Não faz sentido justificar a saída dos EUA do Afeganistão falando numa “guerra impossível de vencer” – os EUA têm soldados em inúmeros países, há muito mais tempo, desde a Coreia do Sul até ao Japão (passando pela Europa), lembra o académico norte-americano Thomas Barfield, presidente do American Institute for Afghanistan Studies que começou nos anos 70 a fazer estudos antropológicos no país.
Em entrevista por Skype ao Observador, Barfield sublinha: no Afeganistão “não estavam mais do que 2.500 soldados americanos, há muito que só soldados afegãos lá morriam e gastava-se, ali, alguns milhares de milhões de dólares por ano? Isso não é nada, é como pagar uma apólice de seguro para não ter problemas“.
Agora, com uma saída “mal planeada”, Joe Biden “criou um problema onde ele não existia“, revelando instintos “bastante fracos para a política externa”, lamenta o autor de obras como “Afghanistan: A Cultural and Political History“. O que teria feito Trump? Nunca saberemos, diz Barfield, suspeitando que se o republicano tivesse vencido os EUA iriam continuar no Afeganistão, de alguma forma, porque Trump tinha um “sexto sentido quase reptiliano” para coisas que (lhe) podiam correr mal.
Algumas pessoas já tinham avisado que o poder no Afeganistão poderia voltar para as mãos dos talibãs, alguns meses após a saída formal dos EUA (prevista para até 11 de setembro deste ano). Mas, conhecendo o país como conhece, ficou surpreendido por ver essa tomada de poder acontecer até antes da saída dos norte-americanos?
Fiquei surpreendido com a rapidez com que aconteceu, confesso. Mas, entretanto, lembrei-me que aconteceu exatamente o mesmo com os talibãs, em 2001. Nessa altura, quando os americanos entraram, com menos de 400 soldados no terreno, muita gente dizia que a entrada seria muito difícil, que seriam meses ou anos de guerra… E o que aconteceu foi justamente o contrário: em menos de 10 semanas os talibãs desapareceram – e não houve batalhas decisivas. O Afeganistão não é uma terra de grandes batalhas decisivas: as pessoas avaliam quem é que vai vencer e quem é que vai perder – e as transições acontecem rapidamente. No Afeganistão, a perceção de poder é o poder, em si mesmo.
Mas o que aconteceu, na sua leitura, para que os talibãs tenham avançado já?
Tudo isto foi desencadeado pelo facto de os americanos terem deixado de prestar apoio aéreo. Nos últimos anos vivia-se um impasse, um equilíbrio precário, porque cada vez que os talibãs apareciam em grandes números, graças ao apoio aéreo era sempre possível destruí-los imediatamente. Uma caravana de carros cheios de talibãs às portas de Cabul? Boa sorte… os americanos mandavam para lá meia dúzia de drones e davam logo cabo deles. Em princípio, esse estado de coisas poderia ter continuado eternamente… Porém, assim que os americanos começaram a sair das bases aéreas, os afegãos ficaram praticamente sem apoio e com muito poucos meios aéreos de combate.
E, do ponto de vista político, o que levou o presidente (Ashraf) Ghani a sair?
Ghani foi desbaratando o seu apoio, internamente, ao longo do tempo – inclusivamente com os “senhores da guerra” regionais. Logo em 2009, penso eu, quando ele se estava a candidatar pela primeira vez, Ghani era visto como um tecnocrata, o tipo ideal aos olhos de entidades como a embaixada, o Banco Mundial, era exatamente o tipo de homem de que o Afeganistão precisava. Mas eu perguntei a um responsável da NATO com quem falei o que é que os militares pensavam de Ghani – e ele disse-me que o sentimento geral era de que ele não era a pessoa certa. E porquê? Ele respondeu-me: “Ouça… conhece alguém que esteja disposto a morrer por Ashraf Ghani?”. Foi logo aí que percebi que o Afeganistão precisava de um Winston Churchill, mas acabou por ter um Neville Chamberlain.
Mas os EUA não perceberam isso? Não podiam ter “proporcionado” que fosse para lá outra pessoa?
Bem… Isso foi o que os russos fizeram em várias situações, os britânicos também – sempre quiseram líderes fortes neste tipo de situações. Mas os EUA acreditavam que tinham criado uma democracia e que os afegãos elegeram Hamid Karzai, primeiro, e, depois, Ashraf Ghani. E, portanto, não tinham nada que interferir. Mas, aos olhos dos afegãos, o que acontecia na prática era os EUA a decidirem quem era o presidente – que eles votavam em quem os americanos escolhessem. Devia ter sido muito claro para os EUA que se a ideia era sair, então era necessário um líder diferente, não um tecnocrata do Banco Mundial que passou 30 anos a viver fora do país. E isso ficou demonstrado, porque ele pôs-se a andar quando muitas das pessoas do governo continuam no país a negociar com os talibãs, arriscando a própria vida. No Afeganistão, Ghani é um “homem sem honra” – é o pior que se pode chamar a alguém.
É justo dizer que o trabalho dos últimos 20 anos foi um perfeito desperdício? O que aconteceu nos últimos dias atesta isso?
Penso que não. A sociedade afegã mudou muito, a economia mudou muitíssimo, a tecnologia entrou no país – toda a gente tem um smartphone. Há 20 anos, essa ligação ao mundo exterior não existia. O problema foi que se tentou preservar um sistema político que é, essencialmente, uma monarquia disfarçada de democracia. É curioso que os EUA são a república federal mais antiga do mundo, mas quando vamos para o exterior adoramos autocracias. E fala-se em “exportar democracias” mas aquilo não era democracia nenhuma, a formação de partidos continou a ser proibida, nos mesmos termos que foram definidos pelo rei nos anos 60. Ora, eu acredito que se o Massachusetts e o Mississippi conseguem viver no mesmo país, o Afeganistão consegue certamente ter um sistema que não se baseie em ter Ashraf Ghani a nomear cada um dos governantes regionais e distritais. Quem conhece o Afeganistão sabe que isso nunca iria funcionar naquele país, sobretudo com um governo central corrupto e incompetente e um líder sem carisma.
E as críticas a Biden são justas, na sua opinião?
São. Porque se um presidente norte-americano quer sair dali, tem de planear tudo ao pormenor e compreender que dificilmente as coisas se vão manter estáveis no contexto de equilíbrio precário que já descrevi. Não faz sentido dizer que é preciso sair porque aquilo é uma “guerra sem fim”. Ouça… os EUA têm tropas na Coreia (do Sul) há mais de 70 anos. Isso é uma guerra que foi ganha? Claro que não, estão ali para garantir que a Coreia do Norte não os invade, como sempre estiveram. A Coreia do Sul era um país tão pobre quanto era o Afeganistão, no final daquela guerra [da Coreia], e veja o que é a Coreia do Sul hoje. Esta argumentação é ridícula: os EUA têm militares na Europa, no Japão… Qual é o problema de terem 2.500 tropas no Afeganistão? Não é assim tanto…
Esses 2.500 militares eram importantes, sobretudo quando as tropas locais não querem lutar, como disse o próprio Biden?
Não faz sentido. Isso talvez seja verdade hoje, mas não podemos esquecer que nos últimos dois anos as tropas locais perderam uns 50 ou 60 mil soldados… Americanos? Não morreu ninguém, praticamente… Há muito que a mortandade se transferiu para os soldados locais. Claro que, provavelmente, era uma guerra impossível de vencer, mas não tenho dúvidas de que seria possível manter aquele equilíbrio que existia durante mais tempo – com muito poucas mortes de militares norte-americanos. É certo que, a fazer fé nas sondagens feitas nos EUA, claro que as pessoas preferiam sair dali, mas repare… nem sequer foi tema nas últimas eleições… Não entendo onde é que estava o ganho político assim tão significativo de sair dali… 2.500 soldados e alguns milhares de milhões de dólares por ano? Isso não é nada, é como pagar para ter uma apólice de seguro, para não ter problemas.
O que acha que teria acontecido se Trump tivesse vencido estas últimas eleições, em relação ao Afeganistão?
É uma questão interessante, porque ele nunca chegou a puxar o gatilho para mandar toda a gente para casa. Acho que foi porque o tipo tem um sexto sentido para o perigo, um instinto quase reptiliano. A cabeça dele funcionava assim: “E se faço isto e a coisa corre mal… Vão fazer chacota de mim, vão chamar-me ‘loooooser‘”. Mesmo no final do seu mandato, penso que lhe “cheirou” que a coisa não ia correr bem, pelo que não me surpreenderia se continuasse a querer pagar esse “seguro”.
Joe Biden pensa de forma diferente…
Lembre-se que Biden, quando era vice-presidente de Obama, se opôs ao chamado “surge afegão” [em que, em 2009, se enviaram mais dezenas de milhares de tropas para tentar acabar com a resistência dos talibãs]. Na altura, toda a gente ignorou Biden, que não queria enviar mais tropas e preferia uma abordagem mais cirúrgica e “teleguiada”. Agora ele é Presidente, já não podem passar por cima dele. Portanto, até certo ponto penso que Biden quis, um pouco, marcar uma posição e fazer um ajuste de contas. ‘Agora vou fazer as coisas à minha maneira’, terá pensado. Mas bastava ter preparado para sair em dezembro, quando está um frio gelado, já não estávamos em plena “época de combate”.
Foi para fazer um brilharete com o vigésimo aniversário do 11 de setembro?
Sim, o que também é ridículo. Eu nem sequer quereria relembrar as pessoas dessa data, não é um aniversário que se queira celebrar. Nós não celebramos o Pearl Harbor, celebramos o dia da vitória na Europa! Tem sido um ótimo Presidente em termos internos, na minha opinião, mas sempre achei que os instintos de Biden sobre política externa eram bastante fracos. Nunca se deve criar um problema onde ele não precisa de existir – e foi exatamente isso que ele fez. Tanto quiseram evitar que se repetisse o que aconteceu no Vietname que o que acabou por acontecer foi exatamente a mesma coisa – veja as imagens! São ainda piores!
Nesta fase, os talibãs parecem querer montar uma narrativa mais moderada, de que não irão violar os direitos das mulheres, por exemplo. Faz sentido acreditar nisso?
Não. Estou disposto a ver o que acontece, mas alguns dos meus amigos afegãos dizem-me que eles já estão a mover esforços para localizar algumas pessoas, para as matar. Não faz sentido esperar que os talibãs façam outra coisa que não aquilo que eles sempre fizeram. Por outro lado, é do interesse deles sinalizar alguma moderação: estamos a falar de um país que há 200 anos vive de subsídios, e se a Europa e os EUA deixarem de mandar dinheiro para lá, quem é que vai financiar o país? O Paquistão, um país falido? A China não dá dinheiro a ninguém…
Não dá, mas compra recursos naturais… E parece que no Afeganistão há muitos, designadamente lítio…
Para retirar esses minerais é preciso infraestruturas. E para os transportar também — linhas de comboio, estradas, não existe nada disso. O potencial parece existir mas estamos a falar disso há 20 anos e ainda ninguém conseguiu tirar de lá nada. E mesmo que os chineses digam: “Okay, nós damos-vos algumas coisas em troca dos minerais, no Paquistão engenheiros chineses estão a ser alvejados por grupos associados aos talibãs. Porque são infiéis, que estão a “roubar os nossos recursos”. E infiéis que, ainda por cima, comem carne de porco. Mesmo com toda a proteção militar que existe, ainda há pouco tempo rebentaram um carro no Paquistão cheio de engenheiros chineses… Os chineses não gostam nada disso.
Conhece bem aquele povo, o que está a passar pela cabeça daqueles milhares de pessoas que estão a tentar desesperadamente entrar em aviões, para fugir dali?
Sim, comecei a ir para lá quando o rei foi deposto, em 1973… há quase 50 anos. É simples, têm medo que os talibãs vão fazer exatamente o mesmo que fizeram nos anos 90. Que foi simplesmente desatar a abater pessoas. Muitos sabem que não têm qualquer futuro naquele país: alguém que tenha qualificações mínimas sabe que tem de sair dali, com os talibã no poder ninguém acredita que aquilo se irá transformar no “novo Dubai”. E o Afeganistão tem uma população muito jovem, a maioria das pessoas nasceu já depois de 2001 – isso é uma dificuldade para os talibãs, porque estas pessoas cresceram numa situação diferente. Não é como tentar impor-se a pessoas com mais idade, com famílias, isso é mais fácil… Aqui é muito diferente: é uma sociedade composta por jovens, com a vida quase toda pela frente, e que acreditam que as suas vidas vão ser arruinadas por um bando de idiotas.
Acha que uma guerra civil é um risco, no horizonte próximo?
Claro que há esse risco. Eu até acharia que a coisa mais lógica a acontecer seria haver uma guerra civil, a dada altura, naquele país, até mesmo antes de os EUA saírem. Para já, os talibãs foram inteligentes ao começar a sua investida no norte do país, onde o sentimento anti-talibã é mais forte. Mas é um país muito montanhoso, não é improvável que se gerem focos de resistência aos talibãs e aí, sobretudo se eles não souberem gerir bem esta situação, é possível que isto acabe numa guerra civil.
Um relatório recente da ONU indicou que os talibãs e a Al Qaeda continuam a ter uma ligação próxima. Qual é que a sua leitura sobre essa matéria, não só em relação à Al Qaeda mas, também, o autoproclamado Estado Islâmico?
Sim, eles nunca quebraram a sua ligação com a Al Qaeda. Isso é claro. Até acho que é possível que a Al Qaeda mude o seu quartel-general do Paquistão para o Afeganistão. É claro que se cria ali um porto de abrigo para os terroristas e para a Al Qaeda em particular – porque os talibãs não têm qualquer controlo sobre o que é que está a ser preparado, não souberam de nada antes de ser feito o 11 de setembro. O Estado Islâmico é um pouco mais complicado, porque na verdade os talibãs e o Estado Islâmico lutam um contra o outro. Os talibãs sempre foram jihad de um país só, não gostam de ir morrer nas guerras dos outros países. Outros muçulmanos vão para o Afeganistão morrer pela sua guerra [a dos talibãs] mas eles não costumam devolver o favor.
É preocupante, do ponto de vista do Ocidente? Acha que pode ser necessário voltar a entrar lá?
Teria de acontecer algo muito significativo, diria… Mas, sim, é preocupante que o Afeganistão volte a ser o porto-de-abrigo onde os terroristas são deixados à vontade, sem que seja tão fácil obter dados sobre o que andam a preparar. Foi, aliás, por essa razão que lá entrámos: ninguém se importava que os talibãs andassem a maltratar o povo afegão, só fomos para lá para poder controlar o perigo que poderia vir para nós. Portanto, sim, é real – muito real – o perigo que pode voltar a formar-se ali.