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Enviada especial do Observador à Hungria
Gaba Csákány conheceu Gyozo Orbán, o pai do atual primeiro-ministro húngaro, há alguns anos. Gyozo, engenheiro mecânico, era inspetor de uma mina local, aqui perto da aldeia de Alcsútdoboz, a 50 quilómetros de Budapeste. “Não tenho nada de mal a dizer sobre ele, é boa gente. E comigo é assim, se não me fazem mal, também não posso fazer-lhes mal a eles, não é?”, comenta com o Observador este caçador, que viveu toda a vida nesta aldeia onde nasceu Viktor Orbán.
Orbán cresceu aqui, numa casa pobre, sem água corrente, com os pais, os dois irmãos e os avós paternos. O pai era engenheiro e membro do partido, a mãe professora do ensino especial. Apesar disso, tinham pouco dinheiro. Gaba diz que conheceu o jovem Viktor, mas apenas “de raspão”. “Mais uma vez, não tenho nada de mal a apontar”, garante. Na década de 1970, a família Orbán mudou-se para a aldeia do lado, Félcsut. É ali que hoje ainda mantêm uma casa de férias, mesmo ao lado da Pancho Arena, o estádio de futebol da equipa local com quase quatro mil lugares — numa aldeia que onde vivem menos de duas mil pessoas.
Apesar disso, quer em Alcsútdoboz, quer em Félcsut, nada denuncia que estamos na terra de Viktor Orbán. Não há uma única fotografia em espaços públicos nem ruas com o seu nome. A maioria dos habitantes destas pequenas aldeias — pequenos amontoados de casas distribuídas ao longo de uma estrada em linha reta — saem pouco de casa, a não ser para tratar das compras necessárias ou para ir trabalhar. A chuva também não convida a passeios neste dia que é véspera de eleições.
Uma das exceções é Gaba, caçador desde 1984, uma função que na Hungria é paga pelo Estado com a exigência de que os funcionários assegurem a limpeza e manutenção de determinadas áreas florestais. “Temos uma má reputação, mas as pessoas nem sabem o que fazemos”, lamenta-se o húngaro. “Não é só caçar: temos de por câmaras para vigiar os animais, proteger o gado, salvar os animais em caso de cheias… Os tipos dos direitos dos animais dizem que nós somos assassinos, mas não os vejo aqui a salvar animais quando eles estão em risco, como nós fazemos.”
Falar do seu trabalho entusiasma mais este residente do que as eleições legislativas que vão ter lugar já este domingo. Mas Gaba admite que este “é um dos principais temas de conversa” na aldeia “e é normal que assim seja”. “É sobre o nosso futuro e o futuro é importante.” A sua decisão final sobre em que sítio colocar a cruz no boletim de voto, porém, ainda não está tomada. O caçador explica que nunca votou no Fidesz, mas não responde quais têm sido as suas opções e diz estar indeciso agora. Considera apoiar o primeiro-ministro desta vez, já que tem apreciado a atitude do maior partido do país em relação, por exemplo, à guerra da Ucrânia (“Tenho pena dos ucranianos, mas o melhor para nós é ficarmos de fora.”). No domingo, quando se reunir com alguns colegas e as suas famílias para um convívio para acompanhar os resultados eleitorais, espera assistir a uma vitória do Fidesz de Orbán, mas sem maioria de dois terços no Parlamento.
“Tenho de admitir que o Fidesz fez coisas boas”, explica este eleitor. “Aqui, a construção está a crescer, as pessoas têm emprego. E não me interessa muito quem é o tipo que está no poder, desde que o país se continue a desenvolver.” A oposição, liderada por Pétér Márki-Zay, não é uma hipótese para o caçador neste momento, que critica a sua postura “arrogante” nos últimos dias de campanha. “Eles gostam de dizer que o Orbán e os amigos roubam, mas não me roubaram a mim”, sentencia Gaba, entre risos. “Sei bem que muitas das empresas são de gente próxima do poder, mas se a oposição lá estivesse ia ser o mesmo. Não me importo que eles encham os bolsos deles, desde que continuem a encher o meu também.”
A Pancho Arena, um estádio de quase 4 mil lugares à porta da casa de família de Orbán
A sombra da corrupção em obras públicas paira sobretudo sobre Félcsut devido à série de investimentos públicos em massa que têm sido feitos na aldeia ao longo dos últimos anos. O mais visível é a Pancho Arena e a respetiva Academia de Futebol Ferenc Puskás: os edifícios com telhado negro reluzente à beira da estrada destacam-se pela sua imponência num local onde apenas existem pequenas vivendas de estilo soviético. O Observador tentou visitar o estádio com 3.800 lugares — depois de ter feito um pedido oficial que não obteve resposta —, mas foi imediatamente barrado por um segurança: “Não vê o sinal a dizer que é proibido entrar?” De fora, porém, é possível ver o verde do relvado e os assentos coloridos das bancadas.
Orbán — cuja casa de família fica mesmo em frente ao estádio — é visita regular em vários jogos da equipa local, mas este sábado não há nenhum encontro e o primeiro-ministro está ocupado durante as últimas horas de campanha, longe daqui. O primeiro-ministro húngaro é um assumido fã de futebol: ele próprio foi jogador quando era mais novo e chegou a ser identificado pelo treinador como tendo um “remate rápido e um passe dinâmico” que demonstravam “potencial”.
O complexo desportivo de Félcsut foi construído em 2014 por um conjunto de empresas privadas que beneficiaram de uma alteração legal aprovada três anos antes, que concede benefícios fiscais a empresas que construam equipamentos desportivos. No caso da Academia Puskas, em 2017 já tinha recebido mais de 50 mil euros em apoios públicos, segundo a imprensa húngara.
A poucos metros do estádio, está uma pequena estação onde pára um comboio turístico que liga Félcsut a Alcsútdoboz, cuja linha foi construida com dinheiros públicos há alguns anos, com apoio de dois milhões de euros em fundos europeus. Bruxelas abriu entretanto uma investigação ao projeto, por suspeitas de que a proposta do governo húngaro — que garantia que o pequeno comboio vermelho transportaria milhares de pessoas por dia — tenha sido inflacionada para obter maior orçamentação. Neste sábado chuvoso, o comboio passa praticamente vazio.
Félcsut é para muitos um exemplo dos problemas de corrupção e nepotismo que Bruxelas aponta à Hungria — a Comissão Europeia decidiu congelar a primeira tranche do programa de apoio europeu à Covid para o país devido às suspeitas de corrupção e às acusações de limitações do Estado de Direito no país. O antigo primeiro-ministro húngaro Gordon Bajnai diz mesmo que a aldeia é “a capital do Orbanistão” e que o facto de a Pancho Arena ter sido construída mesmo ao lado da casa da família Orbán não é por acaso: “As crianças sonham em ter uma Disneyland ao fundo do jardim. Este sonho está a realizar-se”, disse ao New York Times em 2014.
As acusações de nepotismo em Félcsut ganham ainda mais força quando se sabe que o presidente da Câmara local é Lőrinc Mészáros, amigo de infância do primeiro-ministro e atualmente o homem mais rico da Hungria, com uma fortuna estimada de 1,3 mil milhões de euros, de acordo com a Forbes. Em 2014, quando lhe perguntaram como é que um simples instalador de gás de uma aldeia nos arredores de Budapeste se tinha tornado tão rico, Mészáros respondeu que foi graças “a Deus, à sorte e a Viktor Orbán”.
No edifício do governo regional, decorrem as preparações para o ato eleitoral deste domingo, já que ali é um dos sítios onde os eleitores de Félcsut e das aldeias em volta podem ir votar, a par da escola primária. Uma funcionária, porém, diz ao Observador que não é possível deixar entrar jornalistas nem prestar declarações: “É sábado, estamos fechados. O meu colega que trata disso não está cá”, responde simplesmente a funcionária, por uma frecha da porta entreaberta.
Da desilusão com os socialistas ao apoio total ao Fidesz de Orbán
Se da parte das autoridades locais reina o silêncio, nas ruas também há quem prefira não comentar como é ser habitante de Félcsut, nem falar de política. Gábor, dono de uma quinta que produz ovos, não quer dar o apelido nem ser fotografado. Diz apenas que “a campanha tem sido tensa na aldeia”. “Uns de um lado a dizer ‘Temos de mudar’ e os outros do outro a dizer ‘É melhor ficar tudo como está’”, ilustra. Prefere não dizer de que lado da barricada está.
Outros estão muito mais à vontade para falar, sobretudo aqueles que apoiam há muito o Fidesz. É o caso de Anika Harváth, funcionária administrativa de um tribunal que se mudou para esta região há cerca de dois anos. É ela própria quem puxa o tema da corrupção durante a conversa com o Observador, numa das ruas da aldeia, mas para apontar o dedo a Bruxelas: “A Hungria é um país independente e os outros não se devem meter. Incluindo a União Europeia, que nos critica demasiado”, declara. Reconhece que é possível que possa haver alguma corrupção, mas desvaloriza o impacto, porque as ações de Mészáros têm criado emprego na região. “A família de Mészaros, por exemplo, tem uma fundação aqui e ajuda muito as pessoas. No Natal distribuíram cabazes pelos pobres e eram cabazes com coisas boas, de qualidade. Não é só ajudar a fingir”.
Anika é um bom exemplo do eleitor típico do Fidesz. É de classe média, vive numa zona rural e até 2010 sempre votou nos socialistas, mas desde então apoia o partido de Orbán. “O Gyurcsány traiu-nos e isso afastou-me deles”, diz, referindo-se ao antigo primeiro-ministro Ferenc Gyurcsány, que caiu em desgraça depois de ser divulgado um áudio de um discurso polémico que fez a membros do partido em privado, a que se seguiram semanas de protestos intensamente reprimidos em Budapeste.
O acontecimento ajudou a alimentar a subida do Fidesz e de Orbán e mancha ainda hoje a imagem da oposição — não por acaso, os cartazes do Fidesz retratam Márkis-Zay ao lado de Gyurcsány, numa tentativa de colar o candidato ao socialista.
“Agora, acho que a oposição não é suficientemente competente e o governo é”, resume Anika sobre a forma como vê a política do país hoje em dia. A sua visão representa a da maioria dos eleitores de Félcsut, onde quase não há cartazes da oposição, mas onde o candidato local, Zoltán Tessely, tem amplo destaque. Em Alcsútdoboz, destacam-se outros cartazes que dizem apenas “Os direitos das crianças importam!”, numa alusão ao referendo que vai ter lugar também este domingo.
Um tema que também é caro a Anika: “Márki-Zay pode ser cristão, mas isso não faz dele um bom político”, diz. “Há muitas coisas em que não concordo com o Fidesz, mas eles também fazem muitas coisas bem. Veja o caso dos valores cristãos, por exemplo: é algo muito importante para mim e eles defendem-nos, combatem o lobby do género, por exemplo.”
A administrativa fala descontraidamente, sem qualquer receio. No domingo planeia “ir votar, claro”, e depois reunir-se com a família, toda ela apoiante do Fidesz. Em caso de vitória, porém, não farão grande festa. “Não somos assim, somos simples”, justifica. O único momento em que Anika hesita é quando lhe perguntamos o que pensa de Viktor Orbán, como político. “O Orbán?”, pergunta, suspirando e calando-se para pensar por um pouco. ”Sei que ele é corrupto. Mas naquela posição, quem não seria? Pelo menos faz muitas coisas bem”, responde, finalmente.
*Artigo alterado para corrigir o nome de uma das entrevistadas. Não se trata de Sinka Szabolcs, mas sim de Anika Harváth