“Imaginem que era possível deixarem de ser LGBT… mudariam?” A questão foi deixada em 2006 no fórum da Rede Ex Aequo, uma associação de jovens LGBTI e apoiantes, com sede em Lisboa, e desde então foi lida mais de 183 mil vezes — e teve várias centenas de respostas. Uma delas, em agosto do ano seguinte, foi dada por uma utilizadora, ao que tudo indica ex-aluna de Pedro Choy, o mais célebre rosto da medicina tradicional chinesa (MTC) em Portugal, e dizia que, através da acupuntura, seria “possível ‘reverter’ a homossexualidade”.
“Resulta de um desvio energético que pode ser corrigido”, começou por explicar, para logo a seguir partilhar o episódio da pretensa “terapia” (aspas da própria) a que anos antes Pedro Choy teria submetido um rapaz de 16 anos, nessa altura já um homem adulto, casado e com filhos, “a pedido da mãe”.
“Depois de andar a vasculhar o raio dos apontamentos, a explicação dada pelo Choy na altura foi: ‘Do ponto de vista da MTC, não é uma doença psicológica nem psiquiátrica. É uma doença dos Meridianos Curiosos, sobretudo da relação Chong Mai/Du Mai e do Ren Mai. Pensa-se que o desarranjo precoce destes meridianos facilita o desenvolver de uma personalidade com tendência a homossexual. Significa também que um diagnóstico precoce da homossexualidade poderá ter tratamento’”, escreveu a internauta, para depois acrescentar que, na mesma aula em que teria partilhado a pretensa cura, na altura na Associação Portuguesa de Acupuntura e Disciplinas Associadas (APA-DA), Pedro Choy teria feito questão de garantir “não ter nada contra homossexuais e estar apenas a referir a visão da MTC em relação à homossexualidade”.
Agora, em janeiro de 2022, quase 15 anos depois desta partilha, outros antigos alunos de Pedro Choy no curso ministrado na APA-DA na primeira década do primeiro milénio resolveram denunciar publicamente a situação e contaram à revista Visão que não terá sido apenas numa mas em várias aulas que Pedro Choy, proprietário de 23 clínicas de acupuntura de norte a sul do país e da entretanto fundada Universidade de Medicina Tradicional Chinesa, terá feito referência ao caso do “rapaz de 16 anos” e à sua alegada reversão sexual.
Por surgirem justamente numa altura em que corre em tribunal o processo de difamação que interpôs contra o médico João Júlio Cerqueira, responsável pelo site de divulgação científica Scimed, Pedro Choy diz que não tem dúvidas de que as denúncias estão relacionadas com este embate judicial — que é apenas o mais recente dos protagonizados ao longo dos últimos anos pela dupla e que terá alcançado o zénite em abril de 2019, no debate Prós e Contras, da RTP, em que Choy participou como representante das terapias não convencionais e Cerqueira deu a cara pela Ordem dos Médicos.
Numa altura em que está prestes a ser conhecida a sentença — o terapeuta acusa o médico de 18 crimes de difamação e reclama 80 mil euros de indemnização, estando a leitura da pronúncia marcada para as 9h15 desta sexta-feira, dia 14 de janeiro, no Campus de Justiça, em Lisboa —, Pedro Choy garante ao Observador que todas as acusações que agora lhe são feitas são falsas.
Admite que, numa aula apenas, falou sobre o “apoio emocional” que prestou a “um jovem com dúvidas” sobre a sua orientação sexual, numa consulta que situa em 1988, há 34 anos. Sobre o jovem em questão, que hoje terá ou estará prestes a completar 50 anos, o terapeuta e empresário não quis avançar quaisquer outros detalhes. Mas garantiu que “nunca na vida” usou o “termo reconversão” e reiterou não ter nada contra homossexuais — como aliás já ressalvava a publicação feita em 2007 no fórum da Rede Ex Aequo. “Sou contra o tratamento da homossexualidade. E acho muito triste ser publicamente condenado pelo contrário do que penso”, disse ao Observador, para a seguir garantir que nunca assegurou este tipo de “tratamentos”.
“Não lhe parece absurdo que, se eu tratasse homossexuais, isso não fosse público e até anunciado pelas minhas clínicas? As minhas clínicas sempre afixaram casos de sucesso”, argumentou, numa conversa mantida através de mensagens escritas. “A pergunta mais frequente que respondi a jornalistas é: o que eu trato e o que a MTC trata. Nunca respondi homossexualidade. Mas já respondi hirsutismo (mulher com pelos a mais); queda de cabelo androgenética (ocorre por alterações da testosterona) e outras do género.”
Questionada sobre o assunto, a ILGA Portugal – Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo disse ao Observador nunca ter recebido qualquer denúncia visando o terapeuta ou quaisquer práticas de conversão sexual por meio da medicina tradicional chinesa.
Transcrição de aula revelada 19 anos depois: “A primeira vez que ouvi fiquei completamente embasbacado”
Apesar de não ter tido resposta ao e-mail enviado para a ex-aluna que expôs o caso em 2007, o Observador chegou à fala com o antigo aluno, do curso 2003-2008, que agora tornou pública a situação. Apesar de já não trabalhar na área das terapias não convencionais, prefere manter o anonimato mas garante a veracidade dos relatos das várias pessoas que, nos últimos dias, se levantaram para dizer que, pelo menos nessa altura, Pedro Choy terá ensinado que a homossexualidade, face a medicina tradicional chinesa, seria uma patologia — que ele pelo menos uma vez teria tratado e curado.
“A primeira vez que ele referiu isso foi no grande auditório da Faculdade de Medicina Dentária da Universidade de Lisboa”, explicou ao Observador, situando o episódio num domingo de 2003. “O Pedro Choy dava sempre as duas últimas aulas do ano letivo — as aulas de revisão — e ocasionalmente uma ou outras duas por ano. Juntava as três turmas, do Porto, de Coimbra e de Lisboa, e dava as aulas em locais alugados para o efeito, chegou a ser no Hotel Altis, dessa vez foi no grande auditório. A primeira vez que ouvi fiquei completamente embasbacado. Não tinha confiança com absolutamente ninguém e nem pude comentar. O auditório é enorme e estava cheio. Ninguém se insurgiu. Imagine um auditório desses cheio, a probabilidade de lá haver alguém homossexual era muito alta. Só posso imaginar o que outras pessoas terão sentido e pensado ‘Olha, afinal sou doente’.”
De acordo com este ex-aluno da Associação Portuguesa de Acupuntura e Disciplinas Associadas, na altura todas as aulas eram gravadas, sendo disponibilizadas, geralmente no dia seguinte, as suas “transcrições ipsis verbis” numa plataforma de e-learning. O documento em PDF de 33 páginas que disponibilizou ao Observador, com o título “Aula 2 Revisões”, é uma súmula dos conceitos mais básicos da medicina tradicional chinesa, “matéria de 1º ano”, analisou outro terapeuta, que também não quis ser identificado e que nunca se cruzou com Pedro Choy, nem enquanto estudante nem profissionalmente.
Por entre noções de Yin e Yang, leis fisiológicas, leis patológicas e classificação de meridianos e transporte de energias, surgem as referências à homossexualidade como uma das “várias patologias relacionadas com os Meridianos Curiosos” em que “existe uma perturbação da relação masculino/feminino, em termos hormonais”. “A medicina chinesa considera que a homossexualidade (do ponto de vista lógico) é uma doença e, ainda por cima, que tem tratamento. Ora bem, eu sei que isto choca as pessoas, sobretudo as que são homossexuais. Volto a dizer que isto nada tem que ver com aceitar ou não aceitar a homossexualidade. Eu não tenho nada contra as pessoas que têm este tipo de problemas, assim como não tenho nada contra quem sofre de insónias, nem contra quem sofre dos calos, ou do estômago, ou dos rins…”, pode ler-se na página 30, no sub-capítulo “Pontos-Chave ou Pontos de Ligação”.
Depois, logo a seguir, surge o caso concreto a que, de acordo com o ex-aluno ouvido pelo Observador, Pedro Choy terá feito referência repetidas vezes ao longo dos cinco anos de curso.
Tratei um caso…um caso curioso de um jovem de 16 anos que me foi trazido pela mãe, que me disse andar muito preocupada porque achava que o filho não gostava de raparigas. Tivemos uma conversa, muito séria, acerca desse assunto e ele confirmou-me que realmente se interessava por homens e não por mulheres. Eu, mais uma vez sem qualquer juízo de valor, disse-lhe que, como indivíduo, aceitava todas as opções; as pessoas têm o direito de ter as suas opções, sejam elas de carácter religioso, político ou sexual, desde que isso não seja mau para os outros”, pode ler-se na alegada transcrição integral da aula. “Mas, disse-lhe também, que estamos cá todos a tentar de alguma forma ser felizes e que este não é um caminho muito feliz, porque ainda que eu possa não ter nenhum juízo de valor negativo em relação a este assunto, a maioria da população tem e as pessoas acabam por ser segregadas e sofrer com isso. Na sequência desta conversa, ele aceitou ser tratado. E ainda lhe disse o seguinte: hoje tu tens predileção por homens e sentes-te bem assim, mas é verdade que se mudares de predileção também te vais sentir bem, com a vantagem, para ti, de que não vais ser incomodado por ninguém. Ele aceitou ser tratado e correu bem… Penso que correu bem… Pelo menos é casado e pai de família…Penso que correu bem, porque parece que isto não quer dizer nada… (risos).”
No mesmo documento, há ainda uma explicação detalhada da terapia a que o rapaz teria sido submetido: “O ideal é nós tirarmos a energia de onde ela está a mais e enviá-la para onde ela está a menos e assim promover o seu equilíbrio. Consegue-se a mesma coisa através dos Pontos-Chave dos Meridianos Curiosos, ou seja, numa pessoa que sofra deste tipo de patologia, por exemplo naquele rapaz, eu fiz 62V e 3IG, porque o Du Mai é o meridiano da masculinidade. Portanto, promovemos uma masculinização. Numa rapariga que sofra de acne e excesso de pelos (o que é frequente), vocês têm que feminilizá-la… ou devem, pelo menos… Podem fazê-lo estimulando o Ren Mai e o Chong Mai: 4Rt, 6MC,6Rn,7P.”
A defesa de Pedro Choy: “Nunca foi dito isso em aula”
Ao Observador, Pedro Choy garante que nunca fez transcrições das suas aulas e que não poderá ser responsabilizado por documentos escritos por terceiros. Francisco Fernandes, que foi um dos seus primeiros alunos, entre 2002 e 2007, e que hoje é um dos responsáveis pela universidade que entretanto fundou, em substituição da Associação Portuguesa de Acupuntura e Disciplinas Associadas, diz que é falso que alguma vez as aulas tenham sido gravadas e depois transcritas e disponibilizadas aos alunos. “Naquela altura nós tirávamos apontamentos e havia sebentas, não eram cedidas transcrições”, assegura, para depois partilhar uma recordação assaz diferente dos factos que terão ocorrido na altura.
“Na altura havia um adolescente que tinha um problema de personalidade ou de afirmação da personalidade, nunca foi falado que a medicina tradicional chinesa cura a homossexualidade nem que a homossexualidade é uma doença. Nunca foi dito isso em aula”, garante ao Observador o também professor do ensino secundário, que no processo de difamação contra João Júlio Cerqueira foi testemunha de Pedro Choy.
“Nós trabalhamos muito com as chamadas entidades viscerais que é aquilo que comanda minimamente a personalidade e o Hun tem a ver com o fígado e a visão que temos e que damos ao mundo. Patologias como exibicionismo, autismo, etc, são patologias do Hun, que é dado supostamente pelo pai”, contextualiza. “Agora nunca foi dito em aula nem em parte alguma que a medicina tradicional chinesa encarava a homossexualidade como patologia. O que se pode dizer é que nós podemos ajudar a pessoa a nível psicológico a traçar o caminho ou quando há um problema de relacionamento com os outros. Agora relacionamento com os outros não equivale a atração sexual ou mudança de comportamento sexual, nada a ver com isso.”
O único consenso: “A homossexualidade não é patologia, ponto”
Hoje enfermeiro a tempo inteiro e a trabalhar fora de Portugal, o ex-aluno da Associação Portuguesa de Acupunctura e Disciplinas Associadas que revelou o caso da pretensa terapia de conversão para homossexuais garante que os relatos são verdadeiros. “Nem que fosse demente ao ponto de querer inventar este tipo de coisa, eu não conseguia. Qualquer pessoa que queira sugerir que isto é uma cabala ultrapassa o limite do razoável.”
Para lá das duas versões completamente contraditórias, todos os intervenientes ouvidos pelo Observador dizem concordar pelo menos num ponto: a homossexualidade não é uma doença e, como tal, não pode ser tratada.
Visivelmente incomodada com a má publicidade que a polémica traz à medicina tradicional chinesa, Wenqian Chen, formada na Universidade de Medicina Tradicional Chinesa de Tianjin, na China, e desde 1992 em Portugal, onde fundou o Centro de Terapias Chinesas, garante que não há sequer referências à homossexualidade na literatura da MTC. “O ‘Huangdi Neijing’, do Imperador Amarelo, não tem referências a homossexualidade. Este livro é a teoria básica da medicina chinesa e eu escrevi um livro sobre ele. Não fala diretamente sobre tratamentos, é mais holístico, explica como os corpos humanos funcionam na natureza, quais são as leis e as regras do seu funcionamento, e não tem referências à homossexualidade, que aliás é reconhecida desde sempre na história chinesa”, explica. “Os livros clássicos são enormes e ninguém consegue dizer que os leu e percebeu todos ao pormenor. Têm muitos pormenores e linguagem muito antiga, eu posso não ter visto tudo, mas não acredito, já trabalho há 35 anos, com 5 anos de estudo são 40 na área. Na medicina chinesa não há nada em lado nenhum que diga que a homossexualidade é uma doença.”
Francisco Fernandes, o professor da UMC que foi testemunha de Pedro Choy, assina por baixo. “A homossexualidade não é patologia, ponto. Estudei cinco anos no curso superior, fui quatro vezes à China, estou ligado à Faculdade de Chengdu e nada se fala em relação ao que quer que seja. Não há patologia que encaixe a homossexualidade”, garante. “Ele nunca disse que curou a homossexualidade, porque é uma coisa que não é curável. Isto é completamente descabido, é um ataque vil para denegrir cada vez mais a imagem do Dr. Pedro.”
Já o ex-aluno de Choy que preferiu não ser identificado diz o mesmo, se bem que de forma substancialmente mais ácida: “Que eu saiba — não li os textos originais, não leio nenhum dos idiomas chineses —, a medicina tradicional chinesa não diz em parte alguma que a homossexualidade é uma patologia. Mas os textos originais também dizem coisas ridículas, cheguei a dar aulas numa pós-graduação de terapias não convencionais, e lembro-me de uma vez estar a explicar porque é que determinado tipo de diarreia à luz da medicina chinesa era tratado de determinada maneira, e acabei por ter de explicar aos alunos que à luz da medicina chinesa é possível frio e humidade entrarem pelo reto”.
Depois de alguns anos a trabalhar na área das terapias não convencionais, resolveu tirar o curso de enfermagem. Diz que foi nessa altura que percebeu que algumas das coisas que tinha aprendido e dado até então como certas não fariam tanto sentido assim. “Já conhecia o método científico mas foi durante o curso de enfermagem que comecei a ser obrigado a questionar coisas. Por exemplo, alguém diz ‘Isto funciona’. Porquê? Baseado em quê? Que dados é que tu tens para basear essa tua asserção? Se reclamas que uma coisa é verdadeira tens de conseguir justificar”, explica, em conversa ao telefone com o Observador. “Muito rapidamente isso começou a fazer-me questionar coisas na medicina chinesa que até então eram, nalguns casos, dogmas, noutros, paradigmas. Havia coisas que tinha como verdade e que muitas vezes via resultar mas nunca tinha questionado a razão por que noutras vezes não resultava. Aí percebi que não era sequer ético dizer que podíamos tratar determinadas coisas.”
Questionado sobre a polémica, o médico João Júlio Cerqueira, que esta sexta-feira deverá ficar a conhecer a sentença do processo-crime instaurado contra si por Pedro Choy — a quem publicamente se referiu como “charlatão”, “vigarista”, “costureiro de peles” ou “Chop Choy” — prefere apontar as vantagens das revelações dos ex-alunos no âmbito da batalha que há anos vem travando contra as terapias não convencionais.
“O facto de isto ter surgido torna mais percetível para o público em geral o perigo que este tipo de terapias representa e o tipo de discurso que os terapeutas alternativos utilizam para muitas vezes demonstrarem que as suas práticas funcionam e são úteis para o tratamento de várias doenças”, assinala. “Eles habitualmente utilizam a palavra ‘cura’ e não é só para a homossexualidade, é para outras patologias como o cancro, as doenças reumáticas e isto coloca em causa a saúde das pessoas.”
Perguntas sobre homossexualidade e MTC foram vetadas pela juíza
Em tribunal, justamente na segunda sessão do julgamento, aquela em que o terapeuta Francisco Fernandes foi ouvido, em meados de novembro e praticamente dois meses antes de estas acusações serem tornadas públicas, o advogado de defesa quis perguntar à testemunha de Pedro Choy qual era a posição da medicina tradicional chinesa sobre a homossexualidade. Apesar de formulada, a questão ficou sem resposta: a juíza não autorizou. “Claro que no âmbito do julgamento parecia uma pergunta descabida, e a Dra. juíza não me deu possibilidade de responder, mas foi pena, mal eu sabia a confusão que ia dar”, diz ao Observador o terapeuta e professor.
“O que esteve em causa neste julgamento, contrariamente àquilo que o Cerqueira e o conjunto de pessoas que foram lá testemunhar quiseram fazer crer, não é uma guerra entre a medicina chinesa ou as medicinas não convencionais e a medicina convencional. O que está em causa neste processo é um conjunto de insultos feitos regularmente pelo João Júlio Cerqueira ao Dr. Pedro Choy”, acrescenta ainda fonte próxima da equipa legal de Pedro Choy.
“A minha intenção obviamente que nunca foi difamar ninguém, as expressões utilizadas estão perfeitamente contextualizadas”, responde, por seu turno, o médico, desde setembro de 2021 no banco dos réus. “Se começamos a condenar todo o tipo de adjetivações isso limita imenso a liberdade de expressão e vários projetos de valor terão de acabar. Vejo este tipo de adjetivação usada em ‘n’ páginas das redes sociais e em ‘n’ blogues, inclusive contra mim, e eu não vou estar a processar toda a gente. O custo de ser uma figura pública, de ter uma opinião pública e de aparecer é que vou ser criticado e muitas vezes adjetivado — e tenho de lidar com isso”.
Psicóloga católica alvo de 14 processos disciplinares por praticar terapias que Nações Unidas querem extinguir
Quem também foi apontada publicamente por alegadamente fazer este tipo de terapias de reconversão sexual, se bem que por outros meios que não os disponibilizados pela medicina tradicional chinesa, foi a psicóloga Maria José Vilaça, durante anos presidente da Associação de Psicólogos Católicos. As notícias sobre o posicionamento pouco convencional da psicóloga, que chegou a comparar homossexualidade à toxicodependência, remontam a 2016, mas foi três anos mais tarde na sequência de uma reportagem da TVI — que a filmou em mais do que uma ocasião a alegadamente por este tipo de “terapias” em prática, tanto individualmente como em grupo, numa igreja de Lisboa — que a Ordem dos Psicólogos se pronunciou sobre o assunto.
“De acordo com toda a evidência científica disponível, o muito amplo consenso entre investigadores e profissionais e a posição das principais organizações profissionais de Saúde e de Psicologia internacionais, a homossexualidade não é uma perturbação mental nem implica qualquer tipo de incapacidade, sendo uma variante da sexualidade humana, não podendo ser, desta forma, associada a qualquer forma de psicopatologia”, escreveu o organismo no mesmo comunicado em que revelou ter reportado ao seu Conselho Jurisdicional o caso em concreto.
Ao todo, a Ordem dos Psicólogos instaurou 14 processos disciplinares a Maria José Vilaça. A Entidade Reguladora da Comunicação (ERC) também se debruçou sobre o caso mas porque considerou que, ao recorrerem a gravações não autorizadas, os jornalistas tinham violado os princípios deontológicos inerentes à profissão. No final, sobre a psicóloga, a deliberação da ERC determinou que nenhum ato “ilícito” ou sequer “reprovável” tinha sido cometido. “Mesmo concedendo que Maria José Vilaça tem opiniões controversas e ainda que algumas delas sejam comprovadamente erradas à luz dos atuais cânones científicos, nada na reportagem exibida configura pela sua parte a prática de atos ilícitos ou sequer socialmente reprováveis”, pode ler-se no documento, datado de 5 de junho de 2019.
Os processos instaurados pela Ordem dos Psicólogos foram entretanto arquivados e Maria José Vilaça, confirmou fonte oficial ao Observador, continua a ter carteira profissional e a trabalhar como psicóloga. Questionada ainda sobre se existem, neste momento, processos disciplinares em curso por este mesmo motivo — a prática de alegadas terapias de conversão para homossexuais —, a Ordem dos Psicólogos explicou que não pode pronunciar-se sobre casos em curso.
Entretanto, em junho do ano passado, o organismo que regula a classe divulgou um parecer de dez páginas justamente sobre terapias de conversão ou reorientação sexual. Para além de considerar que este tipo de tratamentos violam os princípios éticos e deontológicos da profissão, a Ordem dos Psicólogos alertou ainda para os efeitos potencialmente negativos que acarretam. “A evidência científica demonstra ainda que a exposição a Terapias de Conversão impacta negativamente as pessoas LGBTQI+ que a elas se submetem (comparativamente àquelas que não realizaram Terapias de Conversão), uma vez que revelam um nível mais elevado de ideação suicida e maior probabilidade de planear e de fazer uma tentativa de suicídio; níveis mais elevados de sofrimento psicológico, depressão e ansiedade; maior dificuldade em manter relacionamentos familiares e amorosos; auto-imagem negativa e sentimento de insucesso pessoal; níveis mais elevados de disfunção sexual; níveis mais baixos de satisfação com a vida, sucesso educativo e apoio social.”
Apesar de todas as evidências científicas, no resto do mundo este também continua a ser um problema. Em maio de 2021, as Nações Unidas divulgaram um documento a pedir um esforço concertado para pôr fim à prática de terapias de conversão para homossexuais e transsexuais — ali equiparadas a uma forma de “tortura”. Agora, há cerca de uma semana, a organização não lucrativa Global Project Against Hate and Extremism (Projeto Global contra o Ódio e o Extremismo) revelou num relatório que os maiores grupos que oferecem este tipo de terapias “pseudocientíficas” continuam a atuar e com a conivência das grandes empresas de tecnologia, que ainda não terão encontrado as ferramentas necessárias para banir a respetiva atividade e disseminação de informação da rede.
Em países como Brasil, Malta, Alemanha França ou Canadá, que se juntou ao rol na semana passada, este tipo de terapias já foram proibidas. Em Portugal, a 17 de maio do ano passado, Dia Internacional Contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia, o Bloco de Esquerda apresentou uma proposta de criminalização das chamadas terapias de reconversão sexual.
Da infância de pobreza a uma vida de polémicas
Foi justamente como cabeça de lista do Bloco de Esquerda que Pedro Choy, agora acusado de praticar as terapias que o partido repudia, se candidatou por duas vezes, em 2005 e em 2009, à Assembleia Municipal de Salvaterra de Magos.
Em 2016, quando o Parlamento aprovou, com os votos contra do PS, a lei que passou dos 23% para os 0% o IVA cobrado aos profissionais de terapias não convencionais, que assim passaram a estar fiscalmente equiparados aos da medicina convencional, esta ligação já tinha sido recuperada. Na altura, o Diário de Notícias destacou Pedro Choy, que descreveu como “ex-dirigente do Bloco de Esquerda”, como o principal beneficiado pela lei, que ainda para mais teria efeitos retroativos e funcionaria assim como uma espécie de “perdão fiscal” para o cerca de meio milhão de euros em impostos que o empresário tinha por regularizar com a Autoridade Tributária. Em direito de resposta enviado para o jornal, o BE explicou que a colaboração do empresário com o partido nunca tinha extravasado o “plano concelhio” pelo que seu dirigente nunca tinha sido.
Aos 62 anos, o terapeuta e empresário, que em tribunal revelou estar a ser alvo de ameaças de morte e admitiu até ter-se visto obrigado a tomar ansiolíticos convencionais, de forma a minorar os efeitos alegadamente causados pelo “bullying informático” de que diz ter sido alvo por parte do médico João Júlio Cerqueira, não é estranho às polémicas, que o acompanham desde o início da carreira.
Nascido em Macau, filho de mãe chinesa e de pai português, Pedro Choy vive em Portugal desde os três meses, altura em que a família se instalou em Almeirim. Depois de uma infância de pobreza e carestia — em entrevista à revista do jornal i, em 2010, chegou a contar que nem casa de banho tinha em casa e que as refeições eram maioritariamente feitas à base de arroz e leite, porque não havia dinheiro para comprar carne — e de uma juventude em que chegou a frequentar a Faculdade de Medicina, cresceu para explorar o filão da medicina tradicional chinesa, até aos anos 1990 praticamente desconhecido em Portugal.
Segundo a Sábado, que em outubro do ano passado recebeu em casa, um duplex perto da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, hoje são 15 as empresas de que Pedro Choy é sócio-gerente, entre clínicas de acupuntura, comércio de produtos naturais, escolas de medicina tradicional chinesa e empresas de promoção imobiliária. Em 2020, só em nove delas, contabilizou a revista, as vendas ultrapassaram os quatro milhões de euros. Ainda assim, também terá prejuízos, que atribui não apenas à pandemia, que o obrigou a reduzir o pessoal para praticamente metade, de mais de 400 trabalhadores para cerca de 200, mas também “à calúnia e à difamação”.
“Se uma pessoa vai muito à televisão acham que ela é muito rica. Esquecem-se de que há seres humanos e seres humanos…”, disse à Sábado, na mesma entrevista em que assumiu que, “desde a crise de 2008”, com as 23 clínicas de acupuntura que tem em seu nome em todo o país, “tem margens de lucro de 1% e 2%”.
De acordo com uma terapeuta que prefere não ser identificada, aparecer tantas vezes na televisão será exatamente aquilo que Pedro Choy mais faz de errado — o que acaba muitas vezes por prejudicar toda a imagem que a MTC tem no país. “Ele é uma pessoa que gosta muito do marketing. Também foi tratar animais, fez acupuntura a golfinhos, quando na China a acupuntura de animais e de humanos são áreas muito diferentes. As teorias básicas são parecidas mas tudo o resto, fisiologicamente e até anatomicamente, para localizar os pontos, é muito diferente”, critica a profissional, também ela com largos anos de experiência profissional na área.
Uma consulta ao site de Pedro Choy resgata dos arquivos da SIC, ainda na década de 1990, a referida incursão do terapeuta nos domínios da veterinária, naquela que o próprio descreve como uma das suas “primeiras presenças em televisão”, pouco tempo depois de completar o curso em Marselha, para onde viajou de mota e onde, nos dias de maior calor, diz que chegou a dormir na rua.
“A golfinha Spray tem, não uma insuficiência, mas uma diminuição da energia do rim Yang”, explica um Pedro Choy de 30 e poucos anos, rabo de cavalo, colete e gravata, à beira do tanque dos golfinhos do Jardim Zoológico de Lisboa, onde minutos antes tinha estado a fazer acupuntura, com raios laser em vez de agulhas, para combater os problemas renais e de fígado de uma fêmea de 22 anos com uma infeção crónica por cândida.
“Isto não tem sentido em termos de medicina convencional, mas resulta, além desta tendência para os olhos fecharem, em infeções crónicas nas zonas de entrada”, detalhou ainda, exemplificando para a câmara, no seu próprio corpo, os pontos tratados no golfinho, antes de prosseguir para a prescrição: para “encontrar o equilíbrio”, a Spray teria de ser submetida a dois anos de acupuntura.