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DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

A família e os amigos que ajudaram Sérgio depois de uma artéria se romper no cérebro e dos 32 dias em coma que mudaram a vida para sempre

Durante 32 dias em que esteve em coma depois do aneurisma, Sérgio recebeu um diário no telefone com tudo o que estava a acontecer lá fora. Está a voltar à vida, amparado pelos amigos e pela família.

Passaram sete meses desde que Sérgio da Ponte regressou a casa. A partir desse dia teve de reaprender a fazer tudo de novo: andar, comer, falar. Até a pensar. Está a fazê-lo com o suporte de uma rede que inclui a família e alguns amigos mais próximos, numa pequena cidade onde todos o conhecem — e isso tem sido difícil de gerir: todos perguntam, todos querem saber o que aconteceu, como vai ficar. Ainda não se sabe. Por agora, a certeza de que já fez muitos progressos. E a esperança de que todas as peças se encaixem, ainda que o cenário já não seja o mesmo. Nada ficou como dantes depois de um aneurisma rebentar dentro da cabeça desde homem de 43 anos. Diz que deve muita da recuperação à mulher, a vários amigos e aos profissionais de saúde que nunca mais o largaram.

A mulher
Sofia Leite

"Tentei sempre tornar o Sérgio autónomo”

Sofia atendeu a chamada do marido, orientou-o e, à distância de duzentos quilómetros, voltou a adormecer, naquela madrugada do Dia dos Namorados. Conhece-o melhor que ninguém (namoram desde a faculdade, há vinte anos), e por isso acreditou que fosse uma crise de ansiedade e que na manhã seguinte já tivesse passado. Mas às sete da manhã o telefone tocou. E não era o marido.

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Do outro lado estava Ana Faro, amiga, pediatra de profissão, mulher de Pedro Moreira — o amigo próximo que o acompanhara ao hospital. As notícias não eram boas. Do Hospital de Pombal (onde deu entrada, inicialmente), Sérgio foi transferido para Leiria e de lá para o Centro Hospitalar Universitário de Coimbra (CHUC), já com o diagnóstico.

Sofia foi direta para lá. No caminho, ligou à cunhada, para que avisasse o resto da família. Licenciada em comunicação social, Sofia é uma comunicadora nata. Depois de dez anos a trabalhar em design gráfico, acabou por seguir outro sonho: abriu uma loja de roupa de criança. Foi também por isso que decidiu ficar mais uns dias em Guimarães — ia ver coleções nos dias seguintes. Mas aquele telefonema, às 2h08 da madrugada do último 14 de fevereiro, mudou tudo. “Quando ele me disse que estava com medo, eu assustei-me. Mas como era hábito ele ter esse registo e me disse que já tinha chamado a ambulância, em princípio tudo estava encaminhado. Quando deixei de o ouvir, liguei ao Pedro.”

Mas às sete da manhã Ana comunicou-lhe com voz doce, mas assertiva: “‘Sofia, não tenho outra forma de dizer isto, o Sérgio teve um AVC hemorrágico’. Eu nunca tinha ouvido falar nesse termo”. No caminho entre Guimarães e Coimbra imaginou todos os cenários. Mas nunca conseguirá apagar da memória a imagem do marido, adormecido, nos cuidados intensivos, envolto em tubos e rodeado de máquinas. Nessa fase arranjou uma forma de digerir a dor, a angústia de não saber como – e se – Sérgio iria acordar.

“Eu vinha para casa todos os dias, tinha a Francisca, e tinha que estar forte ao pé dela. Expliquei-lhe que o pai estava com uma dor de cabeça gigante e que durante algum tempo, para ele não sentir tanta dor, os médicos tiveram de o adormecer. Aconselhei-me com a Ana sobre a melhor forma de comunicar o estado do pai. Durante este processo, a minha filha surpreendeu-me todos os dias. À noite, depois de a deitar, faltava-me aqui o Sérgio. E então ‘falava’ com ele todos os dias, enviava-lhe mensagens para o telemóvel (desligado), que ele só leu muito depois, a contar o dia, e como era a minha forma de o sentir. Mandava vídeos da Francisca, porque sabia que haveria coisas de que me iria esquecer.”

[Já saiu o segundo episódio de “A Grande Provocadora”, o novo podcast Plus do Observador que conta a história de Vera Lagoa, a mulher que afrontou Salazar, desafiou os militares de Abril e ridicularizou os que se achavam donos do país. Pode ouvir aqui, no Observador, e também na Apple Podcasts, no Spotify e no Youtube. E pode ouvir aqui o primeiro episódio.]

No hospital, os dias passavam. Sérgio continuava em coma. Os médicos diziam-lhe “coisas diversas, às vezes díspares, até, também em função das complicações todas que ele foi tendo”. Havia dias em que Sofia regressava a casa contente, outros em que estava de rastos.

“Todos os dias, às sete e meia da manhã em ponto, eu ligava para os cuidados intensivos a perguntar como tinha sido a noite do Sérgio.” Até que, a 16 de março, do lado de lá, a notícia foi diferente: “O Sérgio abriu os olhos”.

“Eu queria muito ver o olhar dele, porque sabia que assim encontraria as respostas que precisava: se ele se lembrava da Francisca, de mim, que era uma coisa que me assustava muito e era uma possibilidade. Quando lá cheguei, percebi que era o Sérgio, sim. Foi muito bom. Um dia e um momento que nunca vou esquecer”.

Começava aí outra fase do processo. Se “o silêncio, durante o coma, o facto de ele não mexer, era aterrador”, a seguir vieram as dúvidas. Poucos dias depois, recebeu a notícia de que ele poderia ir para casa, se houvesse condições para tal. “Fiquei muito contente. E depois falei com a minha amiga Ana e ela voltou a puxar-me para a terra. ‘Olha que não vai ser aquele Sérgio de antes’”. A nível motor, “teve uma recuperação incrível”, diz Sofia. Mas têm sido meses desafiantes, de muita fisioterapia, terapia ocupacional, psicoterapia. Ela aprendeu a tomar notas sobre “tudo aquilo que não percebesse, nas consultas, para perguntar depois, por exemplo, ao neurocirurgião”.

Ao início, Sérgio não dormia. Por indicação do médico, tiveram de lhe tirar o telemóvel. “Ele estava muito confuso e pensava que ainda estava a trabalhar. Nós não sabíamos para quem iria ligar.” Sofia tentava ser uma sombra invisível. “Tentava evitar a ajuda direta, porque sabia que isso o fragilizava”. Por exemplo, no banho, “só ajudava quando percebia dificuldade no equilíbrio. Mas tentei sempre torná-lo autónomo, não infantilizar a situação, porque isso só iria agravar.”

À medida que os meses passam, Sofia acredita que Sérgio conseguirá recuperar-se, embora neste momento “esteja numa fase depressiva, porque tem consciência do que lhe aconteceu”. “Acredito que em breve começará uma nova fase, encontrará novas coisas para fazer, que lhe darão prazer. Porque de facto é uma vida nova, para ele. E para nós. Somos todos outras pessoas.”

A mãe
Lídia Joaquim

“Ficava com ele o tempo que fosse preciso”

Foi a filha, irmã mais velha de Sérgio, quem deu a notícia à mãe. “Primeiro, disse-me que ele tinha tido um AVC. Só depois é que ouvimos falar do aneurisma.” Lídia Joaquim é mulher de poucas falas, vai seguindo com o olhar os movimentos do filho, um treino que ganhou nos dias em que o acompanhava na fase de convalescença. “Vinha todos os dias. Durante mais de um mês, era como se fosse outra vez uma criança. Ele próprio dizia-me: ‘Parece que tenho outra vez quatro anos’”. Lídia puxava-lhe pela memória. Falava-lhe da vida de todos os dias, do que estava a acontecer, mas também de outros tempos, quando a família regressou de França, para onde ela e o pai tinham emigrado.

À medida que os dias passavam, a mãe notava-lhe melhoras, sobretudo na condição física. “Mas ele não estava bem para ficar sozinho. Estava muito confuso.” Aos poucos, foi deixando de estar lá o dia todo. Às vezes levava o almoço feito de casa, e ia só almoçar com ele e falar. “Um dia disse-me: ‘Oh mãe, eu já não sou bebé nenhum’. E foi nessa altura que percebemos que talvez já conseguisse ficar sozinho.” A família percebeu que isso seria importante para ganhar autonomia. Mas a mãe continua sempre alerta: “Eu não me importava de vir aqui para casa o tempo que fosse preciso, nem que fossem dois ou três meses seguidos”.

Começou a diminuir o tempo de presença, até que, finalmente, foi intercalando os dias. Agora já só vai em modo visita. Nem que seja para lhe levar o que gosta de comer: “hambúrgueres, arroz e massa”.

O amigo
Pedro Moreira

“Tirava-o de casa para caminhar”

Sérgio e Pedro são amigos “de toda a vida”. Ou quase, que é como quem diz há trinta anos. Têm pouco mais de 40. Conheceram-se na escola, na adolescência, e nunca mais se perderam de vista. Nesta altura, são quase vizinhos. Quando recebeu o telefonema de Sofia, e num instante se pôs em casa de Sérgio, Pedro Moreira, 43 anos, engenheiro informático, também não se alarmou. “Não achei que fosse nada de especial, porque ele é muito dado a estas coisas de ir para o hospital, ou por ansiedade, ou por problemas relacionados com a doença de Crohn.” Deixou os contactos no hospital e voltou para casa.

Duas horas depois, ligaram-lhe “a dizer que ele tinha vomitado e estava com muita dor de cabeça, por isso iam transferi-lo para Leiria”. Nessa altura, deixou de relativizar. Soube que fizera uma convulsão. No Hospital de Santo André, a TAC haveria de confirmar a rutura do aneurisma. A notícia da transferência para os CHUC mostrou “o quanto era grave”, recorda Pedro. Só voltaria a ver o amigo em coma, na unidade de cuidados intensivos. Foi lá duas vezes, durante esse tempo, a última já com o amigo acordado. “Fui com o Caló (outro amigo de infância). Queríamos ir juntos, falar com ele, e então percebemos que era ele que lá estava… mesmo que não tivesse um discurso coerente”. Sérgio falava de coisas passadas há muito tempo, mas referindo-se ao dia anterior. “Mas quando ele acordou e vimos que era ele, isso deu-nos muita esperança.”

“Ajudar o Sérgio foi uma coisa natural. Era o que tínhamos de fazer.” Por trabalhar a partir de casa, conseguiu dar-lhe um apoio que o amigo reputa de “extraordinário”. Passava por lá quase todos os dias. “Se eu o conseguisse levantar, íamos passear um bocadinho. Um pouco mais de cada vez. No primeiro passeio que demos, ele veio para casa muito debilitado e fomos só até à esquina da rua, que são vinte metros. Sentiu-se muito cansado e tivemos de voltar.” Depois, foram progredindo. “Agora já fazemos caminhadas de meia hora, quase uma, por vezes. Começámos muito progressivamente e muito devagar”.

Também a parte cognitiva tem melhorado. Pedro nota que agora o discurso é coerente, que o amigo está a voltar a ser quem era, mesmo que ainda tenha muitos lapsos de memória. “Mas está muito, muito melhor.”

A amiga-médica
Ana Faro

“Quando uma coisa destas acontece, o difícil é não ser intrusivo”

Ana Faro é casada com Pedro Moreira, e foi através do marido que se tornou, também ela, amiga de Sérgio e de Sofia. Por ser pediatra e falar a mesma linguagem dos médicos que acompanharam Sérgio, acabou por ter um papel preponderante em todo o processo, traduzindo, muitas vezes, todas informações.

Percebeu, primeiro que todos, de que “era uma coisa grave”, quando ligaram do hospital a dizer “que ele tinha tido uma convulsão”. Pediatra na Unidade Local de Saúde da Região de Leiria (ULSRL), que integra o Hospital de Santo André (para onde Sérgio foi transferido inicialmente a partir de Pombal), não se cansa de dizer que “apesar de muitas falhas, quando as coisas são graves, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) funciona muito bem. Ele saiu de Pombal já acompanhado por um médico, e em Leiria já estavam à espera dele. Fez imediatamente a TAC. Pelas imagens percebeu-se logo que era a rutura de um aneurisma, e foi de imediato enviado para Coimbra, para a neurocirurgia. Mas durante esse período ele esteve sempre estável”. Nos dias que se seguiram teve que explicar muitas vezes aos familiares o que estava em causa: a rutura de um vaso com uma má formação. “Um aneurisma é isso.”

A amiga visitou-o também nos cuidados intensivos, uma única vez, sedado e ventilado. Voltaria a vê-lo mais tarde, já em casa. “Como estou habituada, não me impressionou tanto vê-lo no hospital, como quando o vi, aqui em casa: tinha perdido peso, estava muito debilitado. Tinha muita fraqueza muscular, muita dificuldade em se levantar. Além disso, estava muito confuso, ainda era tudo uma grande névoa. A memória a curto prazo estava muito comprometida.”

Ela e o marido (tal como outros amigos) tiveram a plena consciência de que iriam ser todos precisos para ajudar à recuperação de Sérgio. “Acho que às vezes, quando uma coisa destas acontece, o difícil é não ser intrusivo”, diz Ana Faro. Todos querem ajudar mas é preciso perceber a melhor forma de o fazer. “E isso não é fácil.” No final diz que se se sentiu “muito útil”. Sofia ligava-lhe todos os dias, para desabafar, mas também para lhe contar “tudo o que os médicos lhe iam dizendo, para que eu explicasse melhor”.

Agora que já passou algum tempo, Ana considera que “a recuperação do Sérgio foi absolutamente incrível”. Porque houve momentos em que esta amiga que também é médica achou que ele não conseguiria salvar-se, outras vezes julgava que ele ficaria com imensas mazelas, à conta das complicações que teve durante o internamento: uma hemorragia (por causa da doença de Crohn) que obrigou a uma intervenção por colonoscopia, uma pneumonia relacionada com a ventilação, uma trombose do barço devido ao cateter. “E depois é incrível como, no fim, isso não interessa nada.”

O amigo
Carlos Pimenta

“Era preciso aligeirar, fazê-lo rir”
 

Carlos e Sérgio conhecem-se também há trinta anos, do tempo da escola preparatória. Sempre tiveram uma relação forte, ao ponto de Carlos (que todos tratam por Caló) ser padrinho da filha de Sérgio e Sofia. Naquela noite de 14 de fevereiro, a mulher de Carlos – enfermeira no hospital – ouviu uma conversa de corredores sobre “um rapaz que estava a trincar gelo”. Ligou ao marido. “Só conhecíamos uma pessoa que fizesse isso. Era o Sérgio.” Nas horas seguintes os amigos foram-se colocando em contacto, sobretudo a partir do momento em que foi conhecido o diagnóstico.

Depois do regresso a casa, Carlos e Pedro foram incansáveis na ajuda à recuperação do amigo. Quando estão juntos, voltam a ser os miúdos do recreio da escola. Caló acredita que é assim que o ajudam. “Era preciso aligeirar, fazê-lo rir. Quando às vezes chegava aqui a desafiá-lo para ir dar uma volta, ele dizia que não lhe apetecia. Nessa altura eu perguntava: ‘Quais são as sapatilhas que queres, para eu te calçar? E ele levantava-se logo’”. De resto, é com grande alívio que voltam todos a sentar-se no sofá de Sérgio: “Não adianta esconder. Aquela fase foi muito dura. Os dias demoravam a passar, queríamos novidades e o processo era lento”.

A neuropsicóloga
Catarina Sintra

“O Sérgio deparou-se com uma mudança de vida forçada e drástica”

Catarina Sintra conheceu Sérgio na consulta de reabilitação neurológica do Centro Hospital de Leiria, atual ULSRL, depois de passar pela Fisiatria. “O Sérgio foi encaminhado para a minha consulta de neuropsicologia, para realizar uma avaliação neuropsicológica, que inclui a avaliação das funções cognitivas, do comportamento e das emoções, bem como funcional, com a finalidade de caracterizar o perfil neuropsicológico”. O objetivo era iniciar o quanto antes o  programa de Reabilitação Neuropsicológico (RNP), uma vez que as sequelas do aneurisma representam um processo de perda.

Melhor do que ninguém, a neuropsicóloga percebeu quem tinha pela frente: “O Sérgio deparou-se com uma mudança de vida forçada e drástica, a vida como a conhecia – muito ativo, independente, defensor dos seus ideais, de pensar e fazer – deixou de existir, queria voltar à sua vida e não lhe era permitido”. Catarina lembra-se bem de como ele verbalizava frequentemente “sentimentos de revolta, frustração, tristeza, inutilidade, receio e insegurança face ao futuro. E tudo isso é absolutamente normal”. O caso de Sérgio encaixou numa intervenção prioritária conjunta com a reabilitação, por ter antecedentes de depressão.

Atualmente continuam as consultas semanais de uma hora. “Foi delineado um programa individualizado e personalizado de RNP intensivo, que envolve técnicas manuais e computorizadas.” Durante a consulta, depara-se  com “uma série de exercícios e jogos que visam sobretudo treinar memória, atenção e funções executivas. Em simultâneo realiza todos os dias, em casa, no computador, treino individual online, com duração de trinta a sessenta minutos, através da plataforma CogWeb, uma ferramenta online gratuita com programas personalizados de treino.

Catarina destaca a importância de uma rede como a de Sérgio: “É importante os familiares e amigos estarem envolvidos no processo de recuperação”. Faz toda a diferença.

A terapeuta ocupacional
Edite Antunes

“Quando o Sérgio apareceu com a barba feita por ele, foi uma grande conquista”

Edite Antunes já ouvira falar de Sérgio antes de o ter como paciente. Tinha familiares e amigos “que conviveram pessoalmente com ele, referindo-o como trabalhador, empenhado, alegre, aventureiro, dinâmico”. Até que o conheceu, agora com outras caraterísticas, no Serviço de Medicina Física e Reabilitação (SMFR) do Hospital de Pombal, onde é terapeuta ocupacional.

A 10 de abril recebia-o pela primeira vez para avaliar as funções sensoriais, motoras, cognitivas e as competências e desempenho das atividades da vida diária. Foi assim que fez a lista De dificuldades e definiu um plano de intervenção. “A partir desse dia o Sérgio passou a deslocar-se três vezes por semana ao SMFR, para as sessões de terapia ocupacional e fisioterapia. Entrava devagar, com um sorriso discreto, sempre muito atento a tudo em redor”, recorda Edite. Assinala também os momentos das “em que a atenção e a concentração eram fundamentais, outros em que a troca e compartilhamento de experiências com outras pessoas (com diagnósticos médicos diferentes e diferentes objetivos a alcançar) se proporcionava”.

“Ao promover, normalizar e estimular as funções e competência afetadas para retomar as suas atividades da vida diária, as conquistas podem parecer simples, mas são significativas para quem as perdeu. Como o dia em que o Sérgio apareceu com a barba feita por ele, todo orgulhoso e satisfeito”, sublinha.

Atualmente, Sérgio já não frequenta as sessões no Hospital de Pombal. Mas Edite já se cruzou com ele na cidade, já lhe observou novas vitórias. Destaca, em todo o processo de reabilitação, o papel da mulher, Sofia: “A troca de informação, as dúvidas que surgiam, o ensino de estratégias para facilitar a continuidade terapêutica em casa eram discutidos neste caso no final de cada sessão, sempre com ela colaborante, preocupada, atenta. Afinal, fez do objetivo individual da reabilitação do Sérgio um objetivo em comum”.

O neuropsicólogo
Mauro Leitão

“Trabalhamos a gestão emocional”

Sérgio e a família empenharam-se de tal forma na recuperação que decidiram juntar mais consultas de neuropsicologia ao plano hospitalar. Foi assim que chegaram a Mauro Leitão, numa clínica privada de Leiria. Trabalha desde 2021 e ainda não tivera ocasião de contactar com um caso como o de Sérgio.

“Ele estava numa fase em que após uma recuperação significativa rápida, da motricidade e linguagem [voltou a andar e a falar] tinha compromissos severos ao nível de outras funções, nomeadamente a memória e a orientação temporal e, também da linguagem, principalmente ao nível da compreensão.”

Mauro Leitão lembra que “a abordagem em neuropsicologia deve ser centrada na pessoa e não no problema. O mais importante para o nosso trabalho é a relação que construímos com as pessoas que acompanhamos. Assim podemos elaborar um plano de acordo com aquilo que faz sentido para a pessoa e não só de acordo com o que dizem os livros”.

Uma das componentes da reabilitação é a gestão das emoções. “É comum que os pacientes em recuperação de AVC ou rotura de aneurisma tenham sintomas depressivos. Com o Sérgio é isto que está a acontecer e o que estamos a fazer é trabalhar essa parte. Há um longo caminho nesta reabilitação neuropsicológica”, conclui, certo de que tanto o seu trabalho como o da colega Catarina Sintra se complementam.

O doente
Sérgio da Ponte

"O médico que me operou disse-me que estive mais do lado de lá do que do lado de cá”

Aos 43 anos, Sérgio Joaquim da Ponte está a reaprender a viver. Engenheiro civil de formação, passou os últimos anos a gerir a quinta de eventos da família, num frenesim sem paralelo. Quando naquela madrugada se sentiu mal, com a cabeça “a explodir”, a mulher e os amigos quase desvalorizaram. Era hábito ele ter alguns “achaques”, não só à conta da doença de Crohn que o acompanha há anos, mas sobretudo de uma certa condição de hipocondríaco que todos lhe reconheciam e com a qual brincavam. A ansiedade (mal) disfarçada, acredita hoje.

Tinha voltado de umas férias em Cabo Verde, com a mulher e a filha de oito anos. Eram os primeiros tempos de uma vida nova para ele, que deixara para outros a gestão da quinta de eventos da família. Houve tempos em que Sérgio da Ponte – Jack para os amigos – trabalhava entre 16 a 18 horas em todos os 31 dias de agosto, sempre dias de casamento na Quinta da Concha, perto de Pombal. Chegou a montar uma tenda no jardim para dormir, ao invés de ir a casa (morava então em Leiria, a cerca de vinte minutos de carro), para poupar tempo.

No início deste ano, decidira mudar de vida. Só não imaginava que seria desta forma. O rapaz que dormia “a correr”, sem dias de descanso durante o verão, era, no entanto, um amante do desporto. Corria regularmente, ao ponto de fazer a maratona do Porto. Em janeiro, dedicava-se a correr o mundo, a viajar. Desde miúdo que lhe fora diagnosticada a doença de Crohn, e por isso estava habituado a médicos, hospitais e medicação. Sem saber explicar, as notícias sobre aneurismas sempre o impressionaram. Quando pensava no assunto, “imaginava que morria, se tivesse um”. Não aconteceu.

Neste princípio de 2024, tinha mudado o rumo da vida. Tinha outros projetos para pôr em prática, tinha a filha para acompanhar (mais), tinha tempo. Depois das férias rumaram a Guimarães para passar uns dias em casa dos sogros. Sofia, a mulher, e a pequena Francisca, ficaram lá, aproveitando a pausa do Carnaval. Sérgio tinha o tratamento habitual (para a doença de Crohn, a cada oito semanas) para fazer no Hospital de Santo André, em Leiria, e por isso voltou sozinho, de comboio.

Na madrugada de 14 de fevereiro estava sozinho em casa, uma moradia em Pombal. A televisão ligada, a navegar no telemóvel, começou a ter náuseas. Ao mesmo tempo, uma dor lancinante na nuca. Assustou-se, ligou para o 112. Ligou à mulher (que, por sua vez, ligou a Pedro, o amigo mais próximo) e lhe recomendou deixar a porta aberta. Deitou-se no chão. Ainda tem memória de ver os bombeiros a chegar, de o deitarem na maca. Mas a partir daí já não consegue reproduzir o que lhe aconteceu: um aneurisma (distúrbio causado pela dilatação de um vaso sanguíneo no cérebro que se forma na zona da bifurcação das artérias) que rebentou, deixando-o mais de um mês em coma, ao que se seguiram complicações várias.

São difusas as memórias daquela madrugada, para lá da violenta dor de cabeça. A partir daí, tudo é uma névoa. Quando acordou do coma, num hospital de Coimbra, 32 dias depois, garante que se levantou sozinho e, com dificuldade, alcançou a casa de banho. “Estava cheio de fios e até uma agulha na testa” (um cateter para avaliar a pressão intracraniana). Libertou-se deles. Viu um enfermeiro e perguntou que dia era. Não podia ser. Para ele, não passara de uma longa sesta, de algumas horas. E é tudo o que se lembra dos dias no hospital. O resto sabe por terceiras pessoas.

Quando voltou a casa e pôde finalmente abraçar a filha, a família e amigos, percebeu que tinha um longo caminho pela frente, mesmo que sem total consciência dele. “Ao princípio, vinham cá pessoas para me ver. Eu sempre soube quem eram, mas depois já não me lembrava que tinham vindo. A memória a curto prazo foi-se. Mas há de voltar.”

Seguiram-se episódios “de paranoia”. “Dizia à minha esposa que tinha consultas marcadas nos sítios mais loucos”, recorda. Também a motricidade fina se mostrava afetada. Não conseguia segurar numa colher em condições, teve que recorrer a uma adaptada. Foi nessa altura que a terapia ocupacional se revelou tão importante. A vida passou a correr entre os hospitais de Coimbra e Leiria, juntando a estes alguma terapia no privado.

Nesta altura aguarda motivação para voltar ao ginásio. Sérgio engordou mais de vinte quilos, que atribui à medicação e ao sedentarismo que nunca conhecera. Não se sabe ainda quando terá alta, quando poderá “fazer a vida normal”. “Falaram-me de um ano de recuperação, pelo menos. O médico que me operou disse-me que estive mais do lado de lá do que do lado de cá. Por isso tive muita sorte.”

Até àquele dia, só tivera dor de cabeça quando andava de avião. Comia e dormia mal, sabe disso, mas tentava compensar com o exercício. Agora sonha apenas com uma vida normal.

Arterial é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com doenças cérebro-cardiovasculares. Resulta de uma parceria com a Novartis e tem a colaboração da Associação de Apoio aos Doentes com Insuficiência Cardíaca, da Fundação Portuguesa de Cardiologia, da Portugal AVC, da Sociedade Portuguesa do Acidente Vascular Cerebral, da Sociedade Portuguesa de Aterosclerose e da Sociedade Portuguesa de Cardiologia. É um conteúdo editorial completamente independente.

Uma parceria com:

Novartis

Com a colaboração de:

Associação de Apoio aos Doentes com Insuficiência Cardíaca Fundação Portuguesa de Cardiologia PT.AVC - União de Sobreviventes, Familiares e Amigos Sociedade Portuguesa do Acidente Vascular Cerebral Sociedade Portuguesa de Aterosclerose Sociedade Portuguesa de Cardiologia

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