Depois de uma noite numa discoteca na zona do Cais do Sodré, em Lisboa, Marta (nome fictício) quis ir para casa e chamou um TVDE. Era já madrugada de domingo, dia 28 de julho. O carro que chegou à zona situada entre o Metro e o cais onde param os barcos com destino à Margem Sul era conduzido por um homem de 26 anos e, ao longo da viagem, Marta acabou por adormecer. Estava cansada, explicou ao Observador Carlos Farinha, diretor nacional adjunto da Polícia Judiciária, que garantiu que a jovem não estava alcoolizada, contrariamente ao que chegou a ser noticiado. “Pode ter bebido alguma bebida, mas não estava alcoolizada”, sublinhou.
Pouco antes da paragem final, o condutor terá percebido que Marta não estava acordada, parou o carro, saiu do lugar que ocupava como condutor, abriu a porta de trás do carro e sentou-se ao lado de Marta, que continuava a dormir. E acabou por abusar sexualmente dela, dentro do carro e num momento em que Marta não tinha qualquer capacidade de resistência.
Prisão preventiva para motorista de TVDE suspeito de violar passageira
O homem de 26 anos é agora suspeito do crime do crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, cuja pena de prisão estabelecida pelo Código Penal varia entre os seis meses e os oito anos. Depois de ter sido presente a primeiro interrogatório no Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa, foi determinada a medida de coação de prisão preventiva.
Condutor foi identificado em poucos dias e provas ainda estavam no carro
O crime terá acontecido na madrugada de 28 de julho e, como explica Carlos Farinha, foram necessários poucos dias para identificar o suspeito e para localizar o carro onde terá acontecido a agressão sexual. Aliás, entre a queixa e a detenção passou cerca de uma semana. Esta rapidez deve-se, sobretudo, a três fatores que estão necessariamente ligados: a queixa, a identificação do condutor através dos dados da plataforma TVDE e a recolha de provas no carro.
Primeiro, explicou o diretor nacional adjunto da PJ, esta vítima sinalizou o caso – quer na polícia, quer no hospital. E fê-lo assim que o crime aconteceu, o que permitiu que a queixa tenha passado logo para as mãos da Polícia Judiciária, que deu início à investigação. E aqui há também um ponto importante e que está relacionado com a apresentação de queixa de forma correta. Ou seja, o crime ou suspeita de crime devem ser denunciados à polícia — há vários casos que se tornam virais nas redes sociais e, por vezes, não existe qualquer queixa feita junto das autoridades.
Carlos Farinha dá, aliás, o exemplo de uma mulher vítima de agressão sexual há cerca de dois anos, no Algarve: o caso foi partilhado nas redes sociais antes de chegar às mãos da Polícia Judiciária. “Essa não é a forma de denunciar. É preciso que a informação chegue ao sistema. Não quer dizer que o sistema não consiga ser proativo e investigue o que está a ser dito [nas redes], mas não podemos dar isso como garantido.”
Neste caso de julho, já com o processo de investigação aberto, a Judiciária pediu os dados do condutor à plataforma TVDE para conseguir localizá-lo e encontrar o carro — e perceber se ainda existiam provas biológicas. Aliás, é também por isso que as queixas, alerta Carlos Farinha, devem ser feitas o mais rápido possível: para permitir a recolha do máximo de material biológico possível, uma vez que “o crime de abuso sexual é um crime iminentemente biológico” e “quanto mais tempo passa sobre o evento, mais difícil é obter resultados no plano cientifico”.
Neste caso, “a localização do carro foi relativamente rápida pela informação facultada pela plataforma” e os inspetores da PJ perceberam que o carro “ainda tinha condições para ser inspecionado”. Ou seja, ainda foi possível recolher vestígios biológicos do crime – um trabalho que é feito pelo Laboratório de Polícia Científica e que “foi fundamental” para este caso em particular, acrescentou Carlos Farinha.
“Pior forma de abordar esta matéria é julgar que ela resulta de um ato de grupo”
Partindo deste caso, e tendo em conta várias alegações que vão surgindo nas redes sociais, a Polícia Judiciária aproveita para esclarecer que este tipo de crime sexual não tem uma prevalência especial dentro de carros TVDE e que, obviamente, não está associado a um grupo – seja ele caracterizado pela sua nacionalidade ou profissão. E sublinha que este tipo de crime é encontrado em todas as áreas e contextos sociais, quer no desporto, na Igreja, ou na família.
“Tenho a certeza de que naquela noite houve centenas de transportes que não tiveram problema nenhum. Uma das piores formas de abordar esta matéria é julgar que ela resulta de um ato de grupo”, explicou o diretor nacional adjunto da PJ. E acrescentou: este crime “resulta de comportamentos inadequados e não acontecem no grupo a, b ou c, nem nas atividades a, b ou c”.
Para exemplificar que este crime não está circunscrito a atividades relacionadas com transportes, Carlos Farinha faz referência ao caso recente de um homem que foi detido por violação, em Carregal do Sal e a vítima era sua vizinha. “A pergunta é: vamos acabar com a vizinhança em Portugal? Não podemos tomar a exceção pela regra”, disse, sublinhando que “uma vítima é sempre uma vítima a mais”.
Ainda para afastar qualquer ligação entre nacionalidade ou profissão, Carlos Farinha dá um exemplo de uma outra queixa feita contra um condutor TVDE, cuja investigação revelou não existirem indícios da prática do crime de abuso sexual. “A investigação encontrou elementos suficientes e percebeu que a situação que se tinha passado não era uma situação que correspondia a um crime sexual”, explicou.
Criminalidade sexual tem “frequência excessiva” e diversificou-se ao longo dos últimos anos
Todas as semanas há notícias de pessoas detidas por abuso sexual em Portugal. No entanto, a polícia responsável pela investigação deste tipo de crimes recusa fazer uma análise profunda sobre os números de queixas ou inquéritos em investigação. E não o faz precisamente porque considera que as estatísticas “têm uma dimensão significativa, mas não permitem intuir ou saber qual é a visibilidade que o fenómeno tem para o sistema”.
Ou seja: mais queixas ou mais investigações não significa que os crimes sexuais estão a aumentar, significa apenas que estão a entrar no sistema e que é possível chegar a mais casos. “Nem sempre é o icebergue que está a aumentar. A perceção que vamos tendo é a de que temos aumentado a visualização do icebergue”, acrescentou Carlos Farinha.
Apesar disso, é certo que “a criminalidade sexual em Portugal continua a ter uma frequência que é excessiva e que deve ser — e tem sido — combatida”. E, a par desta “frequência excessiva”, há ainda uma mudança que tem vindo a ser notada ao longo dos últimos anos e que passa pela utilização da internet, sobretudo por via de redes sociais. “As situações estão mais híbridas com estas novas realidades. A criminalidade sexual diversificou-se, saiu dos seus padrões mais tradicionais, passando a incluir a comunicação digital”, apontou o mesmo responsável.
Aliás, especialmente nos casos de crimes sexuais que têm como vítimas crianças ou jovens, o que se tem verificado é que estes acontecem sobretudo no plano digital, em que são pedidas e enviadas fotografias ou vídeos íntimos. “Hoje em dia, muita da criminalidade sexual passa pela extorsão sexual” e acontece em ambientes aparentemente controlados, como a casa das crianças e jovens ou mesmo o seu quarto. “Provavelmente seria bom que as crianças não tivessem o telemóvel quando vão para a cama”, alertou Carlos Farinha.