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Inventário de fascistas: Ucrânia

Desde Fevereiro de 2022 que Putin e o aparelho estatal russo apresentam a “operação militar especial” na Ucrânia como tendo por objectivo a eliminação dos neonazis sanguinários que tomaram o poder na Ucrânia, oprimem o povo ucraniano e massacram os russos étnicos do Donbas. Na verdade, o discurso centrado no neonazismo ucraniano já tem pelo menos uma década, quando a Rússia atribuiu a neonazis a Revolução Ucraniana de 2014, que redundou na destituição (e na fuga) do presidente pró-russo Viktor Yanukovych e na convocação de novas eleições. Porém, no tempo entretanto decorrido, a Rússia nunca aduziu qualquer prova de que a Ucrânia esteja nas mãos de neonazis, ou sequer de que estes tenham representação significativa no panorama político ucraniano. Isto não impede que Putin continue a repetir mecanicamente esse argumento: fê-lo, por exemplo, na conferência de imprensa anual em 14 de Dezembro do ano passado, em que garantiu que os objectivos da operação militar especial “não mudaram: desnazificação da Ucrânia, desmilitarização da Ucrânia”, e voltou a fazê-lo na entrevista realizada por Tucker Carlson e difundida no passado dia 8 de Fevereiro (a primeira que Putin concedeu a um jornalista ocidental nos últimos dois anos), em que justificou a continuação da “operação especial” com o facto de não ter ainda sido alcançado o objectivo da “desnazificação” da Ucrânia.

“Hitler, o libertador”, cartaz em língua ucraniana distribuído pelo Comissariado do Reich para a Ucrânia, 1942

Comecemos por fazer um ponto da situação do “nazismo” na Ucrânia:

● É verdade que o nazismo já teve expressão relevante na Ucrânia: foi quando o país esteve ocupado pelos exércitos alemães, durante a II Guerra Mundial. Em 1941, muitos ucranianos alimentaram, insensatamente, a ilusão de que os alemães, após libertarem a Ucrânia do jugo soviético, iriam conceder-lhes independência, ou, pelo menos, um razoável grau de autonomia, e que essa concessão seria mais provável se cooperassem com os invasores.

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Junho de 1941: Ucranianas acolhem amavelmente as tropas invasoras alemãs, sob um cartaz onde se lê: “Sinceros votos de boas-vindas. Heil Hitler”

Centenas de milhares de nacionalistas ucranianos levaram a “cooperação” ao ponto de se oferecerem como voluntários para lutarem ao lado nos nazis contra o Exército Vermelho, quer nos batalhões da Polícia Auxiliar Ucraniana, responsável por operações anti-guerrilha e operações de extermínio de populações locais de judeus, quer em unidades regulares do exército alemão, como a Divisão SS Galizien (oficialmente a 14.ª Divisão de Granadeiros das Waffen SS), formada por homens naturais da região da Galícia.

● O mais destacado entre os ucranianos de extrema-direita que colaboraram activamente com os nazis alemães foi Stepan Bandera (1909-1959), que , com apenas 15 anos, aderiu à Organização Militar Ucraniana, de cunho independentista e responsável, no período entre-guerras, por atentados contra russos e polacos em território ucraniano. Em 1929, Bandera ingressou na Organização dos Nacionalistas Ucranianos (Orhanizatsiya Ukrains’kykh Natsionalistiv, ou OUN), cuja ideologia era inspirada pelo fascismo italiano e pelo nazismo alemão. Quando a OUN se cindiu, em 1940, entre duas facções rivais, uma moderada (OUN-M) e outra radical (OUN-B), Bandera tornar-se-ia um dos líderes da segunda e terá sido o mentor de actos de grande violência, nomeadamente o massacre de populações polacas em território ucraniano. A relação da OUN com os invasores nazis oscilou entre a colaboração e o atrito e Bandera acabou por passar longos períodos detido. O final da guerra apanhou Bandera em liberdade e na parte ocidental da Alemanha, a partir da onde tentou organizar a continuação da luta anti-soviética na Ucrânia. O longo braço do KGB alcançou-o em 1959, numa rua de Munique: caiu inanimado e a autópsia revelou que fora envenenado com cianeto.

Stepan Bandera em trajes tradicionais cossacos, c. 1930

O facto de Bandera ter estado privado de liberdade durante a guerra, a margem de autonomia dos membros da OUN e o caos vivido na Ucrânia nesse período tornam difícil apurar as responsabilidades efectivas de Bandera nos actos infames cometidos pela OUN durante a II Guerra Mundial e que lhe são imputados, mas é indubitável que Bandera nutria convicções ultranacionalistas e xenófobas (anti-semitas e anti-polacas). Isto não impede que Bandera desfrute hoje de um estatuto mítico entre muitos ucranianos, sobretudo entre os nacionalistas de extrema-direita e sobretudo na região da Galícia, a ocidente; em contrapartida, é visto negativamente no Donbas e na Crimeia. No cômputo nacional, a opinião divide-se: 32% dos ucranianos vêm Bandera como figura positiva, outros 32% como figura negativa. Estes resultados foram apurados num inquérito realizado em 2021, mas, como seria expectável, a invasão russa fez a percentagem dos que vêem Bandera favoravelmente subir para 74%. Mesmo antes de Fevereiro de 2022, Bandera já era suficientemente popular para que se editassem selos com o seu rosto, se desse o seu nome a ruas e, em 2005, se erguesse um monumento em sua memória em Lviv.

Monumento a Stepan Bandera, Lviv

● A propaganda russa apresentou sistematicamente o Batalhão Azov como se fosse uma reencarnação das Waffen SS e fosse representativo da orientação política das Forças Armadas ucranianas e do alinhamento destas com o nazismo. É certo que esta milícia surgida em 2014 para combater as milícias separatistas do Donbas foi fundada por Andriy Biletsky, que, à data, já fundara dois partidos de extrema-direita e tinha o hábito de fazer proclamações racistas e anti-semitas. Em 2016, Biletsky fundou o partido de extrema-direita Corpo Nacional (Natsionalnyi Korpus), que representou como deputado (único) no parlamento ucraniano entre 2016 e 2019 e que continua hoje a liderar. Porém, o Batalhão Azov foi, progressivamente distanciando-se das suas origens, viu os seus elementos serem profundamente renovados e acabou por ser incorporado no exército regular ucraniano, com a designação “Brigada de Assalto Azov”. Mesmo que esta unidade ainda contenha, eventualmente, alguns dos soldados com simpatia pela extrema-direita da formação original (serão necessariamente poucos, devido ao elevado número de perdas sofrido desde 2014 e, em particular, em 2022), é bom recordar que ela contava em 2022 com 900 militares, enquanto as forças armadas ucranianas contam como meio milhões de efectivos.

● Nas eleições ucranianas de 2019, o Corpo Nacional de Biletsky não elegeu deputado algum. O Svoboda, também de extrema-direita viu a sua representação cair de seis para um deputado. O Sector Direito (Pravyi Sektor), uma coligação (flutuante e pouco coerente) de grupúsculos nacionalistas de direita e extrema-direita e que reclama ter 10.000 militantes, não elegeu deputado algum. A esmagadora maioria dos 450 lugares do parlamento foram conquistados por partidos de centro ou centro-direita e de inclinação pró-europeia. O sector pró-russo e anti-europeísta, representado pelo Bloco de Oposição, elegeu seis deputados.

● No que respeita aos sectores pró-russos na região de Donbas, o fundador da Milícia Popular do Donbas (a principal adversária do Batalhão Azov) e o primeiro “governador” da autoproclamada República Popular de Donetsk foi Pavel Gubarev, ex-membro do extinto partido neonazi Unidade Nacional Russa.

Bandeira da Unidade Nacional Russa: a semelhança com uma suástica não é coincidência

Inventário de fascistas: Rússia

● O Rússia Unida, o partido de Putin, que domina o parlamento russo desde 2003, é , formalmente, um partido conservador de centro-direita, que coloca ênfase na defesa dos valores tradicionais da família e da religião; na prática, dada a sua exaltação do nacionalismo e as suas demonstrações de misoginia, homofobia e xenofobia, pode ser visto como homólogo de partidos como o Fidesz (Hungria), a Alternative für Deutschland, a Lega Nord (Itália) ou o Vox (Espanha), que costumam ser conotados com a extrema-direita populista (ainda que não necessariamente com o fascismo). Alguns analistas políticos vêem o Rússia Unida como instrumento de conquista e manutenção do poder ao serviço de Putin, outros vêem-no como um dispositivo burocrático que serve para controlar e distribuir as benesses da máquina estatal russa, de forma a recompensar quem preste serviços úteis a Putin.

● O Partido Liberal Democrata da Rússia (LDPR), que obteve 21 deputados nas eleições parlamentares de 2021, não é liberal nem democrata, mas sim ultranacionalista e populista; é também pan-eslavista, anticomunista e anticapitalista, elogia o autoritarismo e ambiciona tornar-a-Rússia-grande-de-novo, não só em termos de prestígio como de território – o que significa que defende a reabsorção da Ucrânia, da Bielo-Rússia e das antigas repúblicas soviéticas do Cáucaso e da Ásia Central. Há quem sugira que o LDPR, fundado em 1992 por Vladimir Zhirinovsky (falecido em 2022), já nem sequer é um partido, pois, embora cultive um estilo estridente e contestatário, acaba, na prática, por votar alinhado com o Rússia Unida e com as políticas de Putin, o que fez despontar suspeitas de que a sua real função será passar a ideia de que existe pluralismo político na Rússia. Curiosamente, o Partido Comunista da Rússia acaba por comportar-se de forma similar ao LPDR: faz muito alarido contra o Governo mas acaba por apoiá-lo no que é importante.

● As organizações neonazis e a exibição de símbolos nazis não só são interditas por lei na Rússia, como o Estado russo tem reprimido efectivamente as primeiras, condenando vários dos seus membros a penas de prisão. Aspirando Putin ao controlo absoluto, é natural que veja o radicalismo e a histrionia dos grupos neonazis como uma ameaça ao torpor que tem vindo a fomentar na sociedade russa e, logo, que os reprima – é uma lógica similar à que levou Salazar a dissolver o Movimento Nacional-Sindicalista (os “camisas-azuis”) e a exilar Francisco Rolão Preto. Todavia, a partir de 2014, o Estado russo afrouxou a repressão deste tipo de grupos e promoveu a reorientação da sua energia para actividades de contestação à independência ucraniana e de apoio à secessão do Donbas.

Manifestação neonazi, São Petersburgo, 1 de Maio de 2014

● Apesar de os ideários nacionalistas e de extrema-direita serem dominantes no Rússia Unida e noutros partidos que apoiam Putin, bem como nos ideólogos que inspiram Putin, o Estado russo tem rotulado alguns dos seus verdadeiros opositores como nacionalistas e de extrema-direita. Foi o que aconteceu com o recentemente falecido Aleksey Navalny (1976-2024), que, no último de uma série de julgamentos, em 2023, foi acusado de “reabilitar a ideologia nazi” (além de financiar e incitar “actividades extremistas”), tendo por isso sido condenado a 19 anos de prisão (a somar aos que já tinha de cumprir por fraude, desvio de fundos e outros crimes).

● Os pensadores russos que estão por trás da mundividência geopolítica de Putin – e que ele costuma citar nos seus discursos e entrevistas – são, quase exclusivamente de pendor conservador e nacionalista, apologistas da autocracia czarista e da orientação espiritual da Igreja Ortodoxa e adversários do comunismo, que viam como uma importação do Ocidente, incompatível com a “alma russa” (ver A Rússia e o sonho imperial (parte 3): Quem foram os professores de História de Putin?). Nikolai Berdyaev e Ivan Ilyin foram expulsos da URSS em 1922 e Pyotr Savitsky exilou-se na Bulgária após a Revolução de Outubro, e acabou por fixar-se em Praga, onde foi detido, em 1945, pelo Exército Vermelho, e levado a julgamento, tendo sido condenado a dez anos no Gulag.

● Se o Exército Vermelho tivesse deitado mão a Ivan Ilyin, é pouco provável que a sua pena se ficasse pelos trabalhos forçados, atendendo ao que escreveu no exílio.

Sobre democracia e comunismo: “Os povos da Europa têm de perceber que o bolchevismo é um perigo real e temível; que a democracia é um beco sem saída; que o socialismo marxista é uma quimera condenada; […] que apenas um levantamento nacional, que assuma, ditatorial e criativamente, o aspecto ‘social’ da questão social poderá salvar cada país”.

Sobre nazismo: “O espírito do nacional-socialismo não pode ser reduzido ao ‘racismo’. Nem pode ser resumido à negação. Estabelece valores positivos e objectivos criativos. São as tarefas criativas que todas as nações enfrentam. Encontrar soluções para esses desafios é imperativo para todos. Censurar, antecipadamente, os esforços dos outros e regozijar-se com o que adivinham ser o seu fracasso é estúpido e ignóbil”; “O ‘novo espírito’ do nacional-socialismo tem, claro, características positivas; patriotismo, fé na identidade do povo alemão e no poder do génio alemão, sentido de honra, disponibilidade para o sacrifício, disciplina, justiça social e um sentido de união que transcende classes e nacional e fraterno […] É este espírito que une o nacional-socialismo alemão ao fascismo italiano. E não só: também ao espírito do movimento da Rússia Branca”.

Sobre a sintonia entre o fascismo e a alma russa: “O fascismo não nos traz um novo conceito, apenas nos dá uma nova oportunidade para pôr em prática esta ideia nacional, russa e cristã”.

Sobre Mussolini: “Tem o talento de um escultor político, original, ousado, na tradição de Michelangelo”.

Sobre Hitler: “Travou o processo de bolchevização da Alemanha e prestou um extraordinário serviço a toda a Europa”.

Sobre Mussolini e Hitler: “Comutaram a sentença de morte que impendia sobre a civilização europeia”.

Os salvadores da Europa, segundo Ilyin, em foto de 1940

Sobre os opositores do fascismo: “A injusta maledicência e a calúnia impedem a adequada compreensão do [novo espírito], são pecados contra a verdade e ferem toda a humanidade”; “Aqueles que não apreciam o ‘novo espírito’ devem ser erradicados”.

Lenin ordenou que todas as obras de Ilyin fossem retiradas das bibliotecas e destruídas; Stalin determinou que a posse, leitura e distribuição das obras de Ilyin eram passíveis de pena de morte; Khrushchev e Brezhnev, mais comedidos, puniram tais atrevimentos apenas com prisão. Putin não só cita Ilyin e recomenda a leitura das suas obras, como, em 2005, providenciou a transladação dos restos mortais de Ilyin, que falecera, em 1954, só e olvidado, na Suíça, para a necrópole do Mosteiro Donskoy, em Moscovo, onde estão também sepultados numerosos membros da alta aristocracia, figuras proeminentes dos “Russos Brancos” (a quem Ilyin se dirigia, nos seus escritos, como “meus irmãos Brancos, fascistas”) e figuras gradas da cultura conservadora e nacionalista russa, incluindo outro eurasianista de renome, Pyotr Chaadayev.

“Por uma Rússia unida”: Cavaleiro branco vs. dragão vermelho. Cartaz de propaganda dos Russos Brancos, 1919

O “cérebro” esquizofrénico

Se dermos crédito ao politólogo e especialista em assuntos russos Michael Millerman, autor de Inside Putin’s Brain (2022), o pensador que tem sido mais determinante para moldar a mundividência e a actuação de Putin é o filósofo Aleksandr Dugin (n.1962), cujo pensamento – sobretudo o que consta do seu opus magnum, Fundamentos de geopolítica – já foi abordado em A Rússia e o sonho imperial (parte 3): Quem foram os professores de História de Putin? e A Rússia e o sonho imperial pt. 5: Inimigos, cúmplices, não-alinhados, sonsos e cínicos.

Embora seja um dos mais acerbos inimigos do “nazismo ucraniano”, Dugin tem ele próprio um longo historial de namoro com o nazismo, que começou na década de 1980, quando se juntou ao “círculo de Yuzhinsky”, uma seita que combinava nazismo, esoterismo, ocultismo e satanismo. Na década de 1990, Dugin censurava os regimes de Mussolini e Hitler por “não terem sido suficientemente fascistas” e em 1993 foi co-fundador do que é, provavelmente, o partido político mais esquizofrénico de sempre: o Partido Nacional-Bolchevique (informalmente referido como “nazbol”), que pretende aliciar extremistas de um e de outro lado do espectro político e que Victor Yasmann descreveu, na Rádio Europa Livre, como “uma bizarra mixórdia de símbolos totalitários e fascistas, dogmas geopolíticos, ideias esquerdistas e demagogia nacional-patriótica”. Dugin abandonaria o partido em 1998, não por se ter dado conta de quão execrável e inconsistente era o seu ideário, mas em resultado de desentendimentos pessoais com outros dirigentes “nazbol”.

Bandeira do Partido Nacional-Bolchevique

Em 1997, no mesmo ano em que surgiu Fundamentos de geopolítica, Dugin publicou o ensaio “Fascismo: Sem fronteiras e vermelho”, onde:

1) Elogiava “as Waffen SS e, sobretudo, a sua divisão científica, a Ahnenerbe, um oásis intelectual na estrutura do regime nacional-socialista” (para detalhes sobre a estupidez, crueldade e insânia da Ahnenerbe ver A tragédia da ciência “criada” pelos nazis);

2) Lamentava que o “nacional-capitalismo” de inspiração ocidental tivesse impedido o desabrochar de “um fascismo fascista [sic], genuíno e radicalmente revolucionário e consistente”;

3) Mostrava-se benevolente para com o infame registo histórico do nazismo: “[não são] de modo algum os aspectos racistas e chauvinistas do nacional-socialismo que determinam a natureza desta ideologia. Os excessos desta ideologia na Alemanha são um assunto exclusivamente alemão […] O fascismo russo é uma combinação de conservadorismo nacionalista natural com um desejo inato por verdadeiras mudanças”. Por outras palavras: a experiência nazista na Alemanha não correu bem apenas por culpa dos alemães e esse fracasso não implica que o nazismo deva, à partida, ser condenado – o nazismo russo, por exemplo, só tem virtudes e está-lhe reservado um futuro radioso.

Numa conferência em 2018, Timothy Snyder, um dos maiores especialistas na história do Leste europeu, explicou assim a relação da Rússia com o fascismo: “As ideias fascistas implantaram-se na Rússia num momento histórico, três gerações após a II Guerra Mundial, quando é impossível aos russos verem-se a si mesmos como fascistas. Na educação soviética, a [II Guerra Mundial] era apresentada essencialmente como uma luta antifascista, em que os russos estão do lado do Bem e os fascistas são o inimigo. É assim que surge esta bizarria do esquizofascismo […], em que pessoas que são indubitavelmente fascistas se referem a outros como fascistas”. Como escreve Snyder, no artigo “We should say it: Russia is fascist” (The New York Times, 19.05.2022), “na Rússia do século XXI, ‘antifascismo’ significa simplesmente o direito do líder russo a definir quem são os inimigos da nação”.

No léxico de Putin um “fascista” é qualquer um que se atreva a fazer-lhe frente, independentemente das suas convicções políticas – e isto tanto se aplica a “inimigos” internos, como Aleksey Navalny, como a “inimigos” externos, como os manifestantes da Praça Maidan e o Governo de Zelensky. O uso do qualificativo “fascista” por Putin e pela sua entourage é tão primário, preguiçoso e pueril que levanta a questão: a que público se dirige? Pretenderá convencer a opinião pública mundial? Ou dirigir-se-á sobretudo aos cidadãos russos?

A maior parte dos russos que viveram o período da Grande Guerra Patriótica, em que o inimigo era indubitavelmente “fascista” e tinha por objectivo a aniquilação ou a escravização do povo russo, já estão quase todos mortos por esta altura. Os ocidentais – sobretudo os que habitam países que são democracias há muito – poderão perguntar-se se ainda resta algum peso à palavra “fascista” na óptica de um russo comum, jovem ou de meia-idade, não-politizado e com conhecimentos vagos e superficiais da história do século XX, mas há que reconhecer que, na sucessão de tragédias, crueldades, privações, sacrifícios e padecimentos que marcaram o século XX russo, a luta contra o fascismo na II Guerra Mundial foi um momento ímpar de heroísmo, tenacidade e união – e a propaganda da URSS/Federação Russa tem-se afadigado a manter vivo esse espírito e a brunir esse período de forma a eliminar todos os aspectos tenebrosos e a deixar apenas uma memória radiosa. E fá-lo também porque o triunfo épico na luta anti-fascista ajuda a esquecer o repetido fracasso da URSS e da Rússia pós-soviética, incapazes de providenciar aos seus cidadãos uma vida materialmente confortável e provida dos direitos, liberdades e garantias usuais nas democracias liberais. É por estas razões que as comemorações do Dia da Vitória sobre a Alemanha se revestem na Rússia de hoje de uma importância que não tem par em qualquer outro país, até mesmo nos que também foram especialmente martirizados pela barbárie nazi.

9 de Maio de 2016, São Petersburgo: Nas comemorações do Dia da Vitória, os cidadãos russos desfilam com fotos dos seus familiares que, na frente de batalha ou nas fábricas e minas, contribuíram para a derrota da Alemanha nazi

No artigo “We should say it: Russia is fascist”, Snyder deixa uma advertência muito pertinente: “equivocamo-nos quando limitamos o nosso receio do fascismo a uma certa imagem de Hitler e do Holocausto. O fascismo teve origem na Itália e era popular na Roménia – onde os fascistas eram cristãos ortodoxos que sonhavam com uma violência purificadora – e teve adeptos por toda a Europa e na América […] As pessoas divergem, por vezes veementemente, sobre o que é que constitui fascismo. Mas a Rússia de hoje cumpre a maior parte dos critérios que os especialistas costumam aplicar. Tem um culto em torno de um único líder, Vladimir Putin. Tem um culto dos mortos, montado em torno da II Guerra Mundial. Tem um mito de um passado resplandecente de grandeza imperial, que será restaurado mediante uma guerra de violência lustral – a guerra assassina na Ucrânia […] Um viajante no tempo vindo da década de 1930 não teria qualquer dificuldade em identificar o regime de Putin como fascista. O símbolo Z, os comícios, a propaganda, a guerra como acto de violência depuradora e as valas comuns em torno das aldeias ucranianas deixam-no bem claro”.

O que vai dentro da cabeça de Putin?

As condições que devem ser cumpridas para que um regime, um partido ou um político possa ser classificado como “fascista” são assunto que tem feito correr muita tinta e é improvável que alguma vez se chegue a uma definição consensual (ver Um mundo cheio de porcos fascistas?). O rigor no emprego do termo está inquinado, por um lado, por ser usado como insulto genérico (e intelectualmente preguiçoso)e, por outro lado, a catalogação também é dificultada por, hoje em dia, poucos fascistas admitirem sê-lo (ver parte 1). Na verdade, mesmo na década de 1930, período áureo para as ditaduras de extrema-direita, houve autocratas desta área política que evitaram tal rótulo, como foram os casos de Franco e Salazar, que Ivan Ilyin, teórico e promotor do fascismo, elogiou, em Sobre o fascismo (1948), por terem tido a sageza de nunca terem designado os seus próprios regimes como “fascistas”.

A argumentação de Timothy Snyder sobre a natureza fascista do actual regime russo é convincente, mas tal não significa que seja legítimo ou revelador ver Vladimir Putin como “fascista” ou apenas como “fascista” – e menos ainda que se parta daí para equiparar Putin a Hitler, como fazem alguns espíritos preguiçosos que olham para a guerra na Ucrânia como se fosse um campeonato de futebol.

O filósofo francês Michel Eltchaninoff (n.1969, França), um renomado historiador do pensamento russo e autor do livro Dans la tête de Vladimir Poutine (Na cabeça de Putin, 2015), prefere ver o líder russo como uma sobreposição de camadas, que tem evoluído ao longo do tempo: “Putin é herdeiro do sovietismo. Passou os seus primeiros 40 anos de vida na URSS. Isto levou-o a ser fortemente influenciado por determinados valores: patriotismo, militarismo e o complexo de superioridade inerente a uma grande potência. […] Todavia, não parece que alguma vez tenha acreditado no modelo comunista da estatização da economia e da sociedade sem classes. Portanto, quando ascendeu ao poder, em 1999, não tinha a intenção de reconstruir o sovietismo. O que ele declarou foi que pretendia reconciliar as heranças do czarismo e do comunismo russos” (entrevista a propósito de Dans la tête de Vladimir Poutine, in Books & Ideas/La Vie des Idées, Junho de 2015).

Esplendor imperial: Parada militar na Praça do Palácio, São Petersburgo, por Vasily Sadovnikov, c.1847

Aparentemente, o que Putin pretende recuperar da era imperial e da era soviética é, para lá da natureza autocrática da governação, o seu território integral e a sua história de grandeza. Quer devolver à Federação Russa o respeito (nem sempre fácil de distinguir do temor) e o prestígio de que a Rússia/URSS gozavam no mundo e pouco lhe interessa reter em termos de ideologia e organização económica e social, quiçá por perceber que a marcha do tempo tornou estes modelos completamente obsoletos (pode mesmo questionar-se se o modelo económico soviético alguma vez funcionou…). Mesmo o resgate de aspectos simbólicos do passado glorioso da Rússia/URSS é feito com critério, de forma a não alienar a sua base de apoio. Foi assim, por exemplo, que Putin rejeitou a ideia sugerida em 2014 por Vladimir Zhirinovsky, o (entretanto falecido) líder do Partido Liberal Democrático (populista de direita), de recuperar a bandeira e o hino da Rússia Imperial; de igual modo, em 2017, inaugurou o Muro da Dor, um memorial de homenagem às vítimas da repressão stalinista. Putin até poderá ver méritos no stalinismo, mas sabe que, no século XXI, até numa autocracia como a Rússia existe uma pressão da opinião pública para que os líderes dêem mostras públicas de compunção perante os excessos do stalinismo.

Putin na inauguração do Muro da Dor, 30 de Outubro de 2017

Putin é, sem dúvida, uma personagem complexa e Michel Eltchaninoff, na entrevista acima mencionada, lembra que “houve outros estratos a depositar-se sobre esta base soviética: o seu primeiro mandato, de 2000 a 2004, adoptou uma posição liberal”, mas, a partir de 2005, começou a citar filósofos como Ivan Ilyin e adicionou às camadas anteriores “conservadorismo, neo-eslavofilia com pretensões científicas e eurasianismo. O resultado é uma ideologia multiforme, cujos únicos fios condutores comuns são a ideia de império e a hostilidade ao Ocidente” (entrevista a propósito de Dans la tête de Vladimir Poutine, in Books & Ideas/La Vie des Idées, Junho de 2015).

Poderia acrescentar-se a estas camadas a fé ortodoxa russa: a igreja liderada pelo patriarca Kyriil é firme apoiante do regime de Putin e este retribui dispensando à Igreja Ortodoxa Russa um tratamento preferencial (ver capítulo “Deus tem um plano para a Rússia” em A Rússia e o sonho imperial (parte 3): quem foram os professores de História de Putin?). Putin apresenta-se como crente e surge amiúde em cerimónias religiosas, ladeado por altas figuras da hierarquia da Igreja, e alguns dos filósofos que costuma citar atribuíam à Igreja Ortodoxa Russa papel central na sua mundividência; o patriarca Kyriil já enalteceu o conceito do “Mundo Russo” ou “Ideia Russa” – “um espaço civilizacional comum” abarcando boa parte da Eurásia e cimentado pela língua, cultura e fé russas –, que também é acarinhado por Putin e é central nos pensadores russos que admira. Porém, quando questionado sobre a sua fé, Putin tem sido ambíguo e evasivo e não é claro se a presente relação de grande cumplicidade entre Estado e Igreja reflecte as convicções íntimas de Putin ou se ele vê a Igreja Ortodoxa Russa como mero instrumento da sua estratégia de poder – até porque o segmento demográfico mais idoso, entre o qual Putin recolhe maior percentagem de aprovação, tende também a ser devoto da Igreja Ortodoxa Russa.

Monges ortodoxos russos defendem o Mosteiro da Trindade-São Sérgio (Troitse-Sergiyeva Lavra), em Sergiyev Posad, contra invasores polacos. Quadro de 1894 por Sergey Miloradovich

A tirania no século XXI

Ser-se tirano já foi mais fácil. Hoje, a maioria das tiranias faz questão de exibir uma fachada democrática, o que implica aceitar a existência de partidos da oposição e a realização periódica de eleições. Há, pois, que encontrar formas de neutralizar os opositores, 1) aliciando os mais dóceis com benesses, “liberalidades”, tratamento preferencial e lugares no aparelho de Estado, de forma a que, assumindo um discurso sonoro e contestatário, votem com o partido do governo sempre que é preciso; e 2) lançando o sistema judicial e a autoridade tributária às canelas dos mais recalcitrantes. Mesmo o mais cumpridor dos cidadãos terá no seu passado uma multa de estacionamento, um cão sem chip de identificação, uma declaração de rendimentos com discrepâncias ou entregue fora de prazo ou qualquer outro pequeno lapso que a máquina judicial se encarregará de empolar e converter num aríete; e se o alvo se revelar impoluto, há sempre o recurso à forjadura de documentos e à acusação de se estar a soldo de potências estrangeiras.

No que toca a eleições, há que instruir a comissão eleitoral para aplicar de forma inventiva as leis e regulamentos de forma a excluir os candidatos da oposição devido a “irregularidades” – quanto mais complexas e abstrusas forem as leis e regulamentos, mais fácil será apontar “irregularidades” às candidaturas. Dá muito menos trabalho matar candidaturas rivais à nascença, de forma a que no boletim de voto só figure o nome do tirano, do que dar “chapeladas” no dia da eleição, falsificando cadernos eleitorais, contabilizando votos de defuntos e atirando urnas com votos ao rio.

Resultados das eleições presidenciais russas, em 2000, segundo as divisões administrativas da Federação Russa. Esta foi a primeira das quatro eleições presidenciais a que Putin concorreu e foi a única em que não teve mais de 50% dos votos em todas as regiões

O controlo da informação sempre foi preocupação central dos déspotas de todos os tempos, mas os tiranos do século XXI têm de haver-se com duas novas e tremendas ameaças: a instantaneidade da circulação de informação e a pulverização das fontes. Qualquer pessoa com um smartphone é um potencial produtor e difusor de “notícias” e pode fazer mais “estragos” do que uma dúzia de tipografias clandestinas de outras eras. Há, pois, que assegurar o controlo estrito das redes sociais, bloqueando fontes e conteúdos “subversivos” e fomentando a circulação de propaganda disfarçada de opinião isenta ou de factos.

No século XXI, os tiranos não podem remeter-se a um esplêndido isolamento: as massas apreciam o convívio com os grandes deste mundo e muitos cidadãos começam a crer que tirar selfies com os próceres da Nação é um direito consagrado na Constituição. O tirano moderno deve estar disponível para contactar directamente com a populaça, em ocasiões que devem parecer espontâneas, mas que convém programar cuidadosamente, nomeadamente pela infiltração de grande número de apoiantes do tirano entre os populares. O tirano tem também a obrigação de, pontualmente, conceder entrevistas e participar em sessões públicas para debater os problemas dos cidadãos – no caso das entrevistas deverá dar-se preferência aos mass media controlado pelo Estado, cujos jornalistas nunca cometerão a asneira de fazer perguntas inconvenientes. Quanto aos órgãos de informação que não pertencem ao Estado nem a um oligarca amigo, há que denunciá-los como estando ao serviço de forças estrangeiras e estrangulá-los um a um, judicialmente, economicamente ou por via da intimidação (umas rótulas esmigalhadas são eficazes a dissuadir as mãos de escrever coisas inapropriadas). Nas sessões de respostas a perguntas de cidadãos, os cidadãos deverão ser escolhidos a dedo e devidamente ensaiados e as suas “perguntas” deverão ser inócuas ou colocar em relevo os aspectos positivos da governação. Quando entrevistado ou em sessões públicas, o tirano deve fazer os possíveis por criar uma verosimilhança de empatia e humanidade e deve simular ter sentido de humor – tarefas extremamente difíceis, dado que a maioria dos tiranos são sociopatas.

O facto de ter seguido esta cartilha explica que Vladimir Putin se tenha mantido no poder durante quase um quarto de século. Mas não explica que as suas taxas de aprovação entre o povo russo sejam consistentemente elevadas, feito que deve ser atribuído sobretudo à propaganda, que solidificou a imagem de Putin como líder providencial e garante da ordem e da estabilidade, sobretudo por contraste com o caos da era Yeltsin.

Resultados das mais recentes eleições presidenciais russas, em 2018, segundo as divisões administrativas da Federação Russa: Putin venceu em todas, com votações compreendidas entre 64% e 93%, registando uma média nacional de 77%, a mais elevada das quatro eleições presidenciais a que concorreu (2000, 2004, 2012 e 2018

Também é sabido que a disponibilidade do povo para aceitar a canga de uma tirania é muito maior quando paira a ameaça de um inimigo facilmente identificável e se vive em atmosfera de crise permanente. É assim que as ficções da “Rússia sitiada pela NATO” e dos “desígnios malévolos dos nazis ucranianos” têm contribuído para manter o povo russo unido em torno do líder, mesmo quando a sua vida quotidiana está longe de ser satisfatória e é evidente que os principais beneficiários dos fabulosos recursos naturais com que a Rússia foi prendada são os oligarcas protegidos pelo regime e não os cidadãos.

Há quem se admire por, no século XXI, os russos se deixarem ludibriar pela propaganda pouco elaborada do regime de Putin, mas, se, nas democracias liberais, onde o acesso à informação é livre e os meios de comunicação são plurais e independentes do poder político, há milhões de pessoas que se deixam levar por ela, que capacidade de questionamento pode esperar-se do cidadão médio de um país onde todos os meios de comunicação pertencem ao Estado, a empresas estatais ou a empresários íntimos do Estado e o espaço público é rigorosamente vigiado e que, em 2023, está classificado em 164.º lugar (em 180) no Índice de Liberdade de Imprensa compilado pelos Repórteres Sem Fronteiras?

Índice de Liberdade de Imprensa no mundo: azul escuro: boa; azul claro: satisfatória; amarelo: problemática; laranja: situação grave; castanho: situação muito grave

Este conjunto de mecanismos de repressão, dissuasão e desinformação permite manter a população subjugada, resignada ou iludida, mas há sempre opositores mais tenazes, que não se deixam intimidar ou corromper facilmente. Para silenciar estes, os tiranos de outras eras podiam ordenar detenções, execuções e “desaparecimentos” em massa, mas hoje é de bom tom reprimir com conta, peso e medida e simulando respeitar as formalidades legais e os direitos dos réus. Entre 1929 e 1953, o regime de Stalin levou a cabo 778.000 execuções oficiais (a que haverá que somar as execuções extrajudiciais) e enviou para o Gulag cerca de 14 milhões de pessoas (Orlando Figes estima que terão sido 25 milhões ), das quais 1.5 a 1.7 milhões não sobreviveram à experiência, mas Putin tem silenciado os seus opositores de forma cirúrgica e discreta.

A supressão da dissidência pode ser exercida através do poder judicial, que está completamente subordinado ao poder político. Um dos primeiros alvos de Putin foi o empresário da indústria petrolífera Mikhail Khodorkovsky, que chegou a ser o homem mais rico da Rússia. Talvez ainda o fosse hoje, se não tivesse tido a veleidade de criar uma organização destinada a “construir e reforçar a sociedade civil” – a última coisa que Putin deseja para a Rússia. Ainda que, provavelmente, não fosse mais desonesto do que os outros oligarcas russos, em 2003 Khodorkovsky foi acusado e condenado por fraude, desvio de fundos e lavagem de dinheiro e o seu império foi desmembrado num ápice (ver capítulo “Rosneft” em Do Senhor Cinco por Cento ao Nord Stream). Pode considerar-se afortunado, pois, em 2013, Putin teve a magnanimidade de o perdoar, após ter cumprido dez anos de pena, e de deixá-lo sair vivo da Rússia.

Putin e Khodorkovsky em Dezembro de 2002, quando as relações ainda não tinham azedado. Dois meses depois, numa sessão no Kremlin, transmitida pela televisão, Khodorkovsky envolveu-se numa diatribe com Putin, ao insinuar que havia altos funcionários do Governo que eram corruptos

Na verdade, Putin nunca recorreu – formalmente – ao aparelho de Estado para eliminar fisicamente um opositor, por um lado porque não o pode fazer – a pena capital está suspensa na Rússia desde 1996 – e por outro porque não precisa de o fazer, uma vez que que as pessoas que o desafiam têm uma inexplicável propensão para serem abatidas a tiro por assassinos a soldo de mandantes anónimos (a jornalista Anna Politkovskaya, o político Boris Nemtsov); a sentirem-se mal depois de tomar chá (o ex-espião Aleksandr Litvinenko) ou depois de fazer uma caminhada (Aleksey Navalny); a sucumbirem num acidente aeronáutico (o empresário do catering e da morte Yevgeny Prigozhin, o empresário Vyacheslav Taran); a porem termo à vida por enforcamento (os empresários Boris Berezovsky e Sergei Protosenya); ou a caírem de janelas (os empresários Ravil Maganov, Dan Rapoport, Pavel Antov, Vladimir Egorov e muitos outros), de escadas (o empresário Anatoly Gerashchenko) e de falésias (Andrei Krukovsky). Talvez o sábio patriarca Kyriil tivesse razão quando, em 2022, por ocasião da celebração do 70.º aniversário de Putin, proclamou que “foi Deus que colocou [Putin] no poder, de forma a prestar um serviço de especial importância e grande responsabilidade para o destino do país”. E como Deus é omnipresente, de nada serve aos inimigos de Putin refugiarem-se no estrangeiro, como descobriam Litvinenko, Berezovsky e Sergei Skripal (para mais informação sobre os assassinatos selectivos de Putin, ver capítulo “Aleksandr Litvinenko” em Vai um chá com veneno? Histórias de espiões que acabaram mal).

Aleksey Navalny numa manifestação em Moscovo, em Junho de 203, ladeado pela esposa, Yulia, e por outro líder da oposição, Ilya Yashin

A Rússia precisa de um macho alfa no Kremlin?

Em entrevista ao Público de 04.12.2023, Sergei Akopov, um professor russo de ciência política (que deixou o cargo em São Petersburgo após a invasão da Ucrânia e agora lecciona em Berlim e Grenoble), referia que “existe uma componente de masculinidade tóxica no processo de decisão da política externa russa”, uma afirmação que de imediato traz à mente a imagem do macho alfa, atlético e dominador que Putin tem cultivado: cavalgando em tronco nu pela estepe siberiana; exibindo um lúcio de 21 Kg que acabou de pescar; descendo ao fundo do Lago Baikal – o mais profundo lago do planeta – num mini-submarino; participando na captura de tigres siberianos e ursos polares (para fins científicos, pois a opinião pública de hoje não aprecia os monarcas carniceiros de outros tempos); prospectando as ruínas de uma antiga colónia grega na embocadura do Mar de Azov; conduzindo um automóvel de Fórmula 1 a (diz-se) 240 km/h; pilotando um caça Sukhoi Su-27 e um avião de combate a fogos florestais; exibindo os seus dotes no judo (em que detém um cinturão negro) e no hóquei no gelo (marcou 8 golos num jogo de um campeonato amador).

O macho alfa nos seus tempos livres: Putin em Tuva, 2007

Estes episódios exsudam virilidade suficiente para sustentar muitos anos de campanhas publicitárias a marcas de aftershave e são bem recebidos por uma sociedade marcadamente homofóbica e que se habituou a ser dirigida por homens fortes e providenciais. Porém, a campanha de propaganda foi tão ostensiva, a multiplicidade de proezas e talentos exibidos pelo Grande Líder tão estonteante e os detalhes divulgados pelo gabinete de imprensa do Kremlin tão extraordinários e minuciosos que (no Ocidente) o Putin-macho-alfa acabou por ser alvo de zombaria e de acusações de encenação. Houve maledicentes que sugeriram que o lúcio fisgado por Putin era demasiado pequeno para pesar 21 kg e que os adversários no jogo de hóquei lhe “ofereceram” os golos, mas ninguém contestou a idoneidade do inquérito de opinião realizado na Rússia em 2021 que resultou na eleição de Putin como “o homem mais atraente da Rússia”.

Sobre Putin escreveram-se centenas de livros e milhares de artigos e realizaram-se vários documentários e o líder russo tem sido o tema de milhares de conferências, palestras, debates e podcasts, mas muitas destas exegeses cometem o equívoco de assumir que as palavras e actos de Putin são determinados por uma ideologia política sofisticada, rigorosamente estruturada, coerente e previsível. Ora, ao contrário dos ideólogos, que podem urdir as suas teses no sossego das bibliotecas e sem pressão de prazos e cujos sistemas flutuam, imperturbáveis, numa bolha de ideais e abstracções, os governantes têm de lidar com um mundo concreto e eriçado de constrangimentos e contrariedades – e a necessidade de conformar a ideologia à realidade é particularmente premente quando se governa um país com uma enorme heterogeneidade biofísica e humana e que se estende por 11 fusos horários.

É mais produtivo ver Putin como um autocrata, que, como todos os autocratas, tem por principal objectivo perpetuar-se no poder, recorrendo para isso às medidas e instrumentos que forem convenientes e estiverem disponíveis em cada momento, independentemente da sua vinculação ideológica. Algumas dessas medidas e instrumentos podem estar vinculados a certos regimes e ideologias – como seja a identificação de todos os inimigos como fascistas e o envio dos opositores para colónias penais no Árctico, que foram típicos do stalinismo. Outras não têm vínculos ideológicos específicos – é o caso do culto da personalidade, que tanto foi adoptado por Stalin e pelos Kim, como por Hitler e Mussolini.

“O cavaleiro de bronze” (1870): A estátua de Pedro I (da autoria de Étienne Falconet) na Praça do Senado, em São Petersburgo, na visão épica do pintor Vasily Surikov

A adopção desta atitude estritamente pragmática e oportunista faz com que um tirano de direita tenha muito mais afinidades com um tirano de esquerda do que com um democrata de direita, um facto que costuma ser ignorado pelos que vêm a sociedade e a política pelo prisma da distinção maniqueísta entre direita e esquerda, de que resulta que sejam sistematicamente surpreendidos pelo desenrolar dos acontecimentos e acabem por assumir posições contorcidas, irracionais e extremamente desconfortáveis.

A invasão da Ucrânia, vista dos extremos do espectro político

Era expectável que a extrema-direita europeia e americana se colocasse ao lado de Putin e da agressão russa à Ucrânia, ou, pelo menos, tivesse relutância em condená-la e se opusesse a que a Rússia fosse punida com sanções e a que se auxiliasse a Ucrânia. Afinal de contas, partilham afinidades ideológicas e mundividências com o líder russo e já lhe dispensaram encómios no passado. Porém, a invasão da Ucrânia levou parte da extrema-direita europeia a manifestar algum distanciamento. Não é claro se o fez por calculismo político, de forma a não alienar o sector mais moderado do seu eleitorado, se por genuína convicção, mas o que é certo é que o Chega, o Vox (Espanha), os Democratas Suecos, os Fratelli d’Italia e o Lei e Justiça (PiS, Polónia) condenaram inequivocamente a agressão russa e têm apoiado as sanções à Rússia e o auxílio à Ucrânia. Outros partidos de extrema-direita condenaram a agressão (pelo menos numa fase inicial), mas opõem-se às sanções e/ou a que a União Europeia forneça apoio à Ucrânia – é o caso do Fidesz, de Viktor Orbán, da Lega Nord, de Matteo Salvini, e da Alternative für Deutschland. O Rassemblement National adoptou uma posição ambígua: Marine Le Pen, que em tempos enalteceu Putin como “defensor da herança cristã e da civilização europeia”, entende que a Ucrânia tem direito a ser uma nação soberana e que se justifica que a Europa lhe forneça armamento, desde que este seja apenas de natureza defensiva.

Nas semanas de tensão que conduziram à “operação militar especial”, a extrema-esquerda europeia tendeu a desvalorizar a ameaça russa e a atribuir a subida da tensão na região à NATO e aos EUA, mas o início das hostilidades alterou o seu posicionamento  e acabou por condenar, quase unanimemente, a agressão russa. A extrema-esquerda divide-se quanto ao apoio às sanções à Rússia e a maior parte dela opõe-se à ajuda militar à Ucrânia, como seria de esperar de partidos com um historial de oposição aos EUA, à NATO e, nalguns casos, à União Europeia (vista como subserviente ao Grande Capital).

Nos EUA, embora apenas 5% dos eleitores do Partido Republicano apoiem a Rússia de Putin, o Partido Republicano tem tomado posições ambivalentes, em resultado de estar cada vez mais dominado pela facção “MAGA” (Make America Great Again), formada por apoiantes incondicionais de Trump e que pode ser vista como uma versão mais radical e lunática da antiga “alt-right”, e que tem vindo a expressar simpatia por Putin, antes e depois de 24 de Fevereiro de 2022.

Moscovo, 6 de Fevereiro de 2024: Foi apresentada como uma “entrevista”, mas Tucker Carlson entregou o palco a Putin para duas horas de propaganda sem contraditório. A “entrevista” teve 14 milhões de visualizações no YouTube e 185 milhões de visualizações no Twitter/X

Tucker Carlson (então vedeta da Fox News e uma das figuras com maior audiência na TV americana) entendeu que “se tivéssemos de escolher entre a Rússia e a Ucrânia, acho que deveríamos, provavelmente, escolher a Rússia” (Dezembro de 2019); segundo Peter Navarro (ex-conselheiro de Trump) a Ucrânia “não é realmente um país” (Dezembro de 2021); Matt Gaetz (representante da Florida) disse “estou mais preocupado com o que se passa na fronteira México-EUA do que na fronteira Rússia-Ucrânia” (Janeiro de 2022); J.D. Vance (senador pelo Ohio) declarou “é-me completamente indiferente o que aconteça à Ucrânia” (Fevereiro de 2022); Wendy Rogers (senadora estadual pelo Arizona) acusou Zelensky de ser “uma marioneta pró-globalização controlada por [George] Soros e pelos Clinton” (Fevereiro de 2022); Marjorie Taylor Greene (representante da Geórgia) indignou-se por a NATO “estar a fornecer os neonazis da Ucrânia com armas poderosas e a treiná-los no seu uso. O que é que vai na cabeça desses #NATONazis?” (Março de 2022); na perspectiva de Lauren Witzke (ex-candidata ao senado) “todos os que estão vinculados à Ucrânia ou que a apoiam ou são transgénero, ou são satanistas ou são retintamente nazis” (Março de 2022).

Marjorie Taylor Greene, eleita em 2021 para a Câmara dos Representantes, pelo estado da Geórgia, é uma radical de direita que difunde ideário e teorias conspirativas anti-semitas, ultranacionalistas e supremacistas brancas e rotula os seus adversários (e todas as pessoas e instituições de que discorda) como “nazis”, enquadra-se na definição de Timothy Snyder de “esquizofascismo”

Outro caso de esquizofrenia

Em Portugal, a força política com mais afinidades ideológicas com a facção MAGA – o Chega – colocou-se, genericamente, ao lado do Governo português na condenação da Rússia e no apoio à Ucrânia (e até propôs que Portugal reconhecesse “a Rússia como Estado patrocinador do terrorismo internacional”), deixando o papel de ver a Ucrânia como alfobre de neonazis ao Partido Comunista Português. A posição assumida pelo PCP face à invasão suscitou surpresa e indignação no meio político e mediático nacional e nas redes sociais, mas, na verdade, pouco diferia, no sentido e na argumentação, da que o partido manifestara na última semana de Fevereiro de 2014, quando a Revolução Ucraniana levara à destituição do presidente (pró-russo) Viktor Yanukovych pelo parlamento ucraniano (o que levou a Rússia a retaliar com a anexação da Crimeia). É instrutivo recordar a intervenção sobre a crise ucraniana de Octávio Teixeira, à data deputado do PCP (e ex-líder da bancada parlamentar do partido), na rubrica Conselho Superior, na Antena 1, a 20 de Fevereiro de 2014.

Confrontos entre manifestantes e forças da ordem, Praça Maidan, Kiev, 18 de Fevereiro de 2014

Octávio Teixeira expôs a tese de que as convulsões na Ucrânia não emanavam da vontade popular nem da política interna ucraniana. A “alegada revolução dos ucranianos” resultaria apenas do “apoio e incentivo” da UE e dos EUA a “forças de extrema-direita”, contra um “governo legitimado por eleições”, com os objectivos de “colocar a Ucrânia na órbita da UE e da NATO” e “enfraquecer o poder regional da Rússia”. Para Teixeira, os UE e os EUA “alimentam uma deriva extremista, surfando o nacionalismo anti-russo”, “acordando velhos sentimentos existentes na Ucrânia” e promovendo “uma irresponsável renovação da Guerra Fria”: assim sendo, considerou natural que a Rússia não aceitasse “submeter-se pacificamente a estas ingerências” – e, com efeito, não aceitou, como nós bem sabemos em Fevereiro de 2024. Teixeira prosseguiu a argumentação com dois saltos mortais: equiparou a “alegada revolução dos ucranianos” às agitações orquestradas pelos EUA/UE contra “governos legítimos” como o da Síria e o da Venezuela e equiparou as manifestações da oposição venezuelana contra Nicolás Maduro ao golpe de Augusto Pinochet contra Salvador Allende – convertendo assim Viktor Yanukovych, Nicolás Maduro e Bashar al-Assad em campeões da democracia e da liberdade. Tudo isto “é óbvio para quem quer ver”, mas toda esta mega-maquinação do imperialismo americano e europeu é “ocultada por boa parte da comunicação social, lá fora como aqui”. E concluiu: “É o reino do pensamento único, na economia como na política, como nos interesses geoestratégicos”, um raciocínio comparável ao dos condutores que circulam em contramão na auto-estrada e invectivam os desassisados que circulam em sentido contrário.

Oito anos depois, a 24 de Fevereiro de 2022, o PCP foi o único partido no Parlamento português a votar contra a condenação da invasão russa da Ucrânia. A 1 de Março de 2022, o Parlamento Europeu aprovou uma resolução condenando a invasão russa, com 637 votos a favor, 13 contra e 26 abstenções, e os dois eurodeputados do PCP estiveram entre os que votaram contra, alegando que a resolução dava “força à escalada” e “cobertura ao colossal processo de aumento de despesas militares, ao reforço e alargamento da NATO e à militarização da UE”. Passados alguns dias, o PCP acabou por condenar a “intervenção militar” russa, mas tendo o cuidado de não usar a palavra “invasão” e equiparando a intervenção russa à “escalada belicista dos EUA, da NATO e da UE”. Nos últimos dois anos, o posicionamento do PCP tem seguido esta linha intransigente em tudo o que diga respeito ao conflito na Ucrânia – até mesmo em questões formais e anódinas, como o pedido de autorização à Assembleia da República relativo a uma visita do presidente da República a Kiev.

Podem procurar-se explicações para esta atitude no longo historial do PCP, pode até mesmo elogiar-se a “coerência” do partido (como fizeram alguns comentadores), mas o que mais desafia a compreensão é que o PCP tenha vindo, ao longo destes dois anos, a subscrever, reproduzir e defender, fiel e energicamente, as toscas e incongruentes ficções da propaganda russa, sobretudo as que retratam a Ucrânia como sendo governada por neonazis sanguinários.

Quando, em Abril de 2022, o presidente ucraniano se dirigiu (à distância) ao Parlamento português, o PCP recusou-se a participar “numa sessão concebida para dar palco à instigação da escalada da guerra, contrária à construção do caminho para a paz, com a participação de alguém como Volodymyr Zelensky, que personifica um poder xenófobo e belicista, rodeado e sustentado por forças de cariz fascista e neonazi”. Os deputados do PCP invocaram idêntica justificação, para, a 24 de Fevereiro de 2023, não participarem no minuto de silêncio para homenagear as vítimas do conflito na Ucrânia. Os artigos sobre o conflito na Ucrânia no Avante! – que seguem escrupulosamente a doxa do partido – falam, em tom inflamado, em “neonazis”, “massacres”, “violentas agressões”, “gigantescas manobras de desinformação” e “manobras atentatórias das relações internacionais” – só que imputam todas estes qualificativos, malfeitorias e intenções malévolas à Ucrânia, à NATO e aos EUA. Os EUA são descritos como uma “potência imperialista mergulhada numa profunda crise interna” e é-lhes imputado o “sonho imperialista do controlo dos antigos territórios da União Soviética”, uma descrição e uma imputação que assentam na perfeição à Rússia de Putin.

Perante a morte Aleksey Navalny na colónia penal no Árctico para onde fora remetido, é oportuno recuperar outra jóia dos arquivos do PCP: a declaração de voto da eurodeputada Sandra Pereira, do PCP, relativa à resolução do Parlamento Europeu de 21 de Janeiro de 2021.

Convém recordar que, a 20 de Agosto de 2020, Navalny fora vítima de envenenamento com Novichok, que se manifestou num voo entre Tomsk e Moscovo e a que só sobreviveu por a Alemanha ter enviado de urgência um avião ao hospital em que fora internado, em Omsk, para o levar para Berlim, onde foi devidamente tratado. Quando, a 17 de Janeiro de 2021, após um período de recuperação na Alemanha, Navalny regressou à Rússia, foi detido pelas autoridades russas, que invocaram como pretexto o facto de a deslocação de Navalny à Alemanha – sem a qual teria sucumbido – constituir uma infracção do estatuto de liberdade condicional decorrente da pena que lhe fora aplicada num processo judicial (que Navalny alegou ter motivações políticas) relativo a desvio de fundos. A resolução do Parlamento Europeu, datada de 21 de Janeiro, protestava contra a detenção de Navalny e pedia que fossem aplicadas “sanções contra os oligarcas russos que têm ligações ao regime e os membros do círculo interno do Presidente Putin”. Foi aprovada com 581 votos a favor, 44 abstenções e 50 votos contra e entre estes últimos contou-se o da deputada do PCP, que se justificou assim: “O regresso, devidamente anunciado, do cidadão russo Alexeï Navalny ao seu país, depois de um período de internamento na Alemanha na sequência de um presumível envenenamento, resultou na sua prisão, por violação dos termos da liberdade condicional em que se encontrava. Este foi o gatilho para mais uma resolução em que o Parlamento Europeu é parte do processo de ingerência na política interna da Federação Russa, legitimando um cerco económico e militar que a UE, os EUA e a NATO desenvolvem, procurando o controlo dos seus recursos, da sua posição geoestratégica e das suas capacidades de exercer um contrapoder diplomático e militar”.

O Muro da Dor, numa praça junto à Avenida Akademika Sakharova, em Moscovo (aqui numa foto de 2019), foi erguido como memorial às vítimas do stalinismo, mas, nos últimos dias, os apoiantes de Navalny têm tentado usá-lo para lhe prestar homenagem, ainda que as forças do regime removam as flores e afastem os apoiantes

O que explica que um partido que está sempre a vangloriar-se do seu historial de combate contra o fascismo e pela liberdade e a exaltar a paz como bem supremo acabe, na prática, a fazer o jogo de um regime de extrema-direita, repressivo e belicista, e a reproduzir acriticamente a sua estulta propaganda?

Os sucessivos fiascos das experiências comunistas pelo mundo foram deixando o PCP sem referências, sem rumo e sem perspectivas de futuro; só lhe resta uma inabalável (e insuportável) convicção de superioridade moral, grelhas interpretativas obsoletas e rígidas e uma visão conspirativa da realidade (só urdiduras maquiavélicas podem explicar o falhanço das suas magníficas e bondosas propostas). É com estes instrumentos que traçam o que crêem ser uma linha de impecável coerência doutrinária, mas que desemboca na incoerência lógica, na torpeza moral e no cinismo. E quando este posicionamento suscita críticas, os comunistas portugueses, em vez de se sentirem compelidos a fazerem um exame de consciência, refugiam-se na vitimização, dizem-se perseguidos pela “ditadura do pensamento único”, imaginando-se mártires atirados aos leões por ordem do todo-poderoso Imperador Yankee, por terem recusado abjurar a sua fé e oferecer sacrifícios a Mamon. E foi assim que, numa trágica ironia, os discípulos do filósofo que denunciou a religião como ópio do povo se converteram numa seita dogmática e anquilosada.

A máquina de fazer russos

Em Julho de 2023, a Assembleia da República aprovou um voto de pesar pela morte do escritor Milan Kundera, cuja unanimidade só foi quebrada pela abstenção do PCP. Esta não foi motivada por reservas dos deputados comunistas quanto aos méritos literários de Kundera, mas pela mesquinhez, pelo sectarismo e pelo rancor. Acontece que Kundera foi expulso do Partido Comunista checo em 1950 e, em 1975, após vários dissabores com o regime, se exilou em França para não mais regressar. Pior do que isso, escreveu textos pouco abonatórios e muito lúcidos sobre o comunismo.

Por exemplo, em A cortina (Le rideau, 2005), Kundera recorda como ficou perplexo ao aperceber-se de que era visto em França como “um exilado da Europa de Leste”, ainda que o seu país natal sempre tivesse feito parte da Europa Central, como a geografia, a cultura e a história comprovam; o infortúnio da Checoslováquia, lamentava Kundera, foi, no pós-II Guerra Mundial, ter sido capturada, juntamente com boa parte da Europa Central, para a órbita soviética: “fomos anexados não só por outro país como por outro mundo, o mundo do Leste europeu”.

Praga, 9 de Maio de 1945: Os habitantes aclamam o marechal Ivan Konev, comandante das tropas soviéticas. A entrada do Exército Vermelho na cidade fora fácil, graças ao levantamento protagonizado pela resistência checa, mas a saída foi custosa: foi preciso esperar mais de 44 anos para as tropas soviéticas regressarem a casa

Kundera já abordara o tema do sequestro da “Europa de Leste” pelo imperialismo soviético em 1983, num ensaio intitulado “O Ocidente sequestrado: A tragédia da Europa Central” (“L’Occident kidnappé: La tragédie de l’Europe centrale”, publicado originalmente na revista Le Débat). Nele, Kundera recorda a carta dirigida em 1848 à Dieta alemã, em Frankfurt por František Palacký, historiador e figura seminal do nacionalismo checo, em que este sublinhava o papel crucial desempenhado pelo Império Austro-Húngaro como único baluarte contra as ambições imperialistas da Rússia, “essa potência que domina todo o leste do nosso continente. Sabeis que esta potência, hoje dilatada para vastas dimensões, tem vindo a expandir-se e fortalecer-se numa escala bem maior do que é possível a qualquer país ocidental. Sabeis que, sentindo-se segura por o seu coração estar a salvo de praticamente todos os ataques, há muito que se tornou numa ameaça para os seus vizinhos e que […], conduzida por uma pulsão inata, sempre buscará expandir as suas fronteiras para sul. Sabeis também que cada passo que ela dá nesta via torna cada vez mais iminente a implantação de uma monarquia universal, que é o mesmo que dizer um mal infinito e indizível, um infortúnio tremendo e sem limites”.

E conclui Kundera: “A Europa Central ambicionava ser a imagem condensada da Europa e da sua riqueza variegada, uma pequena Europa arqui-europeia, modelo miniatura da Europa das Nações, concebida segundo a regra: o máximo de diversidade no mínimo de espaço. Como poderia ela não ficar horrorizada com a Rússia, que assenta na regra inversa: o mínimo de diversidade no máximo de espaço? […] Nada poderia ser mais alheio à Europa Central e à sua paixão pela diversidade do que a Rússia, uniforme, centralizadora, que converte com inflexível determinação todas as nações do seu império (ucranianos, bielo-russos, arménios, letões, lituanos, etc.) num único povo russo”.