O discurso de António Costa na rentrée do PS

Autárquicas, autárquicas, autárquicas. A prioridade do PS para os próximos tempos sai clara da intervenção do seu líder António Costa

“Sabíamos que seria um ano político muito exigente, em velocidade cruzeiro na execução do programa do Governo, por causa da presidência portuguesa da União Europeia e porque teríamos três eleições, duas das quais decisivas para o PS. Desde já as regionais dos Açores e, em outubro, as autárquicas em todo o território nacional. São duas eleições da maior importância e responsabilidade para o PS”.

Aí está o calendário político da próxima época. A 25 de outubro próximo, as regionais dos Açores, com Vasco Cordeiro a concorrer para o último mandato que a limitação de mandatos lhe permite. E daí a um ano, as autárquicas, sempre centrais para qualquer partido, ainda mais de poder. Pelo meio há presidenciais, mas ficou claro que, para o partido, o empenho nesse capítulo será zero. Nem uma referência no discurso com que António Costa marca a rentrée do PS e onde detalhou que das três eleições que existem no próximo ano, apenas duas “são decisivas”. Numa altura em que ainda não se sabe o que fará o PS nas próximas presidenciais, o líder do partido mostra que é pouco provável avançar com um candidato próprio ou envolver-se sequer na campanha presidencial. O Presidente que está não incomoda Costa que até já disse que “cá estará” para assistir a um próximo mandato de Marcelo Rebelo de Sousa em Belém. Depois também marco as fasquias eleitorais para as eleições que lhe interessam: Cordeiro ser reeleito; nas autárquicas ter o que conquistou, com António Costa a lembrar que o PS é o “maior partido autárquico português, o único que tem câmaras em todos os distritos e o único que tem posição relevante quer nas freguesias quer nos municípios”.

“Nesse tão distante mês de fevereiro de 2020 Portugal estava com um crescimento económico ímpar, lançando-se para o terceiro ano consecutivo de convergência com a União Europeia, que a taxa de desemprego tinha mais uma queda e tinha reduzido para metade, os rendimentos estavam a melhorar o país e estavam num processo de crescimento sólido e estável. Subitamente tudo mudou”

Esta é aquela parte com que António Costa gostaria de poder embandeirar em arco, mas a pandemia veio travar este discurso “subitamente”. Fica para trás o slogan do défice mais baixo da história da democracia, mas não totalmente. O líder socialista arranjou forma de trazer para esta rentrée socialista o seu capital de equilíbrio das contas públicas nos últimos anos, através deste lamento por não poder falar dele. Pela intervenção desta segunda-feira percebeu-se que será uma ideia a que vai regressar, tanto mais que quando pede mobilização para recuperar o país no pós-pandemia lembra sempre que foi o PS que fez essa recuperação no pós-troika.

“Não podemos ter ilusões: a pandemia não acabou nem acabará enquanto não tivermos tratamento e uma vacina. Ninguém sabe quando será. Não podemos baixar a guarda e controlar a pandemia, tem de continuar a ser a primeira prioridade de todos nos a título individual (…) Estamos aqui a mostrar que nada obriga os partidos a parar a sua atividade desde que todos cumpramos as normas de segurança”.

É um combate que ainda não está ganho, mas o líder socialista teve vários momentos desta sua intervenção onde mostrou preocupações sobre uma possível paralisação do país como aconteceu em março e abril deste ano. Aliás, acabou mesmo por se meter pela polémica política do momento: a manutenção da Festa do Avante, com lotação para 33 mil pessoas (ficou a saber-se durante o evento socialista que afinal serão apenas 15 mil), no próximo fim de semana. Antes de entrar na sala, questionado pelo jornalistas, disse que a DGS ia divulgar as regras sanitárias da festa comunista e lá dentro disse que o PS estava ali a dar o exemplo de que era possível manter a atividade partidária em tempo de pandemia. Uma posição que tem defendido, não colocando restrições a organizações partidárias ou outras nem mesmo quando o país esteve em estado de emergência (recorde-se a manifestação do 1º de maio). O ponto de honra é apenas: cumprir as normas de segurança. O PS também nunca teve grandes comícios de rentrée, limitando-se a eventos desta natureza (convenções, conferências, colóquios mais virados para dentro).

“Não vai ser como o último período do ano letivo do ano passado. As escolas não podem encerrar todas nem podemos ter um nível e ensino à distância que tivemos no ano passado (…) é essencial que organizemos em cada agrupamento de escolas e estabelecimento de ensino os planos de contingência para responder ao que vai acontecer”

Quando ainda existem muitas incógnitas em relação ao próximo ano letivo, que começa dentro de 15 dias, o líder do PS que também é primeiro-ministro vem sublinhar que cabe às escolas definirem planos de contingência, mostrando já o que não pode acontecer: parar tudo por causa de um infetado no estabelecimento de ensino. “Há sempre um professor ou um aluno que vai estar infetado e temos de saber muito claramente o que acontece a esta turma”, disse Costa incentivando as escolas a detalharem regras como já tinha definido o Ministério da Educação. “Temos de evitar que uma pessoa contaminada signifique toda a escola encerrada. As medidas de restrição e confinamento têm de ser as mínimas possível”, detalhou ainda num aviso que pouco serve às escolas, já que a decisão de encerramento das mesmas é das autoridades locais de saúde e não dos diretores dos estabelecimentos. De qualquer forma, até agora, o Governo ainda não tinha dito nada sobre o assunto e ficou aqui, em Coimbra, o desejo expresso do primeiro-ministro.

“Este programa [de Resiliência e Recuperação] é parcialmente constituído por subvenções e, outra parte, em empréstimos. Temos de maximizar uma utilização das subvenções e limitar ao máximo o recurso a empréstimos”

Perante a plateia socialista, carregada de autarcas do partido, o primeiro-ministro traçou também logo ali as linhas para a utilização da “bazuca” financeira que vem de Bruxelas e que se distribui pelo quadro financeiro plurianual até 2030 e também pelo plano de Recuperação e Resiliência (cujo primeiro esboço ficou a cargo do empresário António Costa e Silva), respetivamente mais de mil milhões de euros e 750 mil milhões. Estes últimos, segundo o que ficou acordado no longo Conselho Europeu de final de julho, virão por duas vias: doações a fundo perdido e empréstimos. Nos próximos dez anos, Portugal terá 57,9 mil milhões de euros de Bruxelas para executar e da parte que vem do plano de recuperação, 15,3 mil milhões de euros serão a fundo perdido. É aqui que Costa quer ver a execução em máximos e não na tranche que vem em modelo de empréstimo. E disse mais, sobre a aplicação desta verba: “Temos de escolher bem o que colocamos num programa e no outro”. Porque o quadro financeiro plurianual e para execução mais longa (2030) e o plano de resiliência para execução mais curta (2026). Exemplo? Também deu: a nova ponte sobre o Douro ou a extensão da linha vermelha em Lisboa (e Fernando Medina estava na audiência a ouvir) são obras para colocar no quadro financeiro plurianual. Já “a aquisição de material circulante para os sistemas de mobilidade do Mondego devem ser postos já no programa de recuperação”. A cartilha de planificação está feita, mas com o aviso de “disciplina interna” na sua gestão para não onerar gerações futuras.

“As infraestruturas foram um dos parentes pobres do quadro financeiro plurianual. O país tinha estradas a mais, já tinha investido demais nas estradas e autoestradas. É verdade, temos uma boa rede de autoestradas, mas temos também temos pequenas grandes obras que são de uma enorme distância em relação à grande infraestrutura que esta quase ali ao lado”. 

A frase é longa, mas dela sai um produtivo slogan para qualquer campanha eleitoral autárquica: vamos dar prioridade às grandes obras locais. E isto vindo do chefe do atual Governo que deixou até em Coimbra ligações concretas elencadas, com promessas de investimento no curto prazo. É a melhor forma de cativar autarcas nesta altura e, na plateia socialista em Coimbra, estavam muitos — o partido nas últimas autárquicas (2017), conquistou 159 câmaras. Foram eles que ouviram Costa colocar como prioritária a obra na Nacional 14, que liga Porto a Braga, mas também dizer que “os investimentos em infraestruturas não vão ser nas grandes infraestruturas e nas ligações Lisboa-Porto e nas grandes ligações ferroviárias”, até porque essas “têm formas de investimento próprias”. A prioridade no cimento vai estar no desenvolvimento do interior, sobretudo regiões transfronteiriças, com a “ligação entre Bragança e Fronteira, o IC13 entre Castelo Branco e Monfortinho, a ligação entre Nisa e Cedillo e a ponte entre Alcoutim e Salúcar”. Isto além da aposta na “eficiência hídrica” do Algarve e na Barragem do Pisão, “indispensável para o distrito de Portalegre”. Lista de compras feita.

“Não tenham medo da descentralização”

Mais uma frase cara aos ouvidos autárquicos que reclama mais poder (e recursos) para decisão e menos esquecimento por parte dos governos centrais. É também uma frase curta mas que encerra em si, simultaneamente, uma habilidade e uma promessa. A habilidade é óbvia, já que apesar de ter sido um autarca (em Lisboa) defensor da regionalização, Costa é hoje a cara do poder central e diz aos autarcas que a reclamam para não terem medo daquilo que… reclamam. Descola-se dos decisores centralistas e aproxima-se dos decisores locais a quem vai até dar o poder de elegerem os presidentes das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) já em outubro. Esta é a promessa. “Acharam que íamos prescindir do direito de escolher estes presidentes “, disse Costa para se colocar como o desbloqueador da regionalização e da “tradição centralista” que diz ver no país. Mas vão ser ainda os atuais autarcas a escolher os presidentes das CCDR para que estes possam negociar já — e não o Governo — com Bruxelas os fundos comunitários e o plano de recuperação. Se esta eleição fosse adiada para daqui a um ano, depois das autárquicas e esperando os novos presidentes de câmara eleitos, teria de ser o Governo a executar planos que estão a ser debatidos agora, explicou.

“Estes programas não são os do nosso Governo. Transcendem a legislatura. Alguns mesmo a próxima legislatura e todos temos de estar envolvidos”

Esta era a frase que daria manchete de qualquer jornal, com um sonante “Costa chama a direita para negociar”, não tivéssemos assistidos nos últimos dias às negociações que o primeiro-ministro estabeleceu diretamente com a esquerda (só o PCP faltou e está à mesa de reuniões técnicas) e se logo à entrada o mesmo socialista não tivesse dito que essas reuniões revelaram “excelentes condições” para que haja um “acordo de legislatura”. À esquerda, pois, afinal foi apenas e só a esquerda que chamou a São Bento. Aliás, os restantes partidos só serão ouvidos a posteriori, ou seja, depois de apresentado, dia 15 de setembro, o plano de recuperação e resiliência, numa espécie de consulta pública, também com o Conselho Económico e Social, a 21 de setembro. E também teria sido manchete se Costa não tivesse usado a estratégia do costume. Ele pouco se compromete ou faz críticas aos parceiros os seus discursos — sobretudo quando ainda não há acordo fechado — deixando esse serviço para os seus braços armados, no caso, a líder parlamentar e o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares. “É à esquerda que faremos as pontes necessárias”, disse Duarte Cordeiro e “continuamos a contar com os partidos da esquerda”, disse ainda antes do governante Ana Catarina Mendes. Isto é, quando Costa diz que está a “trabalhar para criar condições políticas para que no horizonte de legislatura haja estabilidade necessária para todos estes programas” é à esquerda que está a fazer esse trabalho. Mesmo que também prometa que quer envolver “todos no esforço de recuperação do país. Todas as forças políticas”. Uma coisa é envolvê-los para a fotografia poítica, outra é negociar prioridades.