitas coisas por cumprir”, argumenta ao Observador a diretora da Fundação Robert Schumman em Bruxelas, Pascale Joannin. Apesar de toda a legitimidade que possa ter, a nova comissão de Von der Leyen enfrenta fragilidades. Não só pelas divisões políticas, mas pelo cenário internacional que enfrenta: uma guerra na Europa, outra no Médio Oriente, potenciais mudanças de política externa nos Estados Unidos e a afirmação económica da China.
Os atores políticos ouvidos pelo Observador são unânimes em quais são as prioridades em Bruxelas para o mandato: segurança e defesa, por um lado, e competitividade económica, por outro. A divisão de pastas que a presidente da Comissão levou a cabo parece refletir isso mesmo — equilibrando ao mesmo tempo personalidades. Tudo somado, e aprovados os nomes, uns sairam politicamente vencedores. Outros nem por isso.
Os vencedores
Ursula von der Leyen, presidente da Comissão — Alemanha
A líder da Comissão Europeia enfrenta, desde as eleições europeias de junho, uma Europa mais fragmentada que no seu primeiro mandato. Isso significa que a aprovação de todos os 26 candidatos foi uma vitória, a que se soma o facto de a sua família política, o PPE, ser a maior força política no Parlamento Europeu. Ainda assim, a vitória só foi conseguida graças à cooperação com as restantes famílias políticas, nota Pascale Joannin. É esse diálogo que a alemã quer levar agora para dentro do colégio: “Von der Leyen escolheu articular as pastas, pô-las a trabalhar umas com as outras, de forma horizontal, e com ela diretamente”, afirma Joannin. A especialista em política europeia argumenta que a presidente se colocou no centro da nova comissão, recusando escolher grandes nomes, que a pudessem “ofuscar”, para as grandes pastas.
Os desafios que a Europa enfrenta facilitaram a aprovação de todos os nomes, argumenta, por sua vez, a socialista Marta Temido. “O colégio de comissários foi bafejado por um momento em que o chumbo de um comissário fragilizaria ainda mais a Europa num momento difícil”, reconhece ao Observador. Lídia Pereira, vice-presidente do PPE, ressalva que, apesar dos desafios, Von der Leyen conseguiu manter os seus valores. “Os critérios que definiu — pró-Ucrânia, pró-Estado de Direito, pró-Europa — estão consubstanciados na orgânica da Comissão”, declara. Ambas as eurodeputadas concordam que o importante é pôr mãos à obra para cumprir promessas. Pascale Joannin sublinha que isso tem de ser rápido: “A UE parou de trabalhar desde as eleições”.
Kaja Kallas, Alta-Representante para os Negócios Estrangeiros e Política de Segurança — Estónia
A nova Alta-Representante nunca deixou margem de dúvidas sobre a sua competência. “Aparenta ser a melhor aluna da turma”, escreveu o Politico sobre a sua audiência, no início do mês. Agora, o papel de Kaja Kallas, responsável pela política externa, é um dos maiores, tendo em conta o espaço que as guerras na Ucrânia e no Médio Oriente ocupam em Bruxelas. A postura da UE pode ter ainda mais peso se a política externa dos Estados Unidos, o grande aliado ocidental, se alterar com uma nova administração Trump, ressalva Pascale Joannin.
A posição da representante da Estónia em ambas as questões é clara. É uma das apoiantes mais vocais do apoio militar e económico entregue à Ucrânia — posição que também é alimentada pela ameaça direta que a Rússia coloca à Estónia, com quem faz fronteira. Já sobre o conflito no Médio Oriente, defende um cessar-fogo e a libertação dos reféns israelitas em Gaza. A posição sobre a segunda questão não é unânime em Bruxelas — como o atual Alto-Representante, Josep Borrell, tem sublinhado — mas Kallas está totalmente alinhada com Von der Leyen, o que deve facilitar a colaboração.
Teresa Ribera, vice-presidente executiva para a Transição, Limpa, Justa e Competitiva — Espanha
A socialista espanhola conseguiu o cargo de primeira vice-presidente da Comissão, assumindo-se como braço direito de Von der Leyen para os próximos cinco anos, uma vitória também para a sua família política, o S&D — Ribera é uma de quatro socialistas na Comissão. Mas a sua nomeação gerou discórdia dentro do Parlamento Europeu, já que contou com uma forte oposição e muitas críticas do PPE. Durante a sua audiência, a ex-adjunta de Pedro Sanchéz foi responsabilizada repetidamente pelos partidos à direita pelo desastre nas cheias de Valência. Os Verdes e o S&D elogiaram, por sua vez, a paciência de Ribera.
A nomeação esteve em risco, mas foi salva por um acordo nacional espanhol entre socialistas e populares. No final, o PPE aprovou o seu nome, uma das cedências feitas pelo partido. A especialista em Bruxelas Pascale Joannin garante que foi um dos votos sob protesto. O facto de o seu nome ter estado debaixo de fogo e ter saído incólume é, em si mesmo, uma vitória. O seu currículo como ministra da Transição Ecológica em Espanha preparou-a para as tarefas que vai desempenhar na pasta que Von der Leyen lhe atribuiu.
Maria Luís Albuquerque, comissária para Serviços Financeiros e União da Poupança e dos Investimentos — Portugal
A comissária portuguesa é também uma das vencedoras, sobretudo pela pasta de peso que lhe foi atribuída — relevante num cenário em que a UE quer apostar na competitividade económica e na atração de investimento privado. No sentido inverso de Ribera, o nome de Albuquerque foi questionado, mas pela esquerda. Em causa estava o seu papel como ministra das Finanças no período pós-troika, mas as suas respostas na audiência satisfizeram os eurodeputados. “Vários colegas ficaram absolutamente convencidos com Maria Luís Albuquerque e ela é entendida na bolha de Bruxelas como uma das comissárias mais bem preparadas e mais experientes”, elogia a colega social democrata, Lídia Pereira, que fez parte do seu comité na audiência do dia 6 de novembro.
Também Marta Temido reconhece “a importância” da pasta atribuída a Portugal e argumenta que foi entregue pesando tanto “as funções das pastas, como os perfis das pessoas indicadas pelos países”. Já a diretora da Fundação Robert Schumman destaca uma vitória geral de “mulheres com grandes portefólios”. A tendência repete-se nos vice-presidentes: dos seis, quatro são mulheres.
Raffaele Fitto, vice-presidente executivo para Coesão e Reformas — Itália
O nome de Raffaele Fitto para o cargo de vice-presidente levantou muitas ondas, mas o ex-ministro italiano soube navegá-las e a sua postura calma e ponderada acabou por ser elogiada pelos eurodeputados. Para além de uma vitória individual, a sua nomeação é uma vitória para a primeira-ministra italiana e presidente da família dos democratas e reformistas (ECR), Giorgia Meloni, nome que continua a ganhar peso entre a direita europeia.
O facto de Ursula von der Leyen ter premiado um nome da direita conservadora valeu-lhe o chumbo dos Verdes (Fitto foi um de dois nomes que o partido não aprovou) e a censura do S&D — os socialistas franceses e alemães chumbaram mesmo o seu nome, relata o Politico. Pascale Joannin e Lídia Pereira não se mostram tão preocupadas com o facto de a presidente ter cedido ao grupo de Meloni neste nome. Ambas argumentam que, apesar do conservadorismo, o ECR continua a ser um partido com valores “pró-Europa”, como se comprova, por exemplo, pelo apoio — neste caso de Itália — à Ucrânia. A vice do PPE destaca ainda que “não se pode negligenciar o peso de um país fundador, que é um dos mais industrializados da Europa”.
Os vencidos
Oliver Várhelyi, comissário para Saúde e Bem-estar animal — Hungria
A importância de apoiar Kiev fez-se sentir quando foi hora de premiar, mas também quando foi hora de castigar. Que o diga o húngaro Oliver Várhelyi que ficou em mãos com a pequena pasta da Saúde e Bem-Estar Animal. É uma queda a pique da pasta que deteve nos últimos cinco anos, a do Alargamento. A justificação para a despromoção pode estar precisamente num dos países que já iniciou o processo de adesão à UE: a Ucrânia. Isto porque a Hungria tem colocado uma série de bloqueios à ajuda a Kiev.
Os bloqueios fazem sentir-se mais neste momento devido à presença húngara na presidência rotativa do Conselho da União Europeia. “Bruxelas está a mostrar que não está satisfeita com Órban“, argumenta Pascale Joannin. No seu primeiro mandato, Várhelyi defendeu as políticas do governo de Viktor Órban, cujo partido transitou do PPE para os Patriotas pela Europa, de extrema-direita — alinhamento que foi questionado pelos eurodeputados na sua audiência.
Lídia Pereira admite ao Observador que a presença da extrema-direita na Comissão “não é um bom cartão de visita”, mas diz que “Von der Leyen não tinha outra hipótese”. Marta Temido lembra ainda o discurso da presidente perante o Parlamento Europeu na quarta-feira, que incluiu apenas uma breve menção a Várhelyi. “Não são só as forças políticas que não são fãs de alguns comissários…”, afirma, insinuando um afastamento entre a própria presidente e o seu nomeado.
Thierry Breton, ex-comissário — França
As preferências pessoais de Ursula von der Leyen parecem realmente ter pesado na hora de atribuir pastas, ao selecionar diretamente a equipa com quem (não) quer trabalhar. Exemplo de alguém com quem a presidente não quer voltar a colaborar é o ex-comissário francês Thierry Breton. A alemã terá ligado ao Presidente Emmanuel Macron no início de setembro com um ultimato: se França queria uma pasta relevante, tinha de retirar Breton e apresentar outro nome.
Macron cedeu e sugeriu Stéphane Séjourné, que assume agora o cargo de vice-presidente executivo para a Prosperidade e Estratégia Industrial, assegurando a relevância de Paris no centro da Europa. Já Breton voltou para casa de mãos abanar. O francês era um dos nomes mais mediáticos da anterior Comissão, muito crítico de Von der Leyen, com quem chocava diretamente. A ausência de Breton nesta Comissão é prova de que a presidente não quer comissários “estrela”, mas sim nomes dispostos a cooperar, sublinha Pascale Joannin.
Glenn Micallef, comissário para Justiça Intergeracional, Juventude, Cultura e Desporto — Malta
Mais do que derrotado, o comissário maltês parece ter ficado esquecido. É o mais jovem do colégio, nunca teve um cargo político e a sua juventude e inexperiência transpareceram durante a sua audiência, criticada pelos eurodeputados. Historicamente Malta não tem sido um peso pesado na UE — com exceção do facto de ser o país da presidente do Parlamento Europeu, Roberta Metsola — e a pasta que lhe foi atribuída tem um grande entrave: trata mais de competências dos Estados do que competências diretas da União Europeia. A sobreposição de competências é um desafio que se estende a outros comissários, destaca Pascale Joannin.
Importa destacar que Malta foi o único país que não cedeu à pressão direta de Ursula von der Leyen para a paridade de género, objetivo que tinha e não conseguiu cumprir — a contar com a presidente, são onze mulheres, menos duas que o coletivo dos últimos cinco anos. Von der Leyen tinha sugerido aos países que apresentassem um homem e uma mulher para consideração — só a Bulgária o fez. Malta apresentou apenas Micallef e de Bruxelas terá chegado o pedido para manter Helena Dalli, que detinha a pasta da Igualdade, que não foi aceite. A Roménia e a Eslovénia acederam aos pedidos e acabaram com uma vice-presidente e uma comissária para o Alargamento, respetivamente.
Os presentes envenenados
Virkkunen, Kubilius e Dombrovskis — Os Bálticos
Finlândia, Estónia, Letónia e Lituânia não representam uma parte significativa da população ou do PIB da União Europeia. Mas — para além de Kaja Kallas como Alta-Representante — as pastas que Von der Leyen lhes atribuiu têm um peso considerável. Henna Virkkunen, da Finlândia, foi nomeada vice-presidente, com a pasta da Soberania Digital, Segurança e Democracia. Valdis Dombrovskis, da Letónia, será comissário para a Economia e Produtividade, Implementação e Simplificação. Andrius Kubilius, da Lituânia, vai estrear a pasta da Defesa e Espaço.
As eurodeputadas ouvidas pelo Observador destacam a importância destas pastas, que vão ao encontro das prioridades que Von der Leyen definiu para a Defesa, Segurança e Economia. E volta a ser posta em cima da mesa a guerra na Ucrânia, sobre a qual os Bálticos têm tido uma posição vocal de apoio a Kiev. À semelhança de outros, com as mesmas posições, parecem ter sido recompensados, desta vez em bloco.
Então, por que é que estas nomeações são presentes envenenados? Em primeiro lugar, pelas tarefas hercúleas que incluem e pelos muitos desafios que os comissários terão de enfrentar, quer em termos de bloqueios políticos pela extrema-direita, como pelo esforço financeiro que representam — a UE já entregou, diretamente ou em investimentos, 124 mil milhões de euros à Ucrânia.
Além disso, Pascale Joannin considera que a pasta da Finlândia é “vaga”: “Segurança” é uma competência clara, “Soberania Digital” nem por isso. “Não sabemos muito bem quais são os limites das suas tarefas. Temos de esperar para ver que formas encontram para agir”, declara. Ao mesmo tempo, a analista sugere que esta falta de limites pode ser mesmo uma estratégia de Ursula von der Leyen para obrigar os comissários a colaborarem uns com os outros, sempre com a sua coordenação. “Acho que isto aconteceu porque ela não quer ninguém a liderar claramente”, afirma.
Já as eurodeputadas portuguesas ouvidas pelo Observador não se alongam sobre possíveis estratégias da presidente e preferem pôr os olhos no futuro. “Os historiadores vão escrever este momento como uma viragem histórica”, afirma Lídia Pereira, explicando que o mundo está a mudar e a UE tem de acompanhar e tomar posições sobre essas mudanças. “A comissão que entra em funções parece-me ser sinónimo de estabilidade“, considera. Marta Temido também quer deixar as nomeações para trás e olhar para a frente: “Agora, o escrutínio é outro, é sobre o trabalho e não sobre as pessoas, esperamos que a equipa tenha capacidade de trabalhar e responder aos desafios“, declara. E repete, tal como na sua intervenção no Parlamento, que “a sorte de Von der Leyen é a sorte da Europa”.