Fernando Medina não quis dizer — esta sexta-feira, quando questionado pelos jornalistas — se o excedente de 1,1% que ganhou no primeiro semestre significará um ‘brilharete’ no total do ano. Ou se, a manter-se na segunda metade, vai, antes, ser devolvido às famílias e empresas através de novas medidas, por exemplo, nos combustíveis. O ministro das Finanças volta a prometer prudência — para “não darmos nenhum passo atrás” — e recusa “gastar o que se tem e o que não se tem como se não houvesse amanhã”. Mas enquanto não revela o que vai fazer ao superavit provável de 2023, entre os economistas consultados pelo Observador há quem defenda que essa “folga” não deve ficar nos cofres. Pelo menos na totalidade.

No Programa de Estabilidade de abril, Medina inscreveu um défice de 0,4% para 2023, mas o saldo positivo da primeira metade do ano calculado pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) pode trazer melhores notícias ao Governo. Aliás, seria preciso um trambolhão no segundo semestre para que esse valor se concretizasse. O Conselho das Finanças Públicas (CFP) atualizou, na quinta-feira, as projeções macroeconómicas, e o excedente que antes só admitia para 2024 já será possível este ano, nas contas da entidade liderada por Nazaré da Costa Cabral. Isto sem novas medidas de política que pesem no lado da despesa, um cenário que não foi completamente descartado pelo Governo, que tem dito que atua quando considera necessário. Para o CFP, os dados atuais — que, admite, estão mergulhados em muitos riscos — permitem antever um excedente orçamental de 0,9% (mas pede cautela).

Medina não disse se acompanha esta projeção — pede que se espere três semanas, até à apresentação do Orçamento do Estado para 2024, altura em que terá uma “ideia mais concreta do que é que está a acontecer no segundo semestre” — nem prometeu um reforço de medidas com a ‘folga’ revelada pelo INE no primeiro semestre, de 1,1% (o maior num primeiro semestre desde, pelo menos, 1999). Na conferência de imprensa que convocou para comentar os dados das contas nacionais, mostrou cautela e nem quando foi questionado sobre o aumento recente dos preços dos combustíveis o ministro deu garantias de apoios. O que prometeu foi avaliar a situação para ter a certeza se as subidas recentes são “temporárias” ou, pior, “estruturais”. Apesar da folga orçamental que lhe deu o primeiro semestre, só neste segundo caso é que admitiu atuar. Mesmo embora Marcelo Rebelo de Sousa já tenha aumentado a pressão nesta matéria.

O Governo está atento a este problema e certamente está a preparar medidas ou, pelo menos, formas de mitigar a situação, porque é uma situação que está a pesar muito na inflação em Portugal e noutros países europeus”, afirmou o Presidente da República, esta semana.

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Marcelo mais convicto do que Medina. “Governo está certamente a preparar medidas para mitigar aumento dos combustíveis”

Mas Medina optou pela cautela nesse dossiê, tal como para a prometida redução do IRS, com o ministro a sinalizar que a folga nas contas públicas não significará ir mais longe na diminuição do imposto, numa trajetória definida no Programa de Estabilidade de 2 mil milhões de euros até 2027. À pergunta, respondeu (outra vez) com prudência, criticando o discurso “pouco responsável” do lado “das oposições“, com a proposta do PSD — de reduzir já este ano o IRS numa despesa de 1,2 mil milhões — na mente. E sinalizando que novas medidas para este ano terão de ser muito bem ponderadas.

“Há do lado das oposições muitas vezes um discurso errado, bastante pouco responsável, de associar uma melhoria do resultado orçamental a simplesmente a existência de uma disponibilidade quase ilimitada para haver reduções fiscais e para se poder dar tudo a todos”, atirou. Para Medina, esta estratégia é “errada”. A argumentação do governante é que a dívida pública continua elevada (ainda 46 pontos acima do valor de referência, de 60% do PIB). “Temos de ir criando as condições para quando o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) acabar, em 2026, tenhamos do ponto de vista da dívida pública portuguesa capacidade para termos recursos para assegurar que o investimento no país se mantém e não sofre uma crise acentuada no investimento”, começou por dizer.

Lembrando o impacto negativo que a subida das taxas de juro terá, também, na economia em 2024, Medina recusa “gastar o que se tem e o que não se tem como se não houvesse amanhã”. “É uma política da qual nos afastamos por completo. Adotamos sempre uma política de passos seguros, sólidos, quer relativamente à consolidação das contas públicas, mas sobretudo relativamente a podermos assegurar uma dimensão da melhoria das condições de vida das famílias, por via fiscal ou em áreas críticas, como a habitação”. Diz Medina que “o pior que podia acontecer” era implementar medidas para depois ter de “dar um passo atrás“.

Além do CFP, também Paulo Rosa, economista sénior do Banco Carregosa, acredita que o ano terá direito a excedente. “Tem sido um ano favorável para as contas públicas e as receitas continuam a superar as despesas, permitindo que ao excedente orçamental verificado no primeiro trimestre tenha sido adicionado um superávite de montante semelhante no segundo semestre“, considera. Por isso, diz que seria “difícil” justificar um défice sem novas medidas adicionais. “Tudo se encaminha para um ligeiro excedente orçamental este ano.”

Esta melhoria do saldo orçamental “é uma consequência quase mecânica da inflação muito elevada deste ano“, avalia, por sua vez, o economista João Borges de Assunção, do Núcleo de Estudos de Conjuntura da Economia Portuguesa (NECEP) da Universidade Católica, na análise que enviou ao Observador.

A “pressão” para não apresentar excedente “significativo”

É um equilíbrio, entre consolidação orçamental e apoios, que o economista Pedro Brinca, da Nova SBE, acredita que poderá manter-se este ano na estratégia do Governo — isto “se o passado  servir de indicação para o futuro”, diz em declarações ao Observador. No ano passado, o Executivo terminou o ano com um défice de 0,3% (também revisto em baixa pelo INE de acordo com os dados mais atuais).

“Se o passado servir de indicação para o futuro, aquilo que Fernando Medina planeia ou irá fazer, se seguir o que fez em 2022, será usar o excedente orçamental para duas coisas: em parte, para fazer consolidação orçamental. Ou seja, o excedente orçamental não vai ser todo para devolver aos portugueses, parte vai ser usado para fazer consolidação orçamental, para melhorar a dívida. A outra parte será para usar em medidas de apoio aos portugueses“, acredita.

O Governo tem prometido devolver o que conseguir amealhar a mais com a subida dos preços. Por exemplo, em maio deu um aumento extraordinário aos funcionários públicos, de 1%, e em julho pagou um aumento intercalar das pensões que deverá custar mil milhões de euros (que acresce à despesa permanente). Também prolongou o IVA Zero até ao final do ano. Mais recentemente, na quinta-feira, anunciou novas medidas para o crédito à habitação, mas não são conhecidos os custos (algumas não terão custos, mas outras, como o reforço das bonificações, terão).

Mas se assim foi, também é verdade que foi acumulando algumas folgas expressivas. Não só por via fiscal, com o aumento das receitas com contribuições sociais por via do aumento do emprego ou dos salários — segundo o INE, a receita com impostos sobre o rendimento e o património subiu 17,9% no segundo trimestre do ano face a período homólogo, sobre a produção e importação cresceu 3,1%, enquanto as receitas com contribuições sociais avançaram 10,6% e as vendas 4,7%.

Por exemplo, como o Observador escreveu, dos mil milhões destinados a ajudar as empresas a lidar com a escalada do gás natural foram até agora gastos menos de 100 milhões de euros, por causa do alívio sentido, desde o início do ano, nos preços grossistas, o que resulta numa almofada orçamental de centenas de milhões de euros em 2023.

Gás natural mais barato que o previsto dá folga que pode ir até 900 milhões nas contas públicas

Para Pedro Brinca, economista da Nova SBE, há uma “pressão para que o Governo não apresente excedente significativo“. “Quanto mais não seja da oposição, inclusive do PSD”, com a proposta do IRS que pressupõe despesa já em 2023. Essa “pressão existe não só da oposição, mas de muitas pessoas“, acrescenta. A resposta das medidas para o crédito à habitação já é, considera o economista, disso exemplo, uma estratégia que, analisa, “vai contra a tentativa do Banco Central Europeu (BCE) de usar as taxas de juro para tirar poder de compra às famílias”, o que pode ter consequências no futuro, “no sentido de que a inflação pode descer mais devagar e teremos de ter taxas de juro mais elevadas durante algum tempo”.

Ainda assim, frisa: “nenhuma luta contra a inflação justifica pessoas a passar por privações sociais e materiais”. O economista rejeita medidas generalizadas, como um novo cheque de 125 euros, ou mesmo o IVA Zero, que beneficia também os mais riscos.

Paulo Rosa defende que se não houver “medidas adicionais a serem tomadas no último trimestre deste ano que penalizem as contas públicas”, esta “seria, talvez, a altura apropriada para o executivo avançar com uma previsão mais otimista e melhoria do saldo orçamental”. Mas esse não é necessariamente o caso. Se é certo que as contas equilibradas “permitem ao Estado português financiar-se a taxas de juro mais baixas do que a vizinha Espanha e restantes países periféricos mediterrânicos”, também considera como certo que é uma “fatura’ muito elevada para os rendimentos das famílias”. “O rendimento disponível das famílias é cada vez menor, e as elevadas taxas de juro penalizam cada vez mais os gastos das famílias, sendo provável que o consumo privado abrande ainda mais”, defende.

Segundo o INE, no segundo trimestre do ano, a taxa de poupança das famílias aumentou 0,4 pontos percentuais face ao trimestre anterior, para 5,7%. Pedro Brinca tem uma justificação: “Em momentos de incerteza, as pessoas poupam com medo do que pode acontecer e retraem o consumo“. Em inglês, chama-se a isso “precautionary behaviour” (em tradução livre, comportamento de prevenção).

“Efeitos acumulados” da subida dos juros “começam a sentir-se” nos dados da economia. PIB estagna mas gás no consumo surpreende

Paulo Rosa, do Banco Carregosa, acrescenta que as taxas de juro mais elevadas dão uma melhoria gradual das remunerações dos produtos de aforro do Estado e dos bancos, o que funciona como um atrativo. Se a poupança continuar a aumentar, o economista diz que a tendência será de retração do consumo. “Se a propensão à poupança aumenta, então forçosamente a propensão ao consumo diminuiu na mesma proporção. Em boa verdade, o consumo privado em Portugal tende a desacelerar cada vez mais, não só pelo aumento da poupança, mas também por uma diminuição do recurso ao crédito e pelos pagamentos mais elevados nos créditos já existentes”, refere. O economista João Borges de Assunção, da Universidade Católica, adianta, também, que, apesar da subida, que não parece significativa, a taxa de poupança “está em níveis historicamente baixos“.

Entre os economistas, há também a discussão sobre se Fernando Medina, e o Governo, têm ido mais longe do que o necessário. Em declarações à RTP3, o economista Ricardo Ferraz lembra que o Executivo inscreveu no OE para 2022 um défice de 1,9% para esse ano, mas acabou com 0,3% de saldo negativo. O economista do ISEG e da Lusófona acredita, por isso, que o Governo já deveria, este ano, ter enveredado por uma redução mais significativa da carga fiscal e, em compensação, a uma consolidação fiscal mais lenta. Por isso, e porque há “margem, defende que a prometida redução fiscal no IRS vá mais longe em 2024. “Creio que o Governo podia ter ido mais longe no apoio às famílias e, em termos estruturais, de competitividade fiscal, nomeadamente com o IRS”, defendeu.

Excedente é “frágil”. CFP pede cautela

Apesar do excedente projetado para o ano, de 0,9%, o Conselho das Finanças Públicas é cauteloso na avaliação e diz que esse superávite é “instável, frágil”. As palavras são de Nazaré da Costa Cabral, na conferência de imprensa desta quinta-feira, onde pediu “cautela”. Com a perspetiva de excedente — semeada pela instituição e pelos dados do INE divulgados esta sexta-feira — “há sempre a tentação de dizer que há uma folga ou há uma margem para acomodar medidas que possam surgir do lado da despesa, mas também do lado da receita”, acrescentou.

Mas essa “folga é quase nula” devido à dívida que, apesar da revisão em baixa inscrita pelo Governo no reporte enviado a Bruxelas, de 107,5% para 106,1%, continua elevada e bem acima do objetivo de referência, de 60% do PIB. Por isso, a economista deixa o aviso: “Todas as medidas do lado da despesa ou até da receita têm de ser muito bem medidas, muito bem ponderadas. Porque seria muito gravoso para a situação financeira do nosso país se este país se alterasse”.

Em entrevista ao programa Vichyssoise, o vice-presidente da bancada do PS, Francisco César, salientou que uma “gestão precaucionária” da dívida pode permitir, no futuro, ter outros instrumentos de apoio. “A questão é que, se tivermos uma gestão precaucionária do ponto de vista do aumento da dívida pública em valor nominal e redução do seu valor relativo, isso pode permitir que, em termos de juros, possamos poupar o suficiente para ter outros instrumentos para ajudar aqueles que são mais desfavorecidos em época de crise”, afirmou.

Para o socialista, “um bom resultado orçamental não é um excedente orçamental”, aludindo à ideia de equilíbrio. “Um bom resultado orçamental é um resultado que permite, por um lado, acudir o que é necessário acudir e, por outro lado, garantir que a dívida está em níveis controláveis, sustentáveis, que deem instrumentos ao Governo para poder intervir naquilo que tem de intervir. Isso é um equilíbrio”, afirmou.

Francisco César: “Um bom resultado orçamental não é um excedente orçamental”

João Borges de Assunção, da Universidade Católica, entende que o Governo deveria apresentar, para 2024, um Orçamento de Estado com um saldo estrutural primário semelhante ao deste ano. “Ou seja, uma política orçamental neutra. O peso da dívida pública no Produto Interno Bruto é ainda muito elevada e as despesas com juros podem ficar rapidamente incomportáveis”, defende. O economista apelida como uma “má prática da política orçamental ir tomando medidas ao longo do ano“, porque cria “um ambiente económico de grande instabilidade” que “impede a economia de funcionar de forma eficiente”. Em vez disso, queria ter visto uma atualização dos escalões de IRS em 2023 à taxa de inflação esperada e defende que, no próximo ano, se usem regras “simples e critérios claros” para atualizar os escalões e “não dirigidas para subgrupos populacionais”. Tudo opções que Fernando Medina terá de equilibrar nas três semanas que lhe restam para pensar e delinear o Orçamento do Estado para 2024.