No dia 7 de outubro, o filho de Dalit Shtivi, Idan, tinha ido tirar fotografias a uma festa no sul de Israel. “Ele chegou à festa às 6h30 e os bombardeamentos começaram. Ligou à namorada a dar-lhe conta disso e a informá-la de que ia voltar para trás”, conta a mãe ao Observador. Mas era demasiado tarde. Antes disso, os militantes do Hamas já tinham entrado em território israelita e já tinham começado os ataques em vários pontos junto à fronteira com a Faixa de Gaza.
Contrariamente à maioria dos familiares dos reféns, as autoridades israelitas não conseguiram localizar inicialmente Idan — não sabiam se tinha sido morto, raptado ou se estava apenas desaparecido. Durante três meses, o filho de Dalit, que tem nacionalidade portuguesa, esteve com um estatuto de paradeiro desconhecido. “Só 90 dias depois é que nos disseram tinha sido raptado”, lembra ao Observador a tia do jovem de 28 anos, Ayelet.
Numa conversa com o Observador numa visita a Lisboa, as duas mulheres retratam o “pesadelo” que têm sido os últimos quatro meses. Apesar de terem sido informadas de que o familiar terá sido raptado e de que terá sido levado para a Gaza, Dalit e Ayelet realçam que não “existem provas claras” de onde está, como e se está bem de saúde. Ou seja, existe apenas uma “assunção” de que está vivo e em cativeiro. “Não é como se alguém o tivesse visto”, lamenta a tia.
Mesmo assim, Dalit não tem dúvidas de que o filho está vivo. “Sou mãe. Eu sinto que ele está vivo. Falo com ele todas as manhãs. Falo com ele quando vou dormir. Sinto que ele está vivo. Envio-lhe boas vibrações e digo-lhe sempre para ser forte. Estamos a fazer tudo por ele”, conta a mulher, que está em Portugal para pedir ao Governo que exerça pressão diplomática para um eventual acordo para a libertação de reféns na Faixa de Gaza.
Numa situação idêntica, estão também Daniel Miran e Michal Lavi. O primeiro é o pai, a segunda é a cunhada de Omri Miran, que também tem nacionalidade portuguesa. O homem de 49 anos foi raptado a 7 de outubro no kibutz onde mora, o de Nir Oz. “Às 10h20 recebi a última mensagem dele. Tentei enviar-lhe mais mensagens, mas nunca recebi mais nenhuma resposta. A última que recebi foi ‘Estamos no abrigo e estamos bem'”, recorda o pai.
Tal como Dalit e Ayelet, aqueles dois familiares de Omri Miran estão em Lisboa para pedir que a diplomacia portuguesa tenha um papel mais proativo na questão da libertação dos reféns que estão na Faixa de Gaza. “A minha irmã, cunhado e sobrinhas são cidadãos portugueses”, frisa Michal, ressalvando: “Mas isto não é sobre ter cidadania israelita ou portuguesa. É sobre os cidadãos do mundo. É sobre o mundo em que gostaríamos de viver”.
Servindo como tradutora de Daniel Miran, Hilla Maron, uma das fundadoras do Fórum de Famílias de Reféns e Pessoas Desaparecidas a que pertencem os familiares ouvidos pelo Observador, sublinha precisamente que a comunidade internacional não deve permitir que uma “pessoa vá para a cama e seja raptada, decapitada ou presa”, como aconteceu a vários reféns. “Não pode acontecer em Lisboa, Israel, não pode acontecer na Europa”, vinca, utilizando neste sentido o argumento de que a questão do reféns reflete-se em “como queremos que o mundo seja”.
A isto, Hilla Maron acrescenta a ideia de urgência no que concerne à libertação de reféns. “Os reféns que estavam vivos há dois dias estão a ser assassinados. Amanhã pode ser demasiado tarde”, alerta. E assinala que Omri Miran e Idan Shtivi são cidadãos portugueses. “São pessoas que estão ligadas a Portugal. Como têm nacionalidade portuguesa, precisamos que o vosso Governo e o vosso povo apoiem esta causa humanitária.”
Briefings com o primeiro-ministro, a impotência e as críticas a um “mundo demasiado parado”: “Não sabíamos de nada. Sentíamo-nos sozinhos”
A última vez que Dalit falou com o filho foi na sexta-feira, 6 de outubro. “Nessa noite, jantámos juntos e depois ele disse que ia para uma festa. Nem sequer lhe pedi mais detalhes”, diz a mulher que vive na cidade de Telavive. No dia seguinte, sábado, em que se celebra o Shabbat — dia festivo entre os judeus —, a mãe de Idan foi a casa da filha muito cedo. E foi aí que, através da televisão, soube das notícias dos ataques e percebeu que o filho estava no sul de Israel.
Após a última chamada para a namorada, Idan nunca mais deu sinais de vida. E os primeiros tempos no pós 7 de outubro foram um “caos”, admite Dalit, indicando que as autoridades israelitas “não sabiam por onde começar”. A irmã vai mais longe e confessa que a família se sentiu “bastante sozinha” no primeiro mês: “Não sabíamos de nada. Sentíamo-nos sozinhos nesta situação terrível”.
Sem detalhes sobre o que se passou e tendo sido dado como desaparecido pelas autoridades israelitas, a família de Idan não ficou de braços cruzados. “Antes de as Forças Armadas terem entrado em ação, fizemos uma investigação custeada pelos nossos meios. Contratámos especialistas privados forenses”, revela Ayelet. Isso permitiu que soubessem que Idan conduziu um carro com dois amigos para fugir até ser parado por militantes do Hamas.
Idan conseguiu fugir daquele carro, ao passo que os amigos foram mortos. “Ele fugiu para outro carro, continuou a conduzir, mas apareceu outro terrorista”, narra Dalit, que conta que os “terroristas do Hamas gravaram” aquele momento com o recurso a “uma câmara GoPro”. A família descobriu que o jovem de 28 anos ficou ferido na sequência da tentativa de fuga, mas não tem noção da gravidade.
Estas informações são as únicas que a família de Idan apurou até ao momento. Em Gaza, não sabem como é que ele está. Os primeiros tempos, praticamente sem informações, foram muito difíceis, desabafa Dalit. “Eu só conseguia dormir com comprimidos. Não tinha noite, não tinha dias”, diz, indicando que é a “única coisa” na qual tem pensado nos últimos tempos. “Tento ir trabalhar, mas é muito difícil. Não consigo parar de pensar sobre o que se passou com ele. Como é que ele está… Se pudesse ter um sinal dele…”
As coisas mudaram no início de 2024. As Forças de Defesa de Israel comunicaram à família que era muito provável que Idan tivesse sido raptado pelo Hamas e estivesse na Faixa de Gaza. “As Forças Armadas estão agora em cima do assunto e recebemos bastante informação”, assinala Ayelet. “Dão-nos informações todas as semanas. Temos alguém do governo que tenta acompanhar-nos a todo o momento e que nos dá informações”, relata Dalit, confessando que isso lhe transmite algum “alívio”. “E também sabemos que eles estão a controlar tudo”, acrescenta a tia.
Além das informações, Dalit conta que são frequentes as reuniões com o primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, e também com o ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir. A família também está empenhada em iniciativas. Por exemplo, a irmã de Idan é “designer de roupa”: “Ela desenhou camisolas com a inscrição ‘Bring Them Home [Tragam-nos de volta para casa]'”.
Após 90 dias de desaparecimento, a família de Idan Shtivi foi informada hoje de que ele foi raptado no festival de dança Nova e levado para Gaza.
Idan tem também nacionalidade portuguesa e o seu irmão e a sua mãe visitaram #Portugal no mês passado para pedir ajuda a quem quer… pic.twitter.com/vwH6FcO0FU
— Dor Shapira???????? (@ShapiraDor) January 4, 2024
Ayelet conta ainda que “todos os sábados” a família participa nos protestos que ocorrem em Telavive e que apelam à libertação de reféns. “É uma oportunidade para todas as pessoas de Israel apoiarem as famílias”, nota, acrescentando que é uma mensagem igualmente para “todo o mundo”. “As pessoas devem entender que isto não é apenas um assunto que diga respeito a Israel.”
Embora todo o empenho que a família tem colocado na libertação de Idan, Ayelet constata que todas as iniciativas podem cair em saco roto, uma vez que a libertação do jovem “não depende de maneira alguma” dos familiares. “Estamos a tentar fazer o nosso melhor, mas é muito frustrante, é muito difícil. Mas fazer já é alguma coisa. E sem esperança não temos nada”, afirma, sinalizando que tem sido “emocionalmente exaustivo aguentar” tudo isto “durante quatro meses”.
Neste contexto de falta de informações, Dalit enfatiza que a “União Europeia ou Portugal” podem “fazer alguma coisa”. “Podem pelo menos pedir informações, dar-nos algumas certezas, se ele precisa de ajuda… O facto de não sabermos e de não o ouvirmos há tanto tempo é terrível”, diz a mulher. A irmã ainda é mais taxativa: “Não sabemos de nada. A incerteza está a matar-nos”.
Um possível acordo para a libertação de reféns tem sido recentemente discutido por Israel e pelo Hamas, contando com a mediação do Qatar, do Egito e ainda dos Estados Unidos. É neste processo que Dalit deposita alguma esperança. “Se houver um acordo, ele deve ser dos primeiros a ser libertados”, reforça, lembrando que durante a pausa humanitária de novembro — na qual foram libertados 105 reféns — Idan ficou em Gaza porque era um “homem”, dado que, por essa altura, apenas se libertaram mulheres e menores.
“Todos os dias esperamos que [o acordo] vá acontecer. É muito difícil de gerir. O tempo está a esgotar-se”, confessa Dalit. A sua irmã conta que a família já tinha estado em Portugal em setembro para dialogar com as autoridades portuguesas e nessa altura estiveram com os familiares de Yossi Sharabi, um refém luso-israelita que acabou por morrer às mãos do Hamas. “Infelizmente, ele não está connosco. E sabíamos que estava vivo. O relógio está a contar.”
Para Ayelet, não há dúvidas: “Quanto mais tempo esperamos, mais o perdemos”. Assim, a tia de Idan defende que é “urgente agir”. “Muito pode ser feito e lembro que ele tem cidadania portuguesa. Mas friso: isto não é sobre ser português ou israelita. É sobre ser humanista. É sobre estar do lado do certo da História e dos valores humanitários”, diz, atirando: “O mundo está demasiado parado”.
No entender da tia do jovem de 28 anos, é “errado” pensar que a questão dos reféns tem a ver com o conflito entre Israel e o Hamas. “Houve sempre guerras. Mas isto não é uma guerra. Isto vai para além disso. O que aconteceu aqui não devia acontecer numa guerra. Uma guerra não é raptar pessoas da sua casa”, argumenta Ayelet, que pede que Portugal e o mundo “entendam isso” e se “tornem mais ativos”.
“Nunca imaginaríamos que estaríamos nesta situação — nem nos nossos piores sonhos. Se não pararmos tudo agora, a humanidade vai tornar-se pior. Temos de acordar”, insta Ayelet. “Não é sobre política, é sobre vidas humanas”, acrescenta a mãe de Idan.
O rapto de Omri no kibutz, as manifestações contra a Palestina e as notícias ao fim de 50 dias
Quando acordou no dia 7 de outubro, Daniel Miran pensava que ia ser um “dia normal”. “Quando liguei a televisão, vi que havia bombardeamentos junto a Gaza”, conta, uma situação que lamenta ser relativamente normal. O filho, Omri, vivia a poucos quilómetros da fronteira, no kibutz de Nir Oz. “Ligo-lhe sempre. Sempre que há um alerta, ligo ao meu filho.”
A 7 de outubro não foi exceção. Na primeira chamada, o filho revelou-lhe que “estava no abrigo” e disse-lhe “que estava tudo bem”. Mas as imagens que passavam na televisão eram diferentes; a tranquilidade de Omri contrastava com as informações que circulavam. “Havia terroristas nas aldeias a esfaquear homens, mulheres, crianças e animais. Entendi que a minha família estava em perigo”, sinalizou. Omri vivia com a mulher, Lishay, e com as duas filhas — Roni, de dois anos e meio, e Alma de 9 meses.
Entendendo a situação difícil em que o filho podia estar, Daniel volta a ligar-lhe. “Ele disse que tinha saído do abrigo para agarrar duas facas, para ter algum tipo de proteção se os militantes do Hamas chegassem a sua casa. Pediu-me ainda para não lhe ligar e para comunicarmos apenas por mensagens, para que os terroristas não o ouvissem a falar.”
As conversas telefónicas deram lugar às mensagens, mas a partir das 10h20 não houve mais nenhuma resposta. Daniel fica desesperado e tem a sensação de que o filho, a nora e as netas estavam mortos. Até que, às sete da tarde, recebe uma chamada “feliz”, de acordo com as “circunstâncias”. A mãe de Lishay liga-lhe a contar que as netas estão “sãs e salvas em Israel”, assim como a nora. “Apenas o meu filho tinha sido raptado para Gaza. Foi raptado vivo e não estava ferido.”
Por sua vez, Michal dá mais detalhes sobre o que a irmã e o cunhado vivenciaram a 7 de outubro, uma data que devia ser “festiva”. “Era o dia em que se celebrava a fundação do kibutz de Nir Oz. Fazia 70 anos desde que tinha sido fundado. Era suposto estarmos todos juntos”, diz. Mas cedo entendeu que as horas seguintes seriam muito diferentes do que esperava inicialmente.
Apesar de estarem escondidos nos abrigos, Michal assinala que os militantes do Hamas conseguiram “partir as janelas, chegar ao abrigo e levar a família” para a casa dos vizinhos. “Eles foram de pijama, boxers, descalços, sem nada…”, relata, indicando que, quando chegaram a outra casa, “sentaram-se todos no chão da cozinha”. Os membros do grupo islâmico fizeram inclusivamente um livestream no Facebook daquele momento.
“Estiveram duas horas sentados no chão. Entretanto, todos os tipos de terroristas entravam e saíam da casa”, conta a cunhada de Omri, sendo que os militantes do Hamas decidiram raptar “quatro reféns”, um dos quais o homem de 49 anos com nacionalidade portuguesa, que se ofereceu para ir para Gaza em troca da proteção da família. A filha de dois anos e meio tentou ir atrás dele. “Ela queria ir com o pai e chorou muito quando não foi”, garante Michal.
Após levarem os reféns, os militantes do Hamas deixaram a casa — mas antes colocaram o kibutz em chamas. “O fogo não atingiu a casa, apenas os carros. Elas foram muito sortudos”, saúda Michal, indicando que ficaram naquela situação até chegarem as equipas de resgate. Além disso, a irmã revelou-lhe a última coisa que disse ao marido: “Amo-te. Vou tomar conta das nossas filhas. Não sejas um herói, porque te quero de volta”.
Cerca de 24 horas depois, a primeira coisa que Daniel fez foi encontrar-se com a nora e com as netas, ainda que fosse difícil devido aos ataques que ainda decorriam em solo israelita. “Elas estavam traumatizadas”, recorda. Na terça-feira, dia 10 de outubro, o homem decide “conduzir até Telavive” e prepara cartazes para se manifestar nas principais ruas da cidade.
Os cartazes exigiam o fim da “ajuda humanitária contra a Palestina”. “Fui para uma das principais praças sozinho. Queria que a mensagem contra a ajuda humanitária fosse a principal. E que o público e os políticos a pudessem ver”, afirma Daniel, vincando que o movimento foi-se expandido ao longo dos dias, ganhando igualmente o objetivo da libertação dos reféns: “Uma pessoa juntou-se, outra também e cada vez mais”. “Estou muito agradecido a toda a gente que veio aos protestos e que apoiaram os apelos para trazer os cidadãos de volta a casa.”
Atualmente, a mulher e as filhas de Omri estão a viver na cidade de Berseba, no sul de Israel, com uma família amiga, afirma Michal. A filha mais velha — hoje com quase três anos — foi quem mais sofreu: “Ela lembra-se de tudo e fala daquelas horas em que esteve sentada no chão. Quando fala sobre isso, é como estivesse a reviver tudo. Consegue ver-se nos olhos dela. Está muito triste.”
Ao longo destes meses, Daniel e a mulher de Omri, Lishay, participaram nos briefings das autoridades de Israel, estando igualmente presentes em várias reuniões. E tiveram, em novembro, notícias do familiar. “Soubemos uma coisa importante. Depois de 50 dias, uma das reféns [libertadas] disse que o viu em Gaza. Isso deu-nos alguma esperança”, rematou Michal.