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O pedido vem do Reino Unido. Os membros da NATO têm de reunir-se de emergência, pediu Liz Truss, primeira-ministra, no mesmo dia (11 de outubro) em que os países do G7, acompanhados do Presidente da Ucrânia, reuniram à distância. O encontro por videoconferência, e a urgência de juntar os 30 Estados da Aliança Atlântica, acontece num dos momentos mais turbulentos da guerra, já que o último dia de setembro ficará na História: Vladimir Putin anunciou a anexação de uma parte do território da Ucrânia sensivelmente do tamanho de Portugal e Volodymyr Zelensky respondeu com um papel nas mãos, a que chamou pedido de adesão oficial à NATO.
Como Zelensky estragou a festa de Putin em Moscovo anunciando a “adesão rápida” à NATO
Se a escalada parecia ser apenas retórica, os últimos dias mostraram o contrário. A contraofensiva ucraniana para recuperar zonas ocupadas continua, Zelensky não desiste (nem abdica) de nada, Crimeia incluída, e afirma que os ataques russos não ficarão impunes. Naquela península, a ponte de Kerch, símbolo da anexação russa, foi atacada e a resposta do Kremlin surgiu sob a forma de bombardeamentos massivos às cidades ucranianas, com Kiev no topo da lista dos alvos.
A data do encontro de emergência da NATO ainda não é conhecida, mas é sabido qual o maior desejo de Zelensky: que se discuta a adesão rápida, e sem demoras burocráticas, da Ucrânia à Aliança, como já está a acontecer com a Suécia e a Finlândia. Os parlamentos da Hungria e da Turquia são os únicos, dentro da NATO, que ainda não ratificaram a adesão dos países nórdicos — e são eles os mais prováveis candidatos a travar as pretensões da Ucrânia e a bloquear a entrada do país na aliança militar.
Presidente búlgaro é o primeiro a puxar o travão de mão na NATO
Rumen Radev não deixou margem para dúvidas. Na opinião do Presidente da Bulgária, sem paz não pode haver Ucrânia na NATO. “Uma decisão só deve ser tomada após o desenvolvimento de parâmetros claros para a solução pacífica do conflito”, afirmou a 3 de outubro, citado pela imprensa do seu país. “As ações militares no território da Ucrânia exigem que a sua adesão à Aliança seja discutida dentro da composição completa da NATO, e não levando ao risco de envolvimento direto dos Estados membros na guerra.”
Podem parecer pormenores, mas os dois pontos assinalados por Radev têm uma dimensão enorme: a adesão tem de ser discutida entre todos os 30 Estados — numa crítica direta aos 9 países da Aliança que anunciaram, em conjunto, apoiar a vontade de Zelensky — e de forma alguma devem ser tomadas decisões precipitadas que coloquem a NATO e a Federação Russa em confronto direto.
Os avisos de Radev não são mais do que um relembrar daquilo que dizem as regras da NATO: a entrada faz-se por convite, não a pedido; os 30 membros têm de estar de acordo, bastando haver um país contra para que o processo seja travado; e a guerra é um impeditivo, já que um país não pode aderir se estiver envolvido num conflito armado. Além disso, se a Ucrânia se tornasse membro efetivo da NATO, o seu artigo 5.º entrava em vigor: uma agressão a um é uma agressão a todos.
Nesse momento, como já foi escrito por diversos analistas, esse cenário seria apocalíptico e abriria a porta a um conflito internacional (alguns especilistas falam mesmo numa III Guerra Mundial), algo que os líderes do Ocidente assumem e tentam evitar a todo o custo.
A posição da Bulgária não deverá ser uma posição isolada e, desde logo, a Hungria, de Viktor Orbán, poderá ter uma postura semelhante. “Outros países provavelmente dirão que não. Apenas nove países disseram ‘sim’, até agora. Muitos dos países da NATO estão preocupados em serem arrastados para este conflito”, diz ao Observador Vikram Mittal, militar na reserva e professor da Academia Militar dos EUA, em West Point.
Já Serhii Dzherzh, oficial das Forças Armadas ucranianas e líder da Liga Cívica NATO-Ucrânia, acredita que, por exemplo, a Turquia poderá apoiar o pedido de adesão, mas não tem tanta certeza em relação à Hungria.
“A Turquia apoia a integridade territorial da Ucrânia, fornece-nos armas, começou a fazê-lo ainda mais cedo do que alguns países da Europa Ocidental. Portanto, pode ser possível convencer os parceiros turcos a apoiar esse movimento. Quanto à Hungria, esta é uma questão mais difícil, porque a imprensa húngara mencionou repetidamente que a Rússia financiou o partido de Viktor Orbán e o ajuda a permanecer no poder”, disse o militar ucraniano à Radio Svoboda.
Ao mesmo jornal, o professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Nacional de Aviação Maksym Yali afirma que, na sua opinião, tudo será feito para evitar o confronto direto com a Rússia. “A Hungria é o principal cavalo de Tróia do Kremlin. Será 100% contra. Mesmo a França, a Alemanha, não tenho certeza se estão prontas para tomar esta decisão, já que a ideia é evitar um confronto militar com a Rússia. Se a Ucrânia for admitida, o artigo 5.º do Tratado do Atlântico Norte também se aplicará à Ucrânia. Ou seja, todos esses países entrarão em guerra com a Rússia”, concluiu Maksym Yali.
Zelensky precisa de um guarda-chuva nuclear (e não de aderir à NATO)
O militar norte-americano Vikram Mittal concorda com uma ideia defendida por vários analistas ucranianos: este papel, a que Zelensky chamou “pedido oficial de adesão”, pode pressionar os países do Ocidente a entregarem mais armamento à Ucrânia. “Com a chegada do inverno, Kiev está preocupada com o facto de a Rússia poder usar a energia como arma e isso pode fazer com que alguns países retirem o seu apoio à Ucrânia…”
Um ataque a um é um ataque a todos. A NATO morre se rasgar o artigo 5.º
Um analista ucraniano fala de outro tipo de pressão: o Presidente Zelensky aproveitou o precedente aberto pela Suécia e Finlândia para pedir uma adesão rápida sem Plano de Ação de Adesão. A essência, explica Taras Zagorodny num artigo de opinião publicado no site Glavred, é a seguinte: se os países cumprem todos os critérios da NATO, incluindo a infraestrutura militar, qual é o sentido de exigir um Plano de Ação de Adesão? “A essência do apelo do nosso Estado é a seguinte: deem-nos, pelo menos, segurança e armas nucleares. Se assim for, lidaremos com tudo sozinhos.”
Por outro lado, Zagorodny lembra que a Suécia e a Finlândia, mesmo não sendo membros da NATO, estavam debaixo de um guarda-chuva protetor que lhes era oferecido pelos Estados Unidos e Reino Unido. “Este é, muito provavelmente, o principal objetivo do pedido de adesão” sem a necessidade de um Plano de Ação de Adesão. “O principal problema do nosso país é o guarda-chuva nuclear e não está claro se ele está sobre a Ucrânia ou não.”
Da demonstração de força à III Guerra Mundial. E se a vingança de Putin passar pelo nuclear?
É esse guarda-chuva que Zelensky quer, escreve Taras Zagorodny, considerando que a Rússia começou a afastar-se das ameaças nucleares depois de Joe Biden ter avisado que responderia se Putin usasse esse tipo de armamento. “Esse guarda-chuva ainda não foi formulado legalmente, mas parece que já existe, e precisamos de lutar pela consolidação legal das garantias de segurança para a Ucrânia.”
A adesão é impossível e Zelensky sabe
“Os países ocidentais estão dispostos a discutir medidas de segurança, mas todos compreendem que a adesão é impossível antes do fim da guerra. A Ucrânia conseguirá garantias de segurança, mas não a adesão. É claro que Zelensky sabe isto”, diz ao Observador Oleg Ignatov, do think thank The Crisis Group.
Para si, a declaração do Presidente ucraniano não foi dirigida à NATO, mas antes à Rússia, para mostrar que o país está na direção do Ocidente e que Moscovo não consegue mudar isso.
“Mais importante foi Zelensky dizer que a Ucrânia não vai negociar com Putin. Essa decisão é mais importante do que a declaração sobre a Aliança Atlântica — que toda a gente sabe que não é realista neste momento”, diz o analista russo, antes de acrescentar que Zelensky quer “mostrar que todas as construções imperialistas sobre o que a Rússia pode fazer à Ucrânia estão erradas.”
Desde 2014 que a Ucrânia se afasta da Rússia e a Rússia não quis aceitar isso, considera Ignatov, motivo pelo qual começou esta guerra. Mas mesmo que Zelensky queira provar que a Ucrânia toma as suas próprias decisões, passar a porta da Aliança Atlântica não será fácil.
O silêncio de alguns países diz mais do que um “sim” ou um “não”
“Se um membro da NATO for contra, não haverá adesão”, acrescenta Oleg Ignatov. As regras são simples: o alargamento está previsto no artigo 10.º do Tratado do Atlântico Norte e é conhecido como política de portas abertas.
É possível a “qualquer outro Estado europeu em posição de promover os princípios” do tratado vir a ser membro da aliança militar e contribuir para a segurança do Atlântico Norte, diz o artigo 10.º. Além disso, qualquer decisão de convidar um país é tomada pelo Conselho do Atlântico Norte (principal órgão de decisão política), depois de haver consenso entre todos. Antes deste convite, os Estados que querem aderir à NATO expressam essa vontade, algo que a Ucrânia fez há 14 anos. Nessa altura, pediu um Plano de Ação de Adesão, documento e burocracia que Zelensky quer agora dispensar.
É por isso que o papel de Zelensky, assinado a 30 de setembro, tem valor simbólico, mas pouco mais. “Não muda nada. Do ponto de vista político, já estava estabelecido que a Ucrânia tem o desejo de aderir à NATO desde antes da guerra (e foi uma das razões que os russos apontaram para justificar a invasão). Do ponto de vista prático, é improvável que seja aprovado, uma vez que a adesão obriga a uma votação de consenso”, esclarece Vikram Mittal.
Já Oleg Ignatov vê o ato como uma resposta à anexação anunciada por Putin: “Zelensky precisava de tomar uma atitude firme, para mostrar que reagia de forma forte. Penso que é mais um ato simbólico, a guerra na Ucrânia continua e não há consenso dentro da NATO.” Mesmo antes da guerra, recorda o analista russo, não havia consenso sobre a adesão da Ucrânia.
“O que sabemos é que, em 2008, quando a NATO discutiu seriamente a adesão da Ucrânia, a Alemanha e a França eram contra. Eram os Estados Unidos quem pressionava na altura e foi um momento crítico”, recorda Oleg Ignatov. “O silêncio de agora de alguns países, como a Alemanha, mostra mais do que qualquer declaração que fizessem. Ninguém espera que a Ucrânia entre na NATO”, acrescenta.
Em 2008, George W. Bush era o Presidente norte-americano, quase em final de segundo mandato. Na Alemanha, Angela Merkel era chanceler, já eleita por uma segunda vez e, em França, o presidente era Nicolas Sarkozy.
Da cimeira de Bucareste desse ano saiu uma declaração: “Concordamos hoje que esses países se tornarão membros da NATO. (…) O Plano de Ação de Adesão é o próximo passo no caminho direto da Ucrânia e da Geórgia para a adesão. Hoje deixamos claro que apoiamos as solicitações de um Plano de Ação de Adesão desses países.”
À data da assinatura do documento, na Ucrânia, Viktor Yushchenko era Presidente e Yúlia Timochenko ocupava o cargo de primeira-ministra. Quando, em 2010, Viktor Yanukovych, político pró-Rússia, chegou à presidência, a ambição de pertencer à NATO foi posta de lado. Regressaria em 2014, depois dos protestos do Euromaidan. Yanukovych abandonou o poder e o país e, depois da anexação da Crimeia, em 2014, a vontade de pertencer à Aliança regressou. Em 2019, esse desejo passou a estar inscrito na Constituição da Ucrânia.
Nove países não puderam ficar calados. Canadá também não
“Nós, os chefes de Estado dos países da Europa Central e Oriental, países cujos líderes visitaram Kiev durante a guerra e viram com os seus próprios olhos as consequências da agressão russa, não podemos ficar calados diante da violação grosseira do direito internacional pela Rússia.” O comunicado conjunto, que começa com esta frase, foi assinado por nove presidentes — da Polónia, Roménia, Eslováquia, Estónia, Letónia, Lituânia, Montenegro, Macedónia do Norte e República Checa.
Sem margem para segundas leituras, os chefes de Estado assumiram, a 3 de outubro, ser claramente a favor de uma aliança formal com a Ucrânia, como pede Zelensky. “Não reconhecemos e nunca reconheceremos as tentativas da Rússia de anexar territórios ucranianos. Apoiamos fortemente a decisão da cúpula da NATO de 2008 em Bucareste sobre a futura adesão da Ucrânia.”
Nem todos foram tão assertivos. No dia em que Putin anunciou a anexação de uma faixa de território na zona este e sudoeste da Ucrânia e Zelensky formalizou o pedido de adesão, Jens Stoltenberg foi cauteloso. Numa conferência de imprensa destinada a condenar a anexação de território ucraniano pela Rússia, o secretário-geral da NATO foi questionado sobre os desejos de Kiev. A resposta foi vaga. “Todas as democracias na Europa têm o direito de aderir à NATO e a NATO respeitará esse direito. Dissemos, uma e outra vez, que a porta da NATO está aberta”, disse Stoltenberg, lembrando que na cimeira de Madrid, em julho, ficou muito claro que os aliados apoiam o direito da Ucrânia escolher o seu caminho.
Depois, sem dizê-lo abertamente, lembrou as pedras no caminho de Zelensky. “A decisão tem de ser tomada pelos 30 aliados e essa decisão tem de ser consensual.” Antes de terminar, deu o toque final. “O foco, neste momento, é providenciar ajuda imediata à Ucrânia para se defender contra a brutal invasão russa.”
Nesse mesmo dia, a um oceano de distância de Bruxelas, e a alguns quarteirões da Casa Branca, Antony Blinken e Mélanie Joly davam uma conferência de imprensa conjunta. Quando a pergunta surgiu, sobre a adesão da Ucrânia à NATO, a resposta do secretário de Estado dos EUA foi em tudo semelhante à de Stoltenberg. A da ministra dos Negócios Estrangeiros do Canadá seguiu por outro caminho.
“A nossa posição não mudou, continua a ser a mesma há décadas, somos a favor da política porta aberta e sempre fomos a favor de a Ucrânia entrar na NATO.” As palavras de Joly mostraram para que lado pende o Canadá, embora, depois disso, não tenha existido mais nenhuma posição formal daquele país.
Horas mais tarde, foi a vez de Jake Sullivan, Conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos, voltar ao assunto. Com mais tempo para pensar sobre o tema, a resposta foi chutar para canto. “Na nossa opinião, a melhor maneira de apoiar a Ucrânia é o apoio prático à Ucrânia no terreno, e o processo em Bruxelas deve ser tratado noutro momento.”
Em seguida, repetiu o mesmo que já tinha sido dito várias vezes nesse dia: há décadas que os EUA apoiam a política de porta aberta da NATO e qualquer decisão tem de ser tomada, de forma consensual, pelos 30 aliados. As primeiras reações, mais vagas, são explicadas pelo facto de a administração de Joe Biden ter sido apanhada de surpresa pela jogada de Zelensky, escreveu o Politico, que cita fontes do governo norte-americano.
Outra reação fria foi a da Alemanha. Christine Lambrecht, a ministra da Defesa, depois de repetir o discurso comum dos vários líderes do Ocidente sobre a porta aberta da NATO, frisou que “a Alemanha não agirá sozinha”.
Enquanto os políticos discutem, as sondagens feitas na Ucrânia mostram qual é a vontade da população. A 1 e 2 de outubro, por todo o país, exceto em territórios ocupados pelos russos, questionou-se os ucranianos sobre se o país devia ou não seguir na direção da NATO. A resposta foi histórica.
“O apoio à adesão da NATO é o mais alto de sempre, desde que são feitos inquéritos”, concluiu o Grupo Rating, responsável pela pesquisa. Os números mostram que 83% dos inquiridos votariam sim num referendo sobre a adesão à Aliança Atlântica (o valor subia para 86% se a pergunta fosse sobre a União Europeia), 4% seriam contra e 9% escolheriam não votar. Em junho, já em pleno conflito, o universo de ucranianos a favor da adesão à NATO era de 76%.
O “sim” vence em todas as faixas etárias, com maior destaque acima dos 50 anos. Geograficamente, é no oriente do país, mais próximo da vizinha Rússia, que as respostas são mais cautelosas: 69% são a favor, o que mostra, apesar de tudo, uma subida em relação a junho, quando eram apenas 55% — a população daquelas regiões estava literalmente dividida. Agora, 9% são contra e uma fatia de 17% preferia não escolher.
No final, para Vikram Mittal, parece óbvio o caminho que está a ser desenhado pelo Presidente Zelensky. “A Ucrânia está a dar ao Ocidente a oportunidade de fazer uma declaração que contrarie a declaração de Putin. As ações da Ucrânia permitirão que os países sinalizem o seu apoio de longo prazo, apesar da anexação de Putin e das ameaças de armas nucleares.”
Esse apoio, defende o professor de West Point, poderá ser dado de duas formas: ou assinando o documento do Pacto de Segurança (que Zelensky apresentou no mesmo dia em que oficializou o pedido de adesão) ou dizendo “sim” ao Presidente ucraniano e abrindo-lhe a porta da NATO.