Há poucas semanas lançou um disco absolutamente inusitado. Convidou a rapper Capicua para escrever todas as letras dos fados que se propunha gravar e chamou ao registo Metade-Metade, tal a identificação com o que surgiu nos textos. Esta quarta-feira, 17 de abril, Aldina Duarte sobe ao palco do Coliseu dos Recreios, em Lisboa, para apresentar o trabalho. Mas o que é este disco senão o caminho que tem vindo a percorrer numa vida onde a poesia foi sempre o seu chão mais presente?
Sensível à palavra como poucos, a fadista acredita que a poesia nasce mesmo da vida. Sem pudores, por isso, fala nesta entrevista da sua própria poesia, o seu outro lado da vida normalmente guardado na intimidade. A infância é o ponto de partida para um passeio pelos sentimentos e emoções, jogos, acasos e brincadeiras, realidades e circunstâncias que marcaram uma mulher que veio do nada, determinaram a sua força, o seu encanto e o seu desassombro. O convite foi nosso. Queríamos ouvi-la falar sobre sensibilidade. O mote era a poesia, mas a conversa foi muito além.
[o álbum “Metade-Metade” na íntegra no Spotify:]
Costumamos dizer que a poesia é a mais difícil das literaturas, que tem um vocabulário específico, ou uma forma menos acessível, ou até que não é para toda a gente. Há sempre alguma coisa que afasta a maior parte das pessoas da poesia. Tem mesmo de ser assim?
Não. Basta olharmos para o Cesário Verde, o meu poeta de eleição, e olharmos exatamente para o que ele trouxe para a poesia, aquilo que no século XIX era impensável, o quotidiano e o seu vocabulário.
Que era o que os grandes poetas não faziam…
Não. Esses escreviam só os grandes estados de espírito, as grandes eloquências à natureza, os estados quase alterados de consciência afetiva… Nessa altura, a poesia era para quem tinha tempo. Estamos a falar de um século onde a miséria e a pobreza eram absolutas à exceção de uma classe privilegiada. Quem é que se podia dar ao luxo de andar a olhar não sei para onde quando se trabalhava 14 ou 16 horas…
Nem ler se sabia.
Não se sabia ler e morria-se de doença que nem tordos. A poesia estava praticamente reservada ao salão, às grandes quintas ou aos grandes locais de contemplação.
Mas isso também era válido para a música ou para outro tipo de literatura.
Sim, era válido para a cultura em geral. Ainda que a música seja mais transversal, porque sempre esteve acessível nem que fosse em forma de batuque. A música nasce nem que seja de dois pauzinhos. E isso é que já começo a achar que é poesia. Por isso é que para mim a música é a arte mais próxima do divino, seja lá o que isso queira dizer.
Mais pura, mais genuína…
Exatamente. É que o som está em todo o lado e está acessível a todos. Não se pode impedir ninguém de ouvir, não se pode impedir um pobre de ouvir música onde ele a conseguir ouvir. Portanto, a música sempre foi mais transversal, diria. Por isso é que, para mim, a música é, se calhar, a primeira forma de poesia. Uma vez estava a falar com um miúdo que é fadista, que tem 26 anos e que é falcoeiro, é alentejano, com um sotaque cerrado e só o sotaque já é música. Nessa conversa que tivemos, levou-me uma noz com um pauzinho e um elástico, que o avô lhe tinha dado, e ao manipulá-la fez dali um instrumento de percussão com um som incrível.
[o vídeo de “Aprendiza”, que faz parte do álbum “Metade-Metade”:]
A casca da noz?
Sim. E isto é poesia: olhar para uma noz, partir a noz, comer a noz e ainda fazer dela um instrumento para acompanhar a voz.
Está a dar uma definição diferente à poesia.
Estou. Se isto não é poesia, o que é que é poesia? Este é o meu ponto de partida para a poesia. Depois, chegando à palavra, ela também tem um mistério, que é igual a este.
Nesse ponto de partida há uma sensibilidade muito grande.
Mas a verdade é que quem criou este instrumento era alguém que possivelmente passava fome. Vivia no Alentejo, era pobre, oriundo de uma família pobre, andava para ali a trabalhar e ainda teve esta ideia. É muito difícil, quando se tem que sobreviver a todo o custo, estar-se atento a outras coisas mais invisíveis, ou mais sensíveis, digamos assim. Temos que comer, se não morremos… Uma vida dura. Mas durante um intervalo qualquer, houve um instante no meio dessa sobrevivência, em que um homem que não sabia como ia ser o dia de amanhã, nem como ia comer e dar de comer aos filhos, se lembrou de transformar uma casca de noz num instrumento musical e, se calhar, nem foi ele quem comeu a noz. E isto é de facto o ponto de partida da poesia. A poesia é inerente ao ser humano. Não há outra forma de inteligência, a meu ver, que possa conceber a poesia na vida. Seja na forma do poema, seja na forma como olhamos e vivemos a vida, ou escolhemos viver a vida. Há pessoas que vivem de forma absolutamente poética. Vivemos numa época em que o mercado domina tudo, mas há pessoas que conseguem abrir mão disso tudo, vivem com pouco, mas escolhem viver em nome de outras coisas. Nem que seja por uma questão de subversão, isso hoje em dia também é poesia.
E é importante.
A poesia tem sempre um lado de inteligência mais profunda. Acho que só uma inteligência mais profunda está aberta à poesia. Ou seja, no dia em que alguém é atravessado por um verso, seja numa canção, seja a ler, foi ao sítio mais fundo, àquele sítio de onde poderá nascer o que interessa, a reflexão, o amor, uma atenção ao mundo, à diferença… Quando atingimos esse ponto, sabemos que não vai haver ninguém que possa ser igualzinho. É onde todos somos únicos. Depois, percebemos que todos somos únicos e aí somos iguais. E é nesse ponto que a poesia é uma boa raiz para a construção humana. Na palavra, o mistério é igual ao do som que há no corpo humano e por todo o lado. O que é um verso? E a Adília Lopes nisso é rainha, é imperatriz, é deusa, o que for. Ter um alfabeto já é uma coisa lindíssima, pensar no que se faz a partir daquele conjunto de letras, o que se fez e continua a fazer no mundo. Os livros que se escreveram, as conversas que temos até este momento. Só o alfabeto já me põe completamente a delirar. E, depois, há pessoas como a Adília, que é o topo do topo, e que com o mesmo papel com que escrevemos a lista das compras, com o mesmo alfabeto, com a mesma caneta, faz um verso e faz um poema. Porquê? Não sei explicar. Mas ela, com as mesmas seis palavras que usamos de manhã na mercearia, faz um verso. É aí que acho que entra aquilo a que se chama o dom. Isso para mim é a poesia no seu esplendor porque é aparentemente nada. E nada ali é tudo. Imagino que para chegar ali a Adília tenha feito um caminho enorme. É evidente que é uma mulher que leu como ninguém, releu, tresleu…
Como é que uma poeta como Adília Lopes consegue dar significados tão profundos às mesmas palavras a que nós não damos?
É o mistério dos mistérios. Vou ler o Herberto Hélder, que diria ser o oposto da Adília, com aquela densidade de vocabulário, de ideias, de construções, uma construção magnânima da palavra. Mas, para mim, a verdade é que, por mais que soe a blasfémia, no fim eles encontram-se os dois no essencial. Levam-me para o mesmo sítio.
Como é que fez esse percurso? Como é que se aproximou da poesia?
Foi desde criança. Comecei a ler muito pequenina, porque a minha mãe convenceu-me de que eu sabia ler antes de eu saber ler. A minha mãe tinha-me dito que ler era pegar no livro, olhar para ele e inventar e eu passei a achar que lia. Punha-me a ler, pegava no livro e estava ali a falar em voz alta. Já mais velha, talvez com onze ou doze anos, lembro-me de que a minha mãe estava a cozinhar e eu a ler-lhe Os Lusíadas sem saber muito bem o que é que estava a ler. Era uma cantilena que me soava bem, tão bem, de cada vez que descobria ali sonoridades e depois descobria as rimas e achava aquilo tudo uma aventura incrível, delirante, mas não percebia nada do que estava ali a ser tratado. Até pode parecer pretensioso, mas para quem vem de onde eu venho não tem pretensão nenhuma, é só uma bênção. Foi a sorte de a minha mãe achar que eu devia ter Os Lusíadas em casa, e foi a sorte de ela me ter convencido desde pequena que ler era inventar e contar a história em voz alta. “Então conta-me lá o que é que estás a ler?” Depois percebi que não sabia ler, mas achei graça àquela brincadeira da minha mãe. Tudo aquilo me estimulou muito. Para já, vinha da mãe, que era a minha grande fonte, e única, na altura, de amor. Não tinha mais nenhuma. Portanto, aquela fonte era a minha vida. Sem ela eu nem sabia como é que podia sobreviver. Era uma brincadeira maravilhosa que fez com que eu quando aprendi a ler só quisesse ler ainda mais.
Terá sido também o som, a palavra, o sentido?
Antes disso, sempre tive o rádio ligado e sempre estive a cantarolar até noutras línguas. Achava graça tentar imitar os sons, mesmo quando era em inglês. Sempre fui bastante auditiva, até mais do que visual. Mas acho que teve sobretudo a ver com a leitura. A primeira vez que entrei na biblioteca da escola, com a D. Bárbara a tomar conta, ela mandou-me à secção de livros da minha idade onde estavam os da Anita. Vou lá, tiro um, e o único livro da Anita que não tem a Anita foi o livro que eu tirei, era O Pintarroxo Friorento. Li o livro sempre à espera de encontrar a Anita e cheguei ao fim sem ela aparecer. Achei tanta graça, ria-me e ria-me, achava que tinha descoberto um livro onde a Anita fingia que aparecia, mas afinal não aparecia. E a D. Bárbara nem sabia! O livro marcou-me pela neve, pelo passarinho com frio, mas que transformava o frio numa força. À Anita depois não achei grande piada, achava que ela estava sempre a fazer-se de crescida e como eu já era pouco infantil e tive que ser sempre crescida não achava graça nenhuma a isso. Eu gostava era de coisas que me infantilizassem, adorava disparates, achava graça era à Pipi das Meias Altas e queria fazer aquelas diabruras todas. O gosto pela palavra é evidente que foi muito cultivado até mais do que a música. A minha mãe sempre foi contra a música, achava que um pobre não podia ser artista. Era perentória nisso: “Os pobres não podem ser artistas, vais morrer à fome, não tens dinheiro para te suportar e depois como é que é? Os pobres só têm uma safa, é desenvolverem a inteligência deles”.
Era pragmática?
Racional e muito pragmática. Aquela formulação dela revoltava-me. Mas a verdade é que fui desenvolvendo aquilo que ela me deu para desenvolver, que foi a leitura. “É pela inteligência que os pobres vencem”, dizia ela. Também por isso é que, se calhar, hoje não sou nada fascinada pelo lado da fama, não gostava mesmo de ter essa vida. Agora que já tive oportunidade de a ter e não quis, percebo que não sou aquilo. Acho que tem a ver com esta educação. Na minha casa isso nunca foi valorizado, ainda hoje não é. A minha mãe nunca foi ao Sr. Vinho [Casa de Fados de Maria da Fé, onde Aldina começou por cantar]. Diz que se vai comover e não gosta de se comover à frente das pessoas, não gosta de estar assim tão perto, prefere a comida dela em casa à de um restaurante… Quem me roubou a infância não foi a minha mãe, a minha mãe salvou-me. Se não fosse assim, com tudo o que me rodeava, podia ter descambado completamente, ainda por cima emotiva e compulsiva como sou. Se calhar já tinha morrido de overdose. É normal, para quem cresce na pobreza e na miséria, que não são a mesma coisa mas muitas vezes até andam juntas. É muito duro crescer naquelas condições.
O que fez a diferença?
A minha sorte é que só tive pobreza, miséria não houve nenhuma, havia amor, havia dignidade, havia uma data de coisas de que o dinheiro não trata. Mas é verdade que o que me rodeava era marginalidade, era violência e por aí adiante. Portanto, se a minha mãe não tivesse tido esta disciplina férrea e não me tivesse traçado este caminho, se calhar tinha-me perdido completamente. Ela depois na intimidade, por isso é que sou tão diferente na intimidade e socialmente, dava-me uma liberdade enorme. Os miúdos adoravam estar na minha casa. Vivíamos num T1, um quarto, uma casa de banho e uma kitchenette ligada a uma sala. Metade da casa era minha, feita para mim, com os móveis e a casa das minhas bonecas à minha dimensão. Nenhuma criança tinha isto, nem os ricos. Esses tinham o quarto dos brinquedos e mais nada. Aquela casa era mesmo nossa. “Temos que ser nós a cuidar dela.” Eu não sentia que aquilo era a casa da minha mãe, era a nossa casa. A minha mãe tinha um papel enrolado, que de vez em quando abria, e desenhava lá uma casa. Isto parece que não tem a ver com o tema, mas tem. Isto para mim é poesia e é daí que vem a minha poesia. Ela desenhou nesse papel a planta de uma casa, que por acaso hoje existe, e andou com ela na carteira mais de 30 anos. E dizia: “vamos para a casa de Almoçageme”, em Sintra, de onde a minha mãe é natural. Depois abria aquele rolo e íamos as duas brincar para lá.
Como se estivessem de facto dentro dessa casa?
Sim. Lembro-me de estar toda suja de tinta, porque andávamos a calcar as partes do corpo com tinta. A minha mãe fez o liceu à noite na Escola Secundária D. Dinis, enquanto eu estava no 7º, 8º e 9º anos. Eu estava de dia e a minha mãe estava de noite e, às vezes, quando eu vinha a sair a minha mãe ia a entrar para as aulas e eu ia com ela e assistia às aulas. Uma vez numa aula de Filosofia estava a dar Piaget e ela vira-se para mim e diz: “olha, nós fazíamos isto!”. É verdade.
E havia outro lado da infância?
Sim, vivia entre dois mundos. Estava ora num bairro social, em Chelas, onde era a nossa casa, ora nos palacetes, um em Sintra e outro na Junqueira, onde a minha mãe trabalhava. Ainda hoje tenho esse fascínio por Sintra. Não podia passar da cozinha, nem das copas, nem das casas das costureiras e dos jardins. Era proibido. Era filha de uma empregada e já estar ali era uma sorte. Não via crianças e dos netos do dono do palacete, só um é que brincava comigo, porque era mais rebelde e achava que podia brincar comigo. Andava ali por um jardim magnífico, cheio de araucárias, é claro que tinha que desenvolver uma sensibilidade qualquer, porque somos também os sítios por onde andamos. Quem anda entre um palácio e Chelas e Chelas e o palácio, esta discrepância numa criança, que é amada e que até se sente segura com a sua mãe, que apesar de tudo pôde andar comigo às costas até aos seis anos, tem que se fazer notar. Quando fui para a escola já tinha ali uma estrutura que me fez aguentar bem ter a chave de casa, perceber o sentido das coisas, já sabia proteger-me. Isto é mau, porque perde-se a infância, não é suposto ser assim, devia ter tido outra liberdade. Mas, dadas as circunstâncias… Se olharmos agora com esta distância, onde estou, onde a minha mãe está, onde todos estamos, depois do 25 de Abril, quase parece poesia. Se não é, também não sei muito bem o que é que é. E é por isso que hoje resolvi falar deste lado de mim, a poesia para mim é uma coisa que nasce mesmo da vida. Daí que uma visão académica da poesia seja tão absurda para mim. Não fora a sensibilidade humana, não fora a inteligência humana, não fora a relação do Homem com tudo o que o rodeia, a poesia não existia.
Seríamos pobres?
Claro. A poesia dá-nos a ver o invisível que há dentro de nós. Ele aparece cá fora. Depois, torna-nos mais sensíveis e mais pensantes, exatamente porque não é uma coisa direta. Basta experimentar pegar num livro de poesia e ler um verso. E até trouxe um, que não tiro da cabeceira nem da mala, porque já li, já reli, já voltei a ler e não preciso de mais nada. Por agora, basta-me este livro. Há um luto que eu ainda não fiz do Pedro Gonçalves [contrabaixista dos Dead Combo e produtor de Aldina Duarte, que morreu em dezembro de 2021], não consigo fazer ainda. Mas reparei que, a partir de uma certa altura, comecei a fazê-lo, quando fechámos o concerto que fizemos de homenagem aos Dead Combo, houve ali qualquer coisa, aquela música toda, aquele grupo de pessoas em nome de alguém e da arte de alguém, aquela força passou-me. A partir daí, percebi que já falo do Pedro com alguma naturalidade, dói-me mas já não sangra. De repente, leio um poema neste livro e percebo que nunca li em lado nenhum nada tão claro sobre o que eu sinto em relação a essa morte.
Não é ninguém a dizer-lhe como é? Chega de repente, vindo do nada?
Ora bem. Era isto que eu precisava para fazer o luto desta história. Acho que a partir de uma certa altura fui formada pelo Dostoievski, tenho essa veleidade, porque li durante um ano só Dostoievski. Só ainda não li Os Irmãos Karamasov, porque quis guardar um bocadinho para mais tarde, para ter um pouco mais de Dostoievski. Comecei por O Jogador. O Crime e Castigo é a minha Bíblia, é ali que volto se precisar de me recentrar em relação ao bem e ao mal, porque às vezes a gente perde-se. A poesia é outra coisa. Um romance forma, a poesia…
[o vídeo de “Araucária”:]
Transforma?
Transforma, é isso mesmo. Os pais formam-nos e depois os amores e os encontros que vamos tendo na vida vão-nos transformando. A poesia é o encontro permanente da vida. E pensar que tive uma fase da minha vida em que odiava poesia…
Como assim?
É verdade. Tive um namorado escritor que teve o cuidado de me oferecer uma pequena biblioteca sem escolher um único livro de poesia, porque eu dizia-lhe que não gostava de poesia. A poesia é de tal maneira profunda que é como a mãe e o pai, é preciso passar por uma fase em que os odiamos.
Para conseguir caminhar.
Ela mexia tanto comigo. A poesia nasce de uma ferida, seja para quem lê, seja para quem escreve. Os poetas, até quando escrevem sobre as flores, só falam delas assim porque já andaram no lodo.
Senão, não viam essa beleza toda.
Exato. Quer melhor poeta do que o Ramos Rosa, a coisa mais solar do mundo, e vamos ver a biografia dele, ninguém tem uma biografia mais triste. Só alguém com uma grande tristeza percebe o valor de uma pequena flor no meio disto tudo. É só para as pessoas que sabem muito bem o que é a tristeza. Acho que os poetas todos, mas todos, são tristes.
Isso está relacionado com o lado mais popular do fado?
É. Também não acredito que haja algum grande fadista que não seja triste. Agora, já tenho um grande espaço para exercer a tristeza todos os dias, no resto deixem-me ser feliz, porque quero mesmo é ser feliz. Todos os dias lido com essa matéria, esse quarto nunca se fecha na minha vida. O quarto da tristeza tem que estar sempre aberto. Vivo numa casa onde existe esse quarto de porta aberta, mas na vida não preciso de cultivar tristeza nenhuma, já chega. Já tenho a minha dose. Essa tristeza é constante, mas tenho a sorte de ter uma arte que a faz ir mais longe, porque, se calhar, se não tivesse essa arte, não andava com esta porta escancarada todos os dias. Não se aguenta.
Mas também não é uma escolha.
Não. Antes de descobrir a minha vocação, esta porta andava escancarada todos os dias e eu estava sempre deprimida. Não sabia o que fazer com isto e porque é que havia de ter isto. Porque é que há sempre uma tristeza que subjaz a tudo o que me acontece mesmo que seja bom? Agora percebo. Porque esta matéria, de facto, é determinante no meu trabalho. Agora se não tivesse este trabalho… Como é que se vive com esta tristeza? Os poetas são assim.
Mas são seres iluminados, ao mesmo tempo.
É isso mesmo e isso não se explica, temos que ter essa humildade. Quando procuramos a definição de fado, quando queremos a definição de poesia, de criação, vai chegar ali um ponto que se chama mistério. E ainda bem. Assim como o ser humano. Podemos definir o ser humano fisicamente, psicologicamente, espiritualmente, mas há de chegar ali um ponto…
Em que não conseguimos ir mais longe?
Aliás, o António Damásio, no livro O Erro de Descartes, sugere no prefácio que acompanhemos a leitura desse livro com um livro de poesia, porque no dia em que o mistério desaparecer, desapareceu a espécie humana.
Que maravilha!
E ele acha que a poesia é o que nos lembra e relembra que somos mistério.
É o que nos mantém vivos.
Sim, sem mistério não há vida.
É uma espécie de oxigénio.
Isso mesmo.
A poesia ensina-se? Aprende-se? Como é que se faz?
Aprende-se, não se ensina mas aprende-se. É como o amor. Aprende-se a ter apetência e gosto por e até a ter sensibilidade para a poesia. A sensibilidade para a poesia depois serve para tudo.
Perguntamos muitas vezes para que é que isto serve…
Dou um exemplo muito prosaico. Percebemos para que é que servem as batatas, as flores não, mas o que é que seria de nós sem elas?
Não conseguiríamos viver.
Nem sequer dá para imaginar um mundo sem flores. Com a poesia é igual.
É a beleza da vida?
Não sei o que é ao certo, mas é o direito ao prazer, o direito à inutilidade, o direito à contemplação. São todas estas coisas num mundo cada vez mais frio, onde o maior vínculo do ser humano é com uma máquina, que se chama telemóvel ou computador.
Um vínculo com uma máquina é uma coisa estranha.
Uma máquina que até substitui a presença do outro. Nesse contexto, o que estou a dizer até pode parecer uma fantasia, qualquer coisa de utópico, mas não. Estou a falar de algo que é bem concreto e definido, que é palpável. Estou a falar da natureza, de coisas que se veem e que se comem, que se tocam, que se cheiram, que se ouvem. Só estou a falar de coisas concretas.
Reais e verdadeiras.
Não é problema nenhum ser-se ignorante, é problema não se importar de se ser ignorante. Temos o direito de não saber, assumimos que não sabemos, agora ter orgulho em não saber… Aí é que já não. Até posso aceitar que não é um assunto que me interesse, mas orgulho em não saber, isso para mim não é nada. É a manifestação da estupidez pura. Estamos a falar de coisas reais e as pessoas acham que quando digo que temos direito ao prazer, à inutilidade, à contemplação, à beleza, acham que estou a falar de algo poético. Não, a poesia não é isso, a poesia resulta de quem se permite exigir outro modo de vida. Ou seja, trabalho oito horas no computador, mas quando chegar a casa vou fechá-lo, porque quero abraçar os meus filhos ou os meus amantes ou os meus amigos, quero discutir com eles, quero pensar em conjunto com outras pessoas.
Quero ouvir música.
Quero ler, quero ir dar um mergulho à praia, quero dormir uma sesta ao pé de uma árvore. Isto não é nada utópico nem nada poético, isto é a vida. É do nosso mundo. Nós, seres humanos, não fomos feitos para ter vínculos com máquinas. Fomos feitos para viver em comunidade. O telemóvel e as redes sociais são uma parte da vida. A máquina de lavar roupa também faz parte, mas a vida não é a máquina de lavar a roupa.
Nem a ligação “à máquina de lavar a roupa”, como diz.
A vida não pode ser a ligação a um aparelho. Pode passar por ali, é um instrumento de trabalho, mas não é aquilo. Quando falo no direito ao prazer, falo no direito de não fazer nada. Há quem não goste, mas há quem goste. Mas a maioria das pessoas associa-o à preguiça ou ao delírio. Mas é só contemplar. “Contemplar, o que é isso?”, perguntam-me. É triste não se saber o que é contemplar. Alguém pode não ser de uma natureza contemplativa, pode ser do género de ir para a praia e continuar a tricotar, porque não consegue estar quieta. Mas isso é outra coisa, estar na praia e estar a tricotar, não é estar no telemóvel a fazer jogos. É ter as mãos a funcionar em pleno. Foi uma conquista tão grande para o ser humano andar de pé, porque nos libertou as mãos para fazermos tudo e foi graças a isso que o nosso cérebro chegou a este ponto. E se não usamos parte do corpo, também não vamos usar parte do cérebro e ele começa a definhar, não se desenvolve. Por isso é que o Sigmund Bauman dizia que ficamos com o cérebro empapado. Não é exagero. As pessoas hoje têm um léxico muito pequeno, está cada vez mais reduzido, e depois não é possível pensar mais fundo. Não querendo ser pretensiosa, aí é que eu acho que a música e a poesia podem acordar o ser humano.
É a história do senhor que estava a trabalhar e a passar fome e pegou na casca da noz.
Ora, pois é. Basta olhar para um adulto que toda a vida foi muito funcional, fosse por necessidade, fosse por formação, mas quando lhe dão uma tela para as mãos e umas tintas, ele começa a brincar e a sentir-se outra pessoa.
A poesia também tem esse poder?
Tem. É como a música. É mais direta. Sendo mais misteriosa, e às vezes menos compreensível e menos objetiva à partida, é mais direta ao coração. Um verso é muito mais rápido a chegar lá, mesmo que não o compreenda.
Podemos compreendê-lo só mais tarde.
É como uma música instrumental, que não tem palavras. Vai direto ao coração, abre lá qualquer coisa e mesmo que não saibamos o que é, sabemos que está aberto e é bom.
Quem são os seus poetas?
Adília Lopes e Herberto Hélder à cabeça. Depois muitos. O Ramos Rosa, a Adélia Prado, a Sophia de Mello Breyner, o Eugénio de Andrade, o Mário Cesariny, o Camões, o Cesário Verde, o Teixeira de Pascoaes. Dos atuais, gosto muito da Maria do Rosário Pedreira, este Miguel Martins que agora conheci, tenho muita coisa do Manuel de Freitas e da Inês Dias, de quem gosto bastante. O Daniel Faria adoro, o Tolentino Mendonça. O Yeats, o Eliot, o Mallarmé, o Baudelaire, o Rimbaud. E até na música. O Leonard Cohen é um dos meus poetas, o Bob Dylan é um dos meus poetas, o Chico Buarque é um dos meus poetas…
Um olimpo.
Felizmente, acho que tenho das melhores bibliotecas de poesia que pode haver. Tenho esse orgulho. Construi-a com o Jorge Silva Melo, com o Vasco Graça Moura também, com o Tolentino Mendonça. Pessoas a quem tive a sorte de poder pedir conselhos e listas de livros essenciais que me ajudaram imenso. Deram-me todos listas verdadeiramente essenciais e eu fui comprando os livros e autores recomendados. Quando já os tinha todos, passei a pedir-lhes, em cada feira do livro, para me indicarem quais eram os livros fundamentais para comprar nesse ano… Um biblioteca feita por pessoas que não vão atrás do óbvio. Feita pelas pessoas que mais admiro e que sabem o que eu nunca saberei. O José Mário Branco também me ajudou.
E neste disco Metade-Metade, a Capicua.
A Capicua é uma mulher da palavra. Escreve muito bem, das crónicas às letras das canções, mas acho que foi a escrever para o fado, neste disco, que se tornou mesmo uma poetisa.
[Matéria de Risco é uma rubrica de entrevistas com personalidades e agentes culturais sobre arte, sociedade e atualidade]