Ao fim de um ano de investigação, a comissão independente coordenada pelo psiquiatra Pedro Strecht apresentou as suas conclusões sobre a realidade dos abusos de menores na Igreja Católica em Portugal — mas o tom foi, essencialmente, de expectativa para um futuro que começa agora. Pedro Strecht, aliás, já havia afirmado que a divulgação do relatório abriria vários caminhos para os próximos tempos.
Esta segunda-feira, depois de uma sessão de quatro horas na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, que antecedeu a publicação do relatório de 486 páginas, essa é expectativa em vários aspetos: a investigação aos arquivos da Igreja só agora está pronta para começar; a lista dos abusadores no ativo vai ser entregue à Igreja Católica e ao Ministério Público na expectativa de que possa resultar em processos e punições; e a grande recomendação da comissão à Igreja Católica é a de que crie uma nova comissão para continuar este trabalho (que, por ter sido limitado a um ano, teve resultados igualmente limitados) e para ir além da “ponta do icebergue” — expressão múltiplas vezes repetida no longo documento.
A investigação dos abusos de menores na Igreja portuguesa começou a ser pensada em 2021, dois anos depois de terem sido criadas as Comissões Diocesanas, que após a pandemia se percebeu “que não estavam a funcionar”. “Um deserto (…) não podia ser assim”, afirmou mesmo um dos bispos portugueses à Comissão, segundo o relatório final. O presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), D. José Ornelas, acabaria por anunciar em 2021 a criação de uma comissão independente para estudar a realidade dos abusos na história contemporânea da Igreja.
O assunto estava na ordem do dia havia mais de dois anos, depois de o Papa Francisco ter inaugurado, com a cimeira sobre a proteção de menores de fevereiro de 2019, uma nova abordagem ao problema. Em outubro de 2021, a publicação de um relatório feito por uma comissão independente em França sobre o mesmo tema abriu o debate em Portugal — e motivou até a mobilização dos católicos numa carta aberta para exigir aos bispos uma comissão.
Após décadas de desvalorização do drama dos abusos no clero — classificados frequentemente pela hierarquia católica como um punhado de casos pontuais —, a Igreja decidiu agir. O escolhido para liderar a comissão independente foi Pedro Strecht, pedopsiquiatra com uma longa carreira associada à proteção de menores profundamente marcada pelo processo Casa Pia, a que se juntaram ainda o psiquiatra Daniel Sampaio, o ex-ministro da Justiça Álvaro Laborinho Lúcio, a socióloga Ana Nunes de Almeida, a assistente social Filipa Tavares e a cineasta Catarina Vasconcelos. Figuras independentes que, segundo o relato de algumas vítimas, as fizeram falar pela primeira vez sobre o que tinham vivido. Mais de 40% dos 512 testemunhos ali chegados, denunciaram o caso pela primeira vez.
A missão entregue pela CEP à comissão foi a de estudar a realidade dos abusos de menores na Igreja desde a década de 1950 até à atualidade. Pela primeira vez, a Igreja Católica portuguesa comprometeu-se a olhar para um passado que durante décadas preferiu ignorar — mesmo sabendo que as conclusões do relatório final, quaisquer que fossem, prejudicariam duramente a reputação de uma instituição que dedicou grande parte da sua história a proteger a imagem pública.
Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre os abusos sexuais na Igreja.
Ao longo do último ano, a comissão independente desdobrou-se em conferências de imprensa e pronunciamentos públicos, o que para uma minoria de bispos foi considerado negativo — o que permitiu acompanhar o avanço dos trabalhos do grupo, mas reduziu consideravelmente o grau de novidade do relatório final conhecido esta segunda-feira. O número total de testemunhos recebidos, que se cifrou nos 512, acabou por ser simplesmente uma atualização estatística do último balanço provisório — no início de outubro, a comissão já tinha recebido 424 testemunhos —, a que se somaram vários dados estatísticos sobre a realidade das muitas vítimas, quase 5 mil, que a comissão estima que tenham sofrido abusos às mãos do clero católico ao longo das últimas sete décadas.
Ainda assim, havia algumas questões por responder. Já se sabia que a comissão não iria incluir as identidades dos padres abusadores no relatório final, mas havia a expectativa de que os bispos que encobriram os casos pudessem ser nomeados. No final, o relatório ficou aquém das expectativas no que diz respeito aos abusadores e aos encobridores: não há números nem estimativas de padres abusadores nem há nomes de bispos encobridores (“preferimos que as pessoas não vão correr atrás de uma meia dúzia de ocultadores”, justificaria Álvaro Laborinho Lúcio na conferência de imprensa); apenas a garantia inequívoca de que houve abusos, houve encobrimento e há padres abusadores e bispos encobridores ainda no ativo.
O verdadeiro trabalho começará agora, quando o MP e a Igreja receberem as listas de abusadores no ativo que a comissão ainda está a preparar — e quando a Igreja se dispuser a implementar as recomendações que recebeu.
O outro aspeto central da investigação — o acesso aos arquivos da Igreja Católica e a revelação das histórias de abuso lá escondidas — também acabou por se revelar como uma tarefa para o futuro. O enorme atraso na autorização do Vaticano para a comissão independente aceder aos arquivos secretos das dioceses portuguesas levou a que este processo só pudesse ser iniciado efetivamente em outubro de 2022 — deixando ao Grupo de Investigação Histórica da Comissão apenas três meses para realizar um trabalho que precisava de perto de um ano para ficar completo. E focando-se esta equipa de investigadores no relato de 20 casos de abusos e como a Igreja lidou com eles. Por isso, na conferência de imprensa desta segunda-feira, a comissão independente salientou que, na prática, os investigadores estão, agora, verdadeiramente prontos para começar o trabalho.
Na conferência de imprensa, Laborinho Lúcio resumiu o relatório com uma única frase: “Houve inequivocamente abusos sexuais por parte de membros da Igreja Católica portuguesa; e houve evidentemente ocultação desses abusos por parte da hierarquia.” Agora, é o momento da “desocultação”, disseram os membros da comissão. No final, Pedro Strecht disse que terminou as suas funções com a “sensação de dever cumprido”, mas essencialmente com a “ideia certa de que este não é bem um final, porque mesmo tendo sido abertas algumas portas interessa, por todos, pela Igreja e pela sociedade em geral, começar hoje mesmo, a partir daqui, um novo tempo de abertura em relação ao tema dos abusos sexuais de crianças no seu todo”.
O que ficámos a saber das vítimas
Para analisar os 563 testemunhos que chegaram através do preenchimento de um inquérito online, a Comissão Independente teve em conta vários critérios. Em causa estavam apenas possíveis vítimas de crimes registados antes de completarem os 18 anos, não podia haver contradições de testemunhos ou inconsistências óbvias, como um abuso ocorrido no confessionário entre as “a meia-noite e as 2h00”, como exemplificam os investigadores, ou mesmo apontar um número de vítimas num seminário superior à sua lotação. Questionários duplicados ou com insultos à Comissão de que estavam “ao serviço da Maçonaria”, ou “Satanás”, ou mesmo de que o “Papa Francisco é um herege”, acabaram riscados.
No final de outubro de 2022, a Comissão tinha validado 512 testemunhos, cerca de uma centena mais do que anunciara na conferência anterior, em que já fazia antever algumas conclusões agora conhecidas. A maioria dos casos refere-se a vítimas do sexo masculino (57,2%), enquanto 44,2% se refere a vítimas do sexo feminino — um número que surpreendeu por ser superior ao registado noutros países que estudaram a mesma temática, mas para o qual a comissão procurou explicações. É que, “ao contrário de outros países europeus (…) a taxa de atividade feminina (a tempo inteiro) em Portugal é extraordinariamente alta, o que sinaliza uma franja de população autónoma, com mais treino de expressão pública e que, portanto, se sente capacitada para dar testemunho sobre a sua experiência de vida”. Por outro lado, se recuarmos no tempo, “sabemos que em áreas rurais do País, fustigadas pela emigração masculina na década de 60, as mulheres que ficavam assumiram papéis de liderança junto das suas famílias e explorações agrícolas”. “O mesmo acontece em áreas urbanas, com a partida dos homens para a Guerra Colonial, sendo as mulheres mais escolarizadas que ocupam precocemente lugares profissionais de um mercado de trabalho em expansão (serviços de saúde, justiça, educação)”, lê-se no relatório.
Atualmente, quem respondeu ao questionário lançado pela comissão tem entre os 6 e os 89 anos (uma média de 52 anos) e maioria reside em território português, embora tenha havido registo de vítimas em Portugal que agora vivem noutros continentes. E se inicialmente a comissão encontrou alguma dificuldade em chegar ao interior do país e tinha zonas do País de onde não chegavam as denúncias, depois de algumas campanhas e de várias aparições públicas conseguiu reunir testemunhos a nível nacional — embora nas cidades com maior população existam mais denúncias, como é o caso de Lisboa, Porto e Braga.
Ficou também a saber-se que a maior parte destas vítimas trabalha, só uma pequena parte está reformada e há muitos licenciados na amostra. “Em termos globais, a amostra tem um padrão de escolaridade muito acima da média da população portuguesa”, lê-se, desconstruindo assim a ideia feita de que os abusos apenas acontecem no seio de famílias mais desfavorecidas. “Pelo contrário: muitos estão no meio de nós, entre os leitores deste relatório e, os que não estão, importa continuar a conhecer de forma mais aprofundada, eventualmente em estudos posteriores.”
Apesar dos relatos chocantes e dolorosos que os membros da comissão fizeram questão de reproduzir, sempre sob anonimato, ao longo da conferência de apresentação do relatório final, certo é que mais de 50% das vítimas continuam a ser católicas e a acreditar em Deus.
Dez anos para conseguir denunciar e uma proposta de mudança na lei
Os abusos, esses foram sofrendo evoluções desde 1950 a 2022, a janela temporal definida para o estudo, que atravessa a ditadura e depois a vida em democracia. À Comissão chegaram relatos, embora que residuais, de abusos que terão começado aos 2 anos (reportados por terceiros), mas a incidência começa de facto aos seis anos e é mais alta entre os 10 e os 14 anos (58,6%).
Em média o primeiro abuso ocorreu quando tinham entre os 10 e os 13 anos e os números são ainda mais surpreendentes quando se percebe que a maioria esmagadora sofreu em silêncio ao longo de uma década. Em média demoraram dez anos a contar o que viveram e em 43% dos casos chegados à comissão, era a primeira vez que denunciavam. “Num número muito significativo de casos, tal facto decorreu durante décadas, num convívio interior de solidão absoluta”, constata a comissão.
O facto de as vítimas demorarem cerca de dez anos a falar levou mesmo a comissão a pedir que o prazo de prescrição dos crimes de abuso sexual passe dos atuais 23 anos para os 30, o tempo médio de uma vítima perceber que foi alvo de um crime de conseguir falar. Proposta que implicará também uma maior celeridade no processo judicial.
“Só aos 21 anos desabafei sobre as coisas que me aconteceram no Seminário”, relato de uma vítima, nascida na década de 50.
O medo e a vergonha que as vítimas sentem revela-se ainda nos números que indicam que só em 5,3% dos casos as vítimas partilharam o que viveram com membros do clero — e que só houve queixa efetiva em 11,7% dos casos. “A Igreja Católica, como instituição, parece não ter sido encarada pela vítima como um lugar seguro ou confiável para se abordar o tema”. Mas também as autoridades judiciais parecem não ser uma alternativa: só 4,3% das situações de abuso resultaram em processos nos tribunais.
“Alguns familiares e amigos já me ouviram falar vagamente sobre este assunto, sem pormenores, com algumas hesitações. Parte do meu problema é este — éramos crianças inocentes, ingénuas, sem capacidade para realmente perceber o que acontecia naquele sítio, com aquela pessoa e afinal, mesmo depois de compreender e entender a medida do que todos sabíamos, todos escolhemos não falar”, lê-se no testemunho de uma vítima nascida na década de 70.
Dos 512 testemunhos, a comissão conseguiu apurar, porém, 4.303 outras potenciais vítimas de abusos sexuais por membros da Igreja. É que, segundo explicam os investigadores, nalguns relatos foram indicadas outras vítimas presentes que foram contabilizadas. Nalguns casos, porém, foi feita uma estimativa do número de alunos numa turma ou num grupo de catequese que determinada vítima apontou também ter sido vítima. “Delineámos um exercício de quantificação. Nos testemunhos em que as respostas são precisas e específicas, contabilizámos o número exato de pessoas mencionadas. Nos restantes, usámos uma série de equivalências que pondera as respostas de forma muito conservadora”, justifica a comissão, que contabiliza assim as 4.815 vítimas.
Como a Comissão calculou as 4.815 potenciais vítimas de abusos
E os abusadores?
Da análise agora conhecida não se contabilizou, porém, o total de agressores em causa com uma justificação: nem todas as vítimas indicaram a identidade dos seus agressores e era difícil contabilizar. Ainda assim foi possível estabelecer uma espécie de perfil para estes agressores: 96,9% são do sexo masculino, quase não existindo relatos de agressões sexuais por parte de mulheres, entre os 31 e os 50 anos. “Será sempre uma pessoa a necessitar de um projeto adequado e duradouro de suporte terapêutico e inibição continuada de proximidade isolada com crianças ou adolescentes”, lê-se, uma informação que a comissão, aliás, diz que deve ser tida em conta pela Igreja para prevenir este tipo de crime.
Em 77% dos casos estes agressores eram efetivamente padres, seguindo-se em 9,6% dos casos professores de colégios religiosos e depois (4,5%) membros de ordens religiosas diversas. Em quase metade dos casos, os agressores eram já conhecidos das vítimas.
A Comissão constatou que dos casos denunciados não foi tomada qualquer medida de afastamento dos agressores (65,8%). “O que a deixa de novo em situação de desamparo e, como já visto, aumenta o risco de o mesmo adulto prosseguir de forma incólume com a sua atividade criminosa”.
A lista, os arquivos e uma nova comissão: o que vem aí no futuro
Desde o início do trabalho da comissão independente, os elementos da equipa liderada por Pedro Strecht fizeram questão de afirmar e repetir várias vezes que a sua missão era mais bem descrita com a palavra “estudo” do que com a palavra “investigação”. Tratava-se de um trabalho essencialmente académico e científico, com vista à compreensão da realidade dos abusos de menores por membros do clero e do encobrimento desses crimes por parte da hierarquia. Quanto a este objetivo central, a missão terá sido cumprida: o relatório final ilustra de modo eloquente como centenas de crianças foram vítimas de abusos sexuais por elementos do clero ao longo da segunda metade do século XX, com o pico dos casos a recair entre as décadas de 60 e 80 e uma queda acentuada nos últimos anos, acompanhando as novas políticas de proteção de menores, quer na Igreja, quer no Estado.
Mas, também desde o início, outro objetivo juntou-se ao trabalho da comissão: o da justiça, que passa necessariamente pela punição dos abusadores e pela indemnização das vítimas.
Contudo, no que toca aos perpetradores, o relatório inclui pouca informação sobre o modo como os resultados da investigação poderão ser usados para punir os abusadores. Além dos 25 casos enviados para o Ministério Público (que dizem respeito a casos ainda não prescritos), a Comissão Independente recolheu também dados sobre todos os abusadores que ainda estão no ativo, para agora fazer uma lista que deverá estar pronta no final do mês e vai ser entregue à Igreja e ao Ministério Público. A decisão de fazer esta lista à parte do relatório final e de a entregar aos bispos e ao MP foi tomada após uma longa ponderação, disse a Comissão Independente, com o objetivo de salvaguardar a identidade das vítimas (que poderia ser descoberta com uma eventual divulgação da identidade do abusador) ao mesmo tempo que se combate o alto risco de reincidência dos abusos de menores — algo que os psiquiatras Pedro Strecht e Daniel Sampaio colocaram como prioridade desde o início.
Como se lê no relatório, a comissão confrontou-se com uma questão vital, devido aos casos que já prescreveram mas que dizem respeito a suspeitos ainda vivos e no ativo: “Saber se, sem crime a investigar, cabe ainda ao Ministério Público o poder de averiguar da eventual atividade criminosa de alguém sobre quem impende a suspeita de, no passado, ter infringido, apenas com o fundamento de que, a confirmar-se tal, será de prever o prosseguimento, no presente, de idênticas condutas.”
Esta lista deverá chegar nas próximas semanas às mãos dos bispos e do Ministério Público — e é aqui que se abre um dos “múltiplos princípios” que Pedro Strecht espera que sejam motivados pelo relatório. No caso dos bispos, o presidente da CEP já garantiu que “cada caso é um caso”, mas que em todos eles será aberto o devido processo canónico. Nos casos em que os crimes forem dados como provados, o desfecho mais provável será a demissão dos padres abusadores. Mas os nomes vão chegar também ao Ministério Público — a que caberá a decisão de investigar ou não aqueles suspeitos em busca de eventuais crimes mais recentes e, por isso, não prescritos. Segundo disse Pedro Strecht numa entrevista à SIC Notícias na noite desta segunda-feira, o número de abusadores no ativo deverá ultrapassar os 100.
Noutros países onde foram feitas investigações deste género, a publicação dos relatórios foi, mais do que um ponto de chegada, um ponto de partida para a mudança das políticas: basta pensar em casos como os da Irlanda, dos EUA, da Austrália, da Alemanha, de França ou de Espanha. Em vários destes países, a publicação dos relatórios finais das comissões levou à demissão de bispos acusados de encobrimento, a reuniões de urgência no Vaticano e até a intervenções do Papa. O relatório português, não tendo incluído dados pormenorizados sobre a identidade dos bispos que contribuíram para o encobrimento dos abusos, poderá ter um impacto limitado nessa ordem — embora as transcrições de dezenas de testemunhos que constam do relatório apontem para um problema sistémico de encobrimento por parte da hierarquia eclesiástica portuguesa.
Garantidamente, o conteúdo do relatório português já chegou, ou chegará muito rapidamente, ao Papa Francisco: na noite de segunda-feira, o portal de notícias do Vaticano já tinha uma referência à publicação do documento; por outro lado, o padre jesuíta Hans Zollner, membro da Comissão Pontifícia para a Proteção de Menores e um dos principais conselheiros do Papa Francisco para a questão dos abusos de menores, esteve na primeira fila do auditório da Gulbenkian onde o relatório foi apresentado. A audiência geral da próxima quarta-feira do Papa Francisco, no Vaticano, será a primeira intervenção pública do chefe da Igreja Católica depois da publicação do documento — e não é de excluir a possibilidade de Francisco se referir à realidade do país nessa ocasião.
Naturalmente, o modo como a Igreja Católica vai lidar com a informação que consta do relatório vai depender de bispo para bispo — e, em última análise, de fiel para fiel. O documento publicado na segunda-feira revelou várias tensões entre o grupo de trabalho e os bispos portugueses. Por um lado, a comissão deixou múltiplas críticas à atuação da Igreja Católica, lamentando os esforços para “proteger a reputação da instituição” visíveis em alguns bispos e criticando os atrasos no acesso aos arquivos. Por outro lado, o relatório inclui várias citações das entrevistas da comissão com os bispos portugueses — e é possível encontrar palavras muito duras de três deles contra o trabalho da equipa.
Um dos desafios da CEP para os próximos meses — já há uma Assembleia Plenária extraordinária marcada para março, só para debater o relatório — será tentar encontrar posições comuns entre os bispos, que vão do mais conservador ao mais progressista, para reagir a este documento, nomeadamente para dar seguimento aos vários desafios lançados pela Comissão Independente no que toca à punição dos agressores, à indemnização das vítimas, à continuação da investigação histórica e à prevenção dos abusos e proteção dos menores.
No último capítulo do relatório, dedicado às notas finais e às recomendações, a comissão independente repete alguns dos avisos deixados ao longo do documento. “Muitas daquelas pessoas abusadoras, que assim foram referenciadas, ainda permanecem em atividade eclesiástica”, diz a comissão, apontando para a necessidade de a Igreja Católica investigar e punir os agressores, como modo fundamental de zelar pelo interesse das vítimas. “Para estas pessoas abusadoras não basta um acompanhamento espiritual”, tinha dito na conferência de imprensa Daniel Sampaio, deixando um alerta contra a prática milenar da Igreja. “O tratamento mais importante dos abusadores é uma justiça célere e eficaz.”
Por esse motivo, a primeira recomendação da comissão à Igreja Católica é a criação de uma nova comissão, “diferente na sua composição, com novo estatuto, incluindo psicólogos, assistentes sociais, terapeutas familiares, psiquiatras, juristas, sociólogos e outros, e com novos objetivos, prosseguindo, a partir dos conhecimentos agora adquiridos, o propósito de assegurar um canal de comunicação aberto à receção de denúncias ou testemunhos de abusos sexuais de crianças por membros da Igreja Católica portuguesa”.
“Composta por membros externos e membros internos, com os primeiros em maioria, à Comissão competiria receber os dados que chegassem ao seu conhecimento, validá-los e remetê-los, consoante os casos, tanto ao Ministério Público, como às estruturas de investigação e julgamento da própria Igreja, nos termos das normas do Direito Canónico em vigor”, acrescenta o relatório final.
Essa nova comissão deveria, diz a equipa de Strecht, estabelecer um protocolo com o Ministério Público para operacionalizar a transmissão direta dos casos para as autoridades civis — além de que deverá servir ainda para decidir sobre eventuais indemnizações a pagar às vítimas.
A comissão independente recomenda ainda à Igreja que promova uma outra cultura, capaz de um “reconhecimento inequívoco” dos abusos, que lance uma publicação anual sobre o lugar da criança na Igreja, que combata o clericalismo, que cumpra efetivamente a “tolerância zero” e a tomada de uma série de medidas concretas para proteger as crianças nos ambientes eclesiásticos.
A comissão pretende igualmente que a Igreja deixe de associar os abusos de menores a uma quebra do sexto mandamento — para que os abusos sejam vistos como crimes contra as crianças e não contra a Igreja — e que repense “todo o tema da sexualidade, enquanto matéria a tratar aos vários níveis no interior da Igreja e ligando-a a princípios e estratégias próprias da doutrina social da Igreja“.
Outro dos pedidos da comissão é a materialização às vítimas em “algo que simbolicamente perdure no tempo enquanto espaço de evocação das pessoas vítimas”, mude as lógicas de formação dentro da Igreja Católica e crie estratégias para acompanhar futuras vítimas, incluindo a criação de uma linha telefónica dedicada.
Entre as recomendações mais controversas da comissão está a revisão do sigilo de confissão em matéria de crimes sexuais contra crianças — um debate que os bispos portugueses já disseram que não pretendem sequer abrir.
Abusos na Igreja. Comissão independente recomenda à Igreja uma revisão do segredo de confissão
Finalmente, a Igreja Católica portuguesa recebeu esta segunda-feira da comissão independente um outro caderno de encargos: organizar melhor os seus arquivos, para que possam ser estudados e para que contribuam para iluminar melhor o problema dos abusos de menores ao longo da história. O relatório mostra que uma parte muito considerável das dioceses portuguesas têm os seus arquivos mal organizados, sem ferramentas de pesquisa disponíveis e sem fichas pessoais dos sacerdotes — além de ter políticas muito restritas para o acesso aos arquivos.
Essa foi, aliás, uma das principais críticas apontadas pela comissão à Igreja Católica. É que, embora os investigadores especializados tenham sido mandatados “pela Comissão Independente para iniciar a pesquisa a partir de 29 de março de 2022, o debate interno por parte da Igreja Católica portuguesa relativamente às modalidades de abertura dos seus arquivos levou a que o contacto do GIH [grupo de investigação histórica] com a documentação só se tenha iniciado a partir do início de outubro”. Na altura, o Observador deu detalhes sobre o modo como a resistência de alguns bispos e a interferência do Núncio Apostólico em Lisboa tinham atrasado o acesso da comissão aos arquivos, que só se desbloqueou com a intervenção direta do Vaticano.
“Deste modo, o GIH realizou apenas uma primeira abordagem arquivística a um fenómeno pouco estudado em Portugal. Mesmo assim, este estudo de carácter exploratório permitiu gerar conhecimento significativo sobre o tema e certamente irá abrir caminho para investigações futuras com um maior alcance, profundidade e grau de sistematização”, lê-se no relatório.
Na conferência de imprensa, os elementos da comissão alertaram que, devido aos atrasos, podia considerar-se, na prática, que só agora é que seria possível dar início ao trabalho de pesquisa nos arquivos. É mais um recado a que a Igreja Católica terá de dar seguimento, se quiser cumprir as recomendações da comissão que constituiu em 2021.