885kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

i

Laurence Griffiths/Getty Images

Laurence Griffiths/Getty Images

A violência psicológica na ginástica: "Ainda é tudo muito silenciado. No nosso país ainda mais"

Cláudia Pinheiro é investigadora sobre desporto do Instituto da Maia. Ao Observador, diz não ter dúvidas: "Infelizmente, a violência sexual, psicológica e social existe na ginástica"

Cláudia Pinheiro é investigadora no Instituto Universitário da Maia e há anos que se dedica a estudar as questões sociais em torno do desporto. Nos últimos anos, debruçou-se sobre a ginástica artística feminina, um desporto agora no centro do debate, depois de Simone Biles ter protagonizado a desistência mais mediática de sempre nuns Jogos Olímpicos, esta terça-feira.

“Pressão” é a palavra que a investigadora mais usa na entrevista ao Observador. “Uma das questões que às vezes os atletas reportam, já depois do abandono da prática, é serem sujeitos a elevadas pressões de natureza emocional, alegando às vezes até situações de violência psicológica”, afirma. Os casos de abuso psicológico — e até sexual, como de Larry Nassar — não são assim tão raros, considera Cláudia Pinheiro.

Cláudia Pinheiro é investigadora no ISMAI e co-fundadora do Observatório Nacional da Violência Contra Atletas

Isto porque a alta competição, aliada à tenra idade com que muitas ginastas começam a treinar, fazem das ginastas presas fáceis. “Há atletas e investigadores que falam numa espécie de adolescência em stand by“, resume. “Tudo o que fazem é em função da ginástica, portanto, parece que fazem uma pausa no resto das suas vidas para conseguirem atingir os resultados que atingem.” E se, pelo meio, encontrarem métodos de treino rígidos ou treinadores mais abusivos, a violência pode surgir.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Foi por isso que, juntamente com outros investigadores, Cláudia Pinheiro fundou, em setembro de 2020, o Observatório Nacional da Violência Contra Atletas. “Aquilo que nós queremos é que atletas atuais, ex-atletas ou pessoas que tenham testemunhado algum tipo de situação que percecionem como violenta possam usar esta plataforma online e reportar estas situações”, explica, acrescentando que em causa pode estar violência de natureza física, psicológica ou até sexual.

Ouça aqui a entrevista a Cláudia Pinheiro

Violência psicológica e sexual na ginástica

Tal é fulcral, diz, porque em Portugal quase não há dados sobre esta matéria. Muito por uma cultura de receio que diz existir entre os atletas: “Nestas situações de maior intensidade, pressão ou violência, isso é encarado por alguns ginastas como sendo algo perfeitamente natural, que faz parte. O ‘só assim é que lá chegamos’.” E, para a investigadora, Simone Biles teve um papel importante esta semana, ao chamar a atenção para as fragilidades dos atletas de alta competição. As críticas de alguns, que acusam Biles de estar a tentar mascarar o falhanço desportivo com uma questão mental, não colhem junto de Pinheiro, que considera que “não faria sentido ela estar a chamar a atenção” para as suas capacidades desportivas. “Ela já provou o que é”, resume.

É impossível não começarmos com o tema de Simone Biles e o que protagonizou nestes últimos dias. Aquilo que lhe aconteceu é um problema específico dela ou é comum e, simplesmente, antes não havia espaço na ginástica para as atletas recuarem por questões psicológicas?
Que eu tenha conhecimento, numa grande competição, foi a primeira vez que aconteceu uma situação desta natureza, em que a “estrela”, alegando problemas de natureza mais emocional e mental, abandonou a competição. Sabemos que — graças aos estudos que vêm de fora, porque aqui em Portugal há muito poucos — uma das questões que às vezes os atletas reportam, já depois do abandono da prática, é serem sujeitos a elevadas pressões de natureza emocional, alegando às vezes até situações de violência psicológica. É algo de que se vai falando, mas ainda é tudo muito silenciado, está tudo muito oculto. Então no nosso país, muito mais ainda. No caso da Simone Biles, é efetivamente uma pressão brutal.

Simone Biles abandonou a competição de equipas e de all-around por não se sentir mentalmente preparada

Por causa desta ideia de que teria de bater o recorde nacional e conquistar cinco medalhas?
Exato. Aquela expressão dela de dizer que parece que tem o mundo nos ombros… Acredito que sim, deve estar sujeita a uma tensão enormíssima, não só pela equipa, mas porque toda a comunidade gímnica e o mundo inteiro estavam de olhos postos nela. Porque, efetivamente, ela era apontada como uma estrela destes Jogos. Tudo isto deve ter tido a sua quota-parte de responsabilidade na situação pela qual ela passou. Apesar de conhecermos a Simone Biles como um sinónimo de perseverança, resiliência e determinação brutal, há momentos em que, inexplicavelmente, eles quebram. Não posso especular muito mais, porque naturalmente não conheço o caso [por dentro], mas terá sido algo de natureza psicológica. O que está por trás, não sabemos. Mas presumo que muito vai ser estudado e acredito que gente dos Estados Unidos que esteja mais próxima dela vai tentar perceber exatamente o que aqui se passou. Ainda hoje vi o tweet do Michael Phelps em que diz que compreende perfeitamente a pressão psicológica e que está extraordinariamente solidário com a Simone Biles. Porque, realmente, a pressão a que estas verdadeiras estrelas estão sujeitas… Não consigo sequer imaginar. Pode haver um momento em que não conseguem gerir.

"Apesar de conhecermos a Simone Biles como um sinónimo de perseverança, resiliência e determinação brutal, há momentos em que, inexplicavelmente, eles quebram"

Ainda bem que falou do caso de Michael Phelps, porque queria precisamente perguntar-lhe se a ginástica artística é uma modalidade onde se sente mais esta pressão psicológica ou se isto é inerente à alta competição?
Acho que é inerente à alta competição. Todos os atletas que estão ao mais alto nível são sujeitos a estas pressões, sem exceção. Acredito que nas modalidades individuais se possa fazer sentir mais, mas é uma mera especulação. Porque, ainda que haja uma equipa, é a prestação deles, têm os títulos individuais… Isto não é exatamente igual ao que se passa no andebol ou no basquete, porque se temos uma pequena falha há um colega ao lado que pode dar algum suporte.

Aí, a responsabilidade é partilhada.
Exatamente. Enquanto aqui são eles — se falham, são eles. Não há mais ninguém. Por exemplo, ontem a Simone acusou muito o não ter conseguido concluir o salto, já ter tido as qualificações com falhas, ontem ter voltado a ter uma falha logo no aparelho de abertura… Isso terá contribuído bastante para isso. É a pressão psicológica, inerente à alta competição.

No caso da ginástica artística, tem havido muito debate, sobretudo provocado pelo escândalo de Larry Nassar. Isso levou várias federações internacionais a olhar para os métodos de treino na modalidade e para o facto de incidirem sobretudo em raparigas muito novas, ao contrário do que aconteceu na ginástica masculina. Até que ponto o fator da idade pode contribuir para afetar psicologicamente as atletas?
Elas são sempre mais jovens do que eles, sim, se bem que nestes Jogos estamos a ver uma pequena mudança nesse paradigma. Já vemos ginastas de 20, 21, 22 anos, algo mais velhas do que era habitual há uns anos, mostrando que é possível também que mulheres façam ginástica.

E conseguirem o ouro à mesma.
Sim, e com o nível de exigência e dificuldade que conseguimos observar. Naturalmente, mesmo os atletas que competem até mais tarde — e ainda bem que temos uma maior longevidade dos ginastas — iniciam-se na prática desportiva extraordinariamente cedo, para conseguirem chegar ao nível a que chegam. A pressão psicológica sobre estes atletas é sempre enormíssima e há vários estudos que falam também na violência sexual. Infelizmente, a violência (sexual, psicológica, social) acontece na ginástica. A nível internacional, há já muitos estudos, e eu faço parte de um grupo de investigadoras a nível internacional que se dedica ao estudo dos aspetos sócio-culturais na ginástica artística. Uma das coisas que algumas já concluíram é que alguns destes atletas ao mais alto nível, quando olham para as suas carreiras de forma mais retrospetiva, dizem que, por terem iniciado as carreiras em idades muito baixas, parece que na infância e adolescência tudo girava à volta do ginásio.

"A pressão psicológica sobre estes atletas é sempre enormíssima e há vários estudos que falam também na violência sexual. Infelizmente, a violência (sexual, psicológica, social) acontece na ginástica"

E há atletas e investigadores que falam numa espécie de adolescência em stand by, em modo de pausa, porque toda a vida gira em torno do ginásio. Tudo o que fazem é em função da ginástica, portanto, parece que fazem uma pausa no resto das suas vidas para conseguirem atingir os resultados que atingem. Naturalmente, ao fim de algum tempo, há ginastas que conseguem gerir essas cargas enormes de treino e as pressões de forma diferente. Uns gerem melhor, outros pior. Mas eu diria que isto é algo que faz parte da ginástica, mas temos de começar a falar e a ver se há outras metodologias de treino que não as antigas. Presumo que já esteja a haver alterações para termos atletas a competirem mais tempo. E precisamos de começar a falar destas situações de violência que existem na modalidade e apontar os exemplos bons do que é possível fazer: atingir bons resultados usando metodologias mais adequadas.

Tendo em conta a investigação que fez em Portugal, o que encontrou nos nossos ginásios? Também existe essa violência? Ou porque o país tem um nível de competitividade mais baixo do que os EUA, por exemplo, a questão não pode ser colocada assim?
Os estudos que fiz foram centrados na nossa ginástica. Um deles já tem mais de uma década. Há outro mais recente, que ainda não foi publicado. É claro que não temos um nível de competitividade como o Japão, ou a Rússia, mas vamos conseguindo ter um ou outro atleta como a Filipa Martins, a mostrar que também somos capazes de ter bons ginastas. Mas ainda nos falta algum caminho, naturalmente. Foi o que detetei nos meus estudos — sobretudo no que está publicado, mas já tem décadas…

Filipa Martins foi a ginasta portuguesa a conseguir a melhor classificação nacional de sempre na ginástica artística feminina (37º lugar nos Jogos do Rio)

INÁCIO ROSA/LUSA

A realidade pode ter mudado entretanto, é isso?
Sim, acredito que mudou, até por aquilo que vou conhecendo do treino da Filipa Martins, por exemplo. Lá está, ela tem 25 anos, já é uma mulher, já não é uma criança nem adolescente. Portanto, alguma coisa mudou na metodologia de treino para ela estar e continuar [a competir] e ainda bem. Mas não posso pôr as mãos no fogo. Como digo, o estudo que fiz trouxe ao de cima algumas situações de violência que ocorriam na ginástica. Hoje em dia, no trabalho mais recente que co-orientei, também me foram dadas a conhecer algumas situações muito pontuais de um ou outro tipo de violência. Mas tudo muito oculto, muito silenciado. Toda a gente tem algum receio em falar, têm medo de represálias, do que pode acontecer. Até porque muitas vezes, nestas situações de maior intensidade, pressão ou violência, isso é encarado por alguns ginastas como sendo algo perfeitamente natural, que faz parte. O ‘só assim é que lá chegamos lá’.

Portanto, em Portugal também há essa certa cultura de medo?
Sim, exatamente. Havia esse receio e neste momento eu faço parte duma equipa de investigação aqui na Universidade da Maia onde estamos a tentar investigar [essa realidade] — não só na ginástica, mas noutras modalidades também. Porque nestes casos os atletas normalmente não falam, tendem a considerar isto como algo absolutamente normal para se conseguir atingir resultados. O grande problema em todas as modalidades e, particularmente, no caso da ginástica é tentar perceber onde são os limites. Todos sabemos que na ginástica é preciso os atletas superarem-se e ultrapassarem muitos obstáculos, mas qual é o limite? O que é considerado normal e a partir de que limite podemos dizer “Isto não é normal e não pode acontecer”?

"O grande problema em todas as modalidades e particularmente no caso da ginástica é tentar perceber onde são os limites. Todos sabemos que na ginástica é preciso os atletas superarem-se e ultrapassar muitos obstáculos, mas qual é o limite?"

É como se esse fosse o grande debate a que Biles deu o mote agora. Há quem diga que a atleta está a usar a questão da saúde mental porque é uma moda e que ela poderá estar a tentar apenas alterar a narrativa pública porque falhou. O que acha destas críticas?
Sendo ela a atleta que é, não fará muito sentido estar a querer chamar a atenção usando este tipo de estratégias. Acho que ela não necessita disso. Ela já provou o tipo de ginasta que é e daquilo que é capaz. Se ela tomou a decisão de não competir é porque, efetivamente, algo com ela não estará bem. Ela não se deve ter sentido nas melhores condições, porque não faria sentido ela estar a chamar a atenção. Ela já provou o que é, não tem nada mais a provar, é uma ginasta de eleição. Haverá potencialmente aqui questões de saúde mental e ela, ao tomar esta decisão, sem dúvida que chama a atenção para estas questões nos atletas. Os atletas necessitam de um forte apoio a nível psicológico e estes atletas de mais alto nível, na maioria dos casos, têm esse apoio. Mas de qualquer forma, tal como a violência de que falava há pouco, as questões da saúde mental têm de começar a ser faladas e trabalhadas. Os atletas necessitam desse enorme apoio para conseguirem gerir todas as emoções e sentimentos quando estão nestes palcos mundiais a representarem os seus países.

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça até artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.