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“O que nos havia de aparecer agora” foi a frase, proferida por um anónimo de Ovar, que o Público de 18.03.20 puxou para título de um artigo sobre a Covid-19 e a declaração do estado de calamidade naquele concelho. Neste “grito de alma”, a queixa mescla-se com a absoluta surpresa, como se nunca tivessem existido epidemias na história da Humanidade e o SARS-CoV-2 fosse o primeiro vírus conhecido da ciência e tivesse tombado do espaço exterior, à boleia de um meteorito caído na província chinesa de Hubei.
A pandemia de Covid-19 têm vindo a suscitar reacções pouco racionais (ver Medos, fantasias e absurdos: O que a pandemia de Covid-19 revela sobre a forma como vemos o mundo) e a mostrar quão equívocas são muitas das nossas percepções sobre o mundo e sobre o lugar do Homo sapiens nele. Veio sobretudo, abalar a ideia triunfalista de que os Grandes Males que tinham atormentado a Humanidade durante séculos estavam resolvidos ou em vias de resolução, graças à ciência e à tecnologia. Estas fizeram, com efeito, progressos fabulosos nos últimos 200 anos e com a maior facilidade serão capazes de disponibilizar uma app (que talvez já exista) que permite calcular, a partir da nossa idade, do local do planeta onde habitamos e do nosso historial clínico, qual a probabilidade de sermos uma das vítimas da Covid-19 durante o próximo mês. Mas, por enquanto, a ciência e a tecnologia parecem estar longe de serem capazes de abolir as epidemias – e até lhes forneceram meios para viajar a 800 Km/h em torno do planeta.
O que torna um livro perigoso?
Quando se fala em livros perigosos, o primeiro que vem à colação é quase sempre Mein Kampf. Este atamancado híbrido de manifesto político e autobiografia que Adolf Hitler publicou em 1925 está cheio de ideias perigosas e odiosas, mas a sua influência e, consequentemente, o seu perigo tem sido sistematicamente sobrestimado. É verdade que entre a sua publicação e 1939 foram vendidos ou distribuídos gratuitamente cinco milhões de exemplares, a que se somaram outros cinco milhões até ao colapso do III Reich, mas esta extraordinária difusão não teve correspondência no número de leitores. Acontece que Mein Kampf está redigido de forma tão inepta, divagante, palavrosa, caótica, repetitiva e grandiloquente, que oferece resistência mesmo leitores calejados e determinados e muito poucos terão tido resistência para chegar ao fim do espesso volume (650 páginas na edição portuguesa da E-Primatur). O livro era omnipresente nos lares e bibliotecas na Alemanha do III Reich, mas nem sequer a entourage de Hitler e os altos quadros do NSDAP se deram ao trabalho de ler mais do que algumas linhas ou páginas soltas, antes de sucumbir ao enfado (ver Mein Kampf: Quem tem medo deste best-seller?). O povo alemão foi conquistado pelas execráveis ideias de Hitler, mas não foi Mein Kampf o seu principal agente de difusão, antes os discursos inflamados de Hitler e a formidável máquina de propaganda montada por Joseph Goebbels.
A supressão do parlamentarismo e da liberdade de expressão, a “economia de guerra”, a subjugação de outras nações para obter “espaço vital”, a promulgação de leis raciais assentes no princípio da indiscutível superioridade ariana, a perseguição anti-semita e o seu tenebroso corolário – a Solução Final – tudo isto estava prefigurado em Mein Kampf, mas, este ideário altamente tóxico apresentava-se sob a forma de um xarope tão pouco apetecível que poucos o provaram e menos ainda foram os que o beberam até à última gota – para mais, os que tiveram perseverança para tal feito eram já adeptos do nacional-socialismo, pelo que o livro poucas conversões terá produzido. Se Mein Kampf nunca tivesse sido publicado, é provável que a história da Alemanha e do mundo entre 1925 e 1945 não tivesse sido substancialmente alterada; aliás, a dar crédito ao director da prisão de Landsberg, onde o livro foi redigido, o principal fito de Hitler com a publicação seria, muito prosaicamente, obter dinheiro para cobrir as despesas incorridas quando do seu julgamento na sequência do falhado “Putsch da Cervejaria”, em Novembro de 1923.
A periculosidade de um livro não deve ser avaliada apenas pela toxicidade do seu conteúdo e pelo número de exemplares vendidos: é preciso perceber a que grupos de leitores esse livro chega, se é efectivamente lido e assimilado e se é capaz de os fazer aderir à sua mundividência. E é também necessário considerar que há livros que, embora não sendo movidos pelo ódio e por desígnios malévolos, veiculam mundividências erradas ou distorcidas, que levam a que os leitores que lhes dão crédito ajam em consonância, o que, se estes ocuparem cargos suficientemente poderosos ou influentes, poderá produzir resultados desastrosos.
A ascensão ao Olimpo
Por ironia, o autor de alguns dos livros mais perigosos que foram publicados nos últimos anos faz parte da etnia que Hitler considerava ser responsável por boa parte dos males do mundo. O historiador israelita Yuval Noah Harari tornou-se notado em 2014, com Sapiens: História breve da Humanidade, editado em Portugal pela Vogais/20.20 (ver O macaco que se converteu em Deus), que oferecia perspectivas inovadoras e desassombradas sobre a história evolutiva do Homo sapiens, da civilização, das religiões e das ideias políticas, mas também continha uma componente apreciável de tolices, como a crença de que “os recursos à disposição da humanidade estão constantemente a aumentar e é provável que tal continue a acontecer”. A ideia de que a nossa inteligência superior será sempre capaz de descobrir soluções tecnológicas que permitirão manter um crescimento ilimitado num planeta limitado, incentiva-nos a manter os nossos hábitos consumistas e a descurar a protecção do ambiente – e isso é uma ideia perigosa.
A excelente recepção a Sapiens levou Harari a, dois anos depois, publicar um livro bem mais estulto e perigoso, Homo Deus, editado em Portugal pela Elsinore/20.20 (ver Quer tornar-se num deus? Pergunte-lhe como). Na perspectiva de Harari, no século XXI a Humanidade conseguiu resolver todos os grandes males que a atormentaram durante milénios: a fome, as guerras, o desemprego, a pobreza, a doença, tudo isso são coisas do passado. Chega mesmo a escrever, com a sobranceria de quem sempre viveu no mundo de privilégio em que qualquer supermercado que se preze tem nas prateleiras pelo menos 20 variedades de cereais de pequeno-almoço, que “no mundo já não há fomes que tenham origem em causas naturais, apenas privações alimentares devidas a causas políticas. Se há pessoas a morrerem à fome na Síria, no Sudão ou na Somália é porque algum político assim o quer”.
Quanto à doença, “a cada ano que passa, as equipas de investigação acumulam mais e melhor conhecimento, usado para criar medicamentos e tratamentos eficazes” e “nano-robots médicos poderão um dia percorrer a nossa corrente sanguínea para identificar doenças, eliminar agentes patogénicos e células cancerígenas”. Harari, que é professor universitário e um articulista e conferencista solicitadíssimo, na qualidade de arauto do Admirável Mundo Novo, provavelmente terá confortáveis rendimentos e estará respaldado num abrangente seguro de saúde que lhe dá acesso imediato a modernas clínicas privadas, pelo que para ele não existem filas de espera de anos para cirurgia, equipas médicas extenuadas e desmotivadas, sistemas de saúde incapazes de acudir às maleitas de uma população crescentemente envelhecida; para Harari são um fantasma translúcido as 400.000 vítimas que a malária faz todos os anos, pouco o preocupa que 65% da população indiana não tenha acesso a medicamentos essenciais, que no Níger existam apenas 0.3 médicos por 1000 habitantes (a maior parte dos quais não teria, de qualquer modo, dinheiro para pagar pelos seus serviços) ou que a esperança média de vida à nascença na República Centro-Africana seja de 52.8 anos.
Assim sendo, para Harari a Humanidade está pronta para entrar numa nova fase: “Depois de assegurar níveis inéditos de prosperidade, saúde e harmonia, e tendo em conta a nossa História e valores actuais, é provável que os novos objectivos da humanidade sejam a imortalidade, a felicidade e a divindade […] Tendo elevado a humanidade acima do nível animalesco da luta pela sobrevivência, procuraremos transformar os humanos em deuses e fazer do Homo sapiens o Homo deus”.
Harari não está só nestes delírios: também os multimilionários e gurus de Silicon Valley alimentam a esperança de que brevemente – ainda durante as suas próprias vidas –os fabulosos progressos das ciências médicas lhes permitirão obter a única coisa que o seu dinheiro não conseguiu, até agora, comprar: a imortalidade. E esperam que, pelo caminho, a tecnologia também desenvolva processos de aperfeiçoar os seus corpos, que se lhes afiguram cheios de defeitos e arcaicos (afinal de contas, é um modelo que não sofreu upgrades dignos de nota nos últimos 300.000 anos, enquanto surgem novos modelos de smartphone e automóveis a cada ano). E enquanto não surgem novidades relevantes nesta frente, há gente saudável (de corpo, entenda-se) a fazer implantar chips no seu corpo por motivos estritamente fúteis. Alguns aspiram à fusão homem-máquina, que poderá passar pelo download da sua brilhante mente para a cloud, o que lhes permitirá levar uma excitante vida virtual, uma espécie de Second Life eterna e aditivada, muito mais gratificante do que a vidinha que se leva no mundo concreto.
Entusiasmado com o acolhimento dado a Homo deus, Harari trepou em 2018 a um novo patamar de presunção e delírio, com 21 lições para o século XXI, editado em Portugal pela Elsinore/20.20 (ver O que devemos ensinar aos nossos filhos? Há um guru que mostra o caminho), um louvor acrítico e lunático às benesses da tecnologia, que conclui que sendo os algoritmos mais eficazes do que os nossos limitados cérebros na tomada de decisão, não devemos apenas entregar-lhes a definição do trajecto mais rápido para ir de casa para o emprego numa segunda-feira de manhã com imenso trânsito, devemos também confiar-lhes os mais íntimos e subjectivos aspectos das nossas vidas – a escolha do que comer ao jantar, do filme a ver, da profissão, da orientação sexual, do/a parceiro/a. Promete Harari que “depois de começarmos a depender da inteligência artificial para decidir o que estudar e com quem casar, a vida humana deixará de ser um drama de tomada de decisões”, não percebendo que o “drama de tomada de decisões” é parte integrante de ser humano.
Ora, estávamos nós embevecidos no doce sonho de nos tornarmos deuses imortais ou criaturas-máquina de aço inoxidável quando apareceu um vírus que veio recordar-nos de que somos animais, indefesos e assustados, e que as nossas imponentes megalópolis de vidro e metal que se estendem a perder de vista, não são mais sólidas e seguras do que termiteiras.
A ilusão da omnipotência
Yuval Harari não é um psicopata, não nutre ambições de domínio mundial, não destila rancor contra minorias étnicas, não defende ideias racistas, não tem um discurso belicista, não tem um gosto pronunciado por camisas castanhas e, muito provavelmente, é bem intencionado e é até um defensor fervoroso da democracia e da liberdade de expressão. Mas tem uma visão do mundo deformada e equivocada, que publicita com empenho e alguma desonestidade intelectual. Ao contrário de Hitler, Harari possui uma sólida erudição, exprime-se de forma clara e sedutora e, mesclando factos e análises penetrantes com meias-verdades e raciocínios falaciosos, é capaz de aduzir argumentos (aparentemente) convincentes para suportar a sua tenebrosa mundividência, alicerçada na aversão ao humanismo; na visão do Homo sapiens como machina animata e das suas emoções e sentimentos como mera bioquímica; no entusiasmo acéfalo pelas benesses da inteligência artificial; e na convicção de que a Humanidade atingiu um estádio evolutivo que não só lhe permitiu resolver todos os Grandes Problemas como controlar a Natureza a seu bel-prazer e levitar gloriosamente acima das outras criaturas e dos constrangimentos do mundo físico.
Os perigos desta mundividência estão bem patentes na advertência feita pelo realizador espanhol Luís Buñuel no seu livro de memórias e meditações, Mi último suspiro, já lá vão quase quarenta anos: “A ciência é a inimiga do homem. Ela adula em nós o instinto da omnipotência que nos conduz à destruição”.
Harari não foi o primeiro nem é o único a difundir este tipo de ideias, mas o que o torna particularmente perigoso é o facto de ele saber vendê-las eficazmente (os seus livros tornaram-se todos best-sellers) e, o que é mais relevante, de ter conseguido conquistar as pessoas que têm nas suas mãos os destinos do mundo: não há político nem empresário ou CEO com um mínimo de aspirações intelectuais que não o tenha lido (até mesmo os mais filisteus, que, usualmente, só costumam ler livros de gestão) e não o cite aprovadoramente.
A ideia obnóxia de que o Homo sapiens se tornou omnipotente e pode manipular o mundo físico como bem entender, ou até desvincular-se dele, tem máxima expressão nos entusiastas do turismo espacial, da colonização do espaço e da “terraformação” de outros planetas (ver Safari em Marte). Entre eles estão Elon Musk (da SpaceX e Tesla) e Richard Branson (da Virgin Galactic), criaturas que têm em comum com Yuval Harari o facto de combinarem brilhantismo e estultícia (surgem juntos mais vezes do que se pensa). A ideia de que a nossa ciência e tecnologia se tornaram tão poderosas que permitirão que transformemos Marte, um planeta gelado, pedregoso, desolado, sem água e quase sem atmosfera, muito mais adverso à vida do que a mais inóspita região da Terra, numa colónia florescente não é apenas rematadamente idiota, é também perigosa, pois leva-nos a crer que, mesmo que tudo corra mal na Terra, poderemos sempre refugiar-nos noutros corpos celestes. Para esta gente, há, ao contrário do que clamam os ambientalistas, um Planeta B e isso pode levar a que nos permitamos ser desleixados na gestão do Planeta A.
Acontece que o Planeta A até estava em excelentes condições antes de o Homo sapiens ter começado a asnear. No sistema solar não se encontra planeta ou satélite que se aproxime sequer das condições oferecidas pela Terra: temperaturas amenas e com pequenas oscilações diurnas e sazonais, um campo magnético poderoso que a protege do vento solar, atmosfera espessa e respirável, água líquida em grande abundância e solos férteis sustentando um compacto e luxuriante coberto vegetal em boa parte da sua superfície. Com os desmandos cometidos a partir da Revolução Industrial, o Homo sapiens causou a desregulação da atmosfera e do clima da Terra e, embora esta tenha, previsivelmente, consequências danosas para a sua própria prosperidade, segurança e conforto, a Humanidade não dá mostras de conseguir reverter essa situação. E, todavia, tem a presunção de ser capaz de converter num jardim um calhau inóspito situado a uma distância que oscila entre 55 e 401 milhões de quilómetros.
Não é a ciência que é nossa inimiga, mas a crença cega na omnipotência da ciência.
Quando pedimos à Siri que nos recorde os nossos compromissos para o dia seguinte, quando ordenamos à Alexa que aumente a temperatura do ar condicionado e ponha a tocar a nossa música favorita, quando usamos uma app para apurar qual o restaurante mais próximo que sirva pratos livres de glúten e quando lemos um artigo que nos garante que a medicina está a fazer progressos tais que a imortalidade está ao virar da esquina, é tentador sentir que somos o refulgente pináculo de toda a Criação e até que lográmos subtrair-nos às leis do mundo físico. Nestes momentos, seria útil termos junto a nós o equivalente moderno do escravo que, nos desfiles (os trionfi) com que na Roma da Antiguidade eram homenageados os generais que obtinham vitórias militares decisivas, murmurava repetidamente ao ouvido do triunfador “Lembra-te que és mortal”; porém, em vez disso, lemos os lisonjeiros prognósticos de Yuval Harari e ficamos com o ego ainda mais dilatado. Há séculos, quando os poucos relógios que existiam eram públicos e estavam instalados em lugares de destaque nas praças das cidades, era frequente que ostentassem no mostrador a inscrição “vulnerant omnes, ultima necat” (“todas [as horas] ferem, a última mata”), mas hoje, quando consultamos o smartphone, ele diz-nos a hora, com a precisão que decorre de estar conectado ao sistema de GPS, e também a temperatura, a pressão atmosférica, o vento e a humidade relativa (no lugar onde estamos ou em qualquer lugar do mundo), mas não nos ensombra o dia com advertências sobre a efemeridade da nossa existência.
Assim sendo, é natural que estejamos embriagados de orgulho e nos julguemos invulneráveis.
Curiosamente, Yuval Noah Harari tem estado muito activo a perorar sobre a pandemia de Covid-19 na Time e no Financial Times, em artigos que tiveram grande repercussão, e tem sido citado ou solicitado a fazer comentários para tudo o que é jornal e revista, aparentemente esquecido de ter anunciado há poucos anos que a humanidade estava prestes a ver-se definitivamente livre das doenças e tinha a imortalidade ao seu alcance – não é provável que esta “branca” seja atribuível à doença de Alzheimer, pois Harari tem apenas 44 anos. Inexplicavelmente, as centenas de milhares de pessoas que leram religiosamente os seus livros e lhes deram crédito também não dão sinais de encontrar nisto qualquer incongruência.
A “narrativa” da Mãe-Gaia
A Mãe-Gaia estava a ficar francamente enervada com o símio pelado. Fora uma das suas últimas criações, há coisa de 300.000 anos, mas já lhe criara mais problemas do que todos os outros mamíferos juntos. Sempre a devastar florestas, a mudar o curso de rios, a drenar pântanos, a esburacar montanhas, a perseguir as outras criaturas, umas para as comer, outras por capricho, às vezes para lhes retirar um corno, que usava, depois de reduzido a pó, para confeccionar uma poção que supunha aumentar-lhe a potência sexual, deixando o resto da carcaça a apodrecer. E quando este símio irrequieto e quezilento descobrira como usar o poder calorífico do carvão e petróleo em prol dos seus obnóxios propósitos, os estragos no jardim da Mãe-Gaia atingiram proporções calamitosas: já não havia um canteiro que não estivesse devastado, conspurcado ou espezinhado. Contemplando a desordem criada pelo símio pelado, a Mãe-Gaia perguntou-se porque não saíra ele como as tartarugas: “Há 260 milhões de anos que faço tartarugas, de todas as formas, tamanhos e cores, e nunca me deram ralações…”.
A Mãe-Gaia decidiu pôr travão nas acções do símio pelado e começou por aparecer em sonhos a especialistas em climatologia e ambiente e instruiu-os para que advertissem os seus semelhantes de que estava muito desagradada com o seu comportamento. Porém, nenhum dos anciãos de barbas brancas e óculos fundo-de-garrafa enviados pela Mãe-Gaia ao longo de décadas foi levado a sério, pelo que a Mãe-Gaia decidiu mudar de estratégia: depois de muito ponderar, escolheu como emissária uma adolescente sueca de figura franzina e expressão carrancuda e disse-lhe para avisar os símios pelados que, se continuassem a lançar dióxido de carbono para a atmosfera como se não houvesse amanhã, o planeta ficaria estorricado e inabitável.
Ao contrário do que acontecera com os sábios, a Jeanne d’Arc carbónica foi acolhida entusiasticamente e, salvo alguns negacionistas empedernidos, todos louvaram a clareza da sua visão e a sabedoria das suas palavras. Por momentos, a Mãe-Gaia acreditou que os símios pelados tivessem, finalmente, ganho juízo, mas é claro que ela conhecia mal a espécie, que é cheia de expedientes e, ao contrário das tartarugas, é capaz de aprender novos truques muito depressa. Os símios pelados passaram a introduzir a palavra “sustentabilidade” a cada duas frases que diziam ou escreviam, juraram estar empenhados de coração e alma no nobre desígnio da “descarbonização”, gritaram em uníssono que “não há planeta B” e organizaram “greves pelo clima”, mas não faziam a mais pequena intenção de alterar o seu estilo de vida. Na verdade, passaram a voar de avião com maior frequência e a comprar automóveis ainda maiores, mais pesados, mais potentes e com mais gadgets.
Quando a Mãe-Gaia deu por mais este ludíbrio, perdeu definitivamente a paciência: pegou num vírus que infectava morcegos-de-ferradura, fez-lhe umas pequenas alterações que o tornaram capaz de infectar símios pelados e de transmitir-se entre eles e introduziu uns exemplares num mercado de animais selvagens numa cidade da China central. A doença nem sequer era particularmente agressiva e não produzia nos exemplares saudáveis da espécie efeitos mais severos do que os de uma gripe comum, mas bastou para produzir resultados que dezenas de anos de prédicas e avisos não tinham conseguido: em três meses as emissões de CO2 começarem a diminuir, o ar das grandes metrópoles tornou-se mais respirável e até a água nos canais da cidade de Veneza voltou a ser transparente (ver Isolamento total em Itália leva a redução de emissões poluentes).
“A natureza está zangada”
Apesar de viver numa era hiper-tecnológica e de a ciência ter vindo a elucidar com grande detalhe o funcionamento do mundo físico, quando os fenómenos naturais lhe são adversos o Homo sapiens do século XXI continua a refugiar-se em explicações pueris, maniqueístas e antropomorfizantes. Furacões, erupções vulcânicas, inundações, secas e tornados são rotulados como malévolos e são percebidos e descritos como se tivessem consciência e vontade própria.
Muitos se lembrarão da interpretação providenciada pelo então Ministro da Administração Interna Calvão da Silva a propósito de inundações no Algarve em 2015: “A fúria da Natureza não foi nossa amiga. Deus nem sempre é amigo. Também […] de vez em quando nos dá uns períodos de provação”. Mesmo alguém como António Guterres, que concluiu com distinção um curso de engenharia numa das mais prestigiadas instituições de ensino superior de Portugal e que acumula décadas de experiência em cargos nacionais e internacionais da mais alta responsabilidade sucumbia, em Setembro passado, à tentação da antropomorfização, interpretando assim o fenómeno das alterações climáticas: “A natureza está zangada. E não se pode brincar com a natureza, porque ela devolve o golpe”. E não, Guterres não estava a explicar as alterações climáticas a alunos do 1.º ciclo…
Apesar de todo o progresso científico e tecnológico, a nossa visão do mundo natural parece continuar a ser enformada pelas True-life Adventures, uma série de documentários sobre natureza, mistificadores e sentimentalões, que as Walt Disney Productions lançaram entre 1948 e 1960.
As reacções à pandemia de Covid-19 não escaparam a esta atribuição de intenções e traços de personalidade exclusivamente humanos a um agente infeccioso. Entre inúmeros exemplos possíveis, eis dois respigados dos programas de debate nas rádios portuguesas: Jorge Coelho, na Circulatura do Quadrado (TSF) de 18.03.20, indignava-se perante este “inimigo matreiro, que não se deixa estudar para poder ajudar a que […] o possam combater”; João Barreiros, moderador do programa Contraditório (Antena 1) de 20.03.20, acusava-o de ser “um inimigo que se esconde, um inimigo traiçoeiro”.
O mais surpreendente é que até entre os cientistas há quem adopte esta linguagem pueril. É o caso do virologista italiano Roberto Burioni: “O [SARS-CoV-2] subverte a nossa vida. Ataca cobardemente a nossa propensão ao contacto físico, ao aperto de mão, ao abraço” (em entrevista a La Stampa); “Um tirano devastou a nossa vida e chama-se coronavírus” (no Twitter). E, todavia, ao contrário de muitos comentadores e jornalistas, um virologista está perfeitamente consciente de que o “tirano” é tão só uma molécula de RNA envolta numa cápsula de proteína. Atribuir-lhe o qualificativo “cobarde” ou “matreiro” é mais absurdo do que acusar uma couve de ser negligente ou um nabo de ser pusilânime, pois, apesar de pouco eloquentes, couves e nabos são seres indubitavelmente vivos, enquanto a comunidade científica coloca os vírus num limbo entre o mundo inanimado e o mundo dos organismo vivos.
Para que servem as metáforas?
As metáforas, analogias e comparações servem para iluminar, para desvelar, para estabelecer relações produtivas e estimulantes, para mostrar que duas coisas aparentemente distintas têm afinidades entre si. Infelizmente, na maior parte das vezes, são usadas como um berloque, um enfeite, uma forma de dar cor a um texto cinzento. Os frangos criados em dois ou três meses nesses aviários industriais que são os cursos de escrita criativa são adestrados para usá-las liberalmente, julgando assim estar a fazer “literatura”, e os jornalistas, colunistas, políticos, opinadores, comentadores e ensaístas fazem o mesmo, sem moderação nem ponderação. Umas são falhas de imaginação, óbvias, preguiçosas e desgastadas pelo uso, outras são esdrúxulas, abstrusas e arbitrárias – em qualquer dos casos não produzem iluminação, mas obscuridade. O repórter que chega a uma cidade síria devastada pela guerra civil descreve-a “como se tivesse sido atingida por um terramoto” e outro repórter, cobrindo um terramoto numa cidade iraniana dirá que esta “parece ter sido bombardeada”, sem que nem num caso nem noutro haja qualquer ganho.
Quanto mais as metáforas, analogias e comparações são frouxas, banais, vãs ou disparatadas, mais fácil é produzi-las, dando por vezes origem à “metáfora mista”, a que na língua inglesa se dá o nome jocoso de “mixaphor” (ver Sente que tem um livro dentro de si?). O frenesim metafórico nem sequer poupa os mais prestigiados pensadores – veja-se o que escreveu sobre a Covid-19 o filósofo José Gil (sobre cuja cabeça plana, em regime vitalício, a coroa de louros de ter sido eleito em 2005 como um dos “25 grandes pensadores do mundo” pelo Nouvel Observateur) no ensaio “O medo”, no Público de 16.03.20: “A pandemia cresce como um tsunami mundial, derruba e mata numa avalanche incontrolável. O medo não é uma atmosfera, é uma inundação”. E assim, no espaço de duas linhas, a pandemia assume sucessivamente a forma de três catástrofes diferentes – o que é incongruente e não traz ao leitor uma melhor percepção da forma como a pandemia se propaga.
Nesta caso, a José Gil deu-lhe para a hidrometáfora tripla (uma de água salgada, duas de água doce; duas no estado líquido, outra no estado sólido), mas outros “pensadores” e opinadores optaram pela metáfora ígnea (“a Covid-19 alastra como um fogo na floresta”) ou pela metáfora eólica (“é como um furacão”). Porém, a esmagadora maioria optou pela metáfora bélica. Estranhamente, apesar de o adjectivo “viral” ser hoje usado até à náusea para descrever qualquer alastramento veloz e incontrolável (de comportamentos tolos e “ondas de indignação” nas redes ditas sociais a estilos de vestuário e penteado, de modas alimentares a videoclips de Selena Gomez ou Billie Eilish), o que nínguém diz ou escreve é que o SARS-CoV-2 se tem propagado pelo mundo como um… vírus. Aparentemente, na novilíngua do século XXI, os vírus são vistos como apropriados a descrever a propagação de tudo menos deles próprios.
José Pacheco Pereira, compreensivelmente farto de ouvir a banalíssima metáfora da guerra repetida mecanicamente por toda a gente, de Chefes de Estado e senadores a técnicos de climatização e mediadores imobiliários, tentou, no programa Circulatura do Quadrado (TSF) de 18.03.20, fazer alguma pedagogia e pôr em evidência quão improdutiva era a equivalência guerra = pandemia, mas o seu parceiro de painel Jorge Coelho, dando mostras de nada ter percebido e recorrendo ao tom inflamado e veemente com que defenderia o mais sagrado direito constitucional, reafirmou a plena legitimidade da metáfora: “é uma guerra e uma guerra fortíssima, uma guerra onde há mortos, onde há feridos, onde há um inimigo […] O país está a encarar este problema como se se tratasse de uma guerra porque é uma guerra [ainda que] de outro tipo”.
Uma guerra acontece quando um grupo de seres humanos se digladia, consciente e deliberadamente, com outro grupo de seres humanos, por motivos que vão da repartição de territórios e riquezas a divergências sobre a crença em entes superiores imaginários, e tem por objectivo a subjugação, conversão ou aniquilação do adversário. Uma epidemia acontece quando um agente infeccioso – vírus, bactéria ou fungo – completamente destituído de consciência e sem outro fito que não seja a maximização da sua replicação, se propaga num grupo de seres humanos ou de outros animais (ocasião em que costuma empregar-se o termo epizootia). A relação de forças, as estratégias empregues pelos intervenientes e a forma como os processos se desenvolvem e terminam são completamente diferentes nas duas situações e assimilar uma epidemia a uma guerra é tão frívolo e inútil como assimilá-la a um jogo de futebol ou a uma oferta pública de aquisição (OPA). Mas o mundo desenvolvido, que há muitas décadas não sabe o que é uma guerra ou uma epidemia, apressou-se a “comprar” esta equivalência.
A justeza no uso das metáforas e a propriedade vocabular não são minudências de literatos picuinhas: o uso recorrente de metáforas tolas e palavras inadequadas não se limita a dificultar a comunicação, é também, frequentemente, sintoma de pensamento débil e de percepção equívoca do mundo. E é provável que, se interpretamos mal o que nos rodeia, se raciocinamos de forma frouxa e errática e se nos exprimimos de forma confusa e arrebicada, iremos dar respostas erradas aos problemas que enfrentamos – ou talvez nem sequer saibamos formular as perguntas certas.
Os vírus não se caracterizam pela “cobardia” ou pela “insídia”, mas por um R0 (o “número básico de reprodução”, que expressa o número expectável de casos que, em média, resulta directamente de um único caso na população), por um tempo de incubação, por um tempo médio de sobrevivência fora dos hospedeiros humanos (que depende, entre outros factores, da temperatura e humidade do ar), por um complexo conjunto de efeitos sobre os seres humanos (que depende da idade destes e das morbilidades de que padeçam) e, no caso do SARS-CoV-2, por taxas de mortalidade com diferentes incidências para diferentes escalões etários. São estes os parâmetros que têm de ser avaliados – e constantemente reavaliados, pois os vírus são dados a mutações e o mundo humanizado e global em que se propagam é extremamente complexo e fluido – e é em função dessa avaliação que deverão ser estipuladas as medidas para os combater. As metáforas coxas e os floreados pseudo-literários não ajudam a essas tarefas – deixemo-las para os jogos florais.
No mundo físico não há “bem” e “mal”, nem “vinganças” e “recompensas”: há acções e efeitos, causas e consequências. A Natureza não é “generosa” nem “cruel” – é indiferente às aspirações humanas e aos seus conceitos morais e continuará a existir, com uma ou outra configuração se, por inépcia própria ou fruto do acaso, o Homo sapiens se extinguir (o que parece, num horizonte próximo e face ao que se conhece, pouco provável) ou se a civilização que ele ergueu colapsar ou se tornar menos próspera, segura e confortável (o que tem uma probabilidade de ocorrência não negligenciável).
A civilização é uma laboriosa construção que conseguiu fazer com que, no século XXI e nas regiões mais desenvolvidas do planeta, parte da existência do Homo sapiens tenha conseguido subtrair-se a algumas das leis “implacáveis” que regulam a existência dos outros animais. Estas conquistas – em particular o facto de, nas últimas décadas, as epidemias terem sido pouco frequentes e circunscritas a regiões que, no Ocidente, tendemos a ver como “atrasadas” e “remotas” – criaram a ilusão de nos termos emancipado da Natureza e de termos deixado para trás a nossa condição animal. O SARS-CoV-2 veio estilhaçar essa fantasia.