O Pedro. A notícia começou a espalhar-se já a tarde ia avançada, as nuvens que carregavam o céu a ficarem pretas. As redes sociais inundaram-se de imagens do músico que faz – porque o fará sempre – parelha com Tó Trips nos Dead Combo, mas detive-me numa fotografia, partilhada pela fotógrafa Estelle Valente. O Pedro (que morreu este sábado, aos 51 anos) encontra-se de perfil, cabelo rapado e óculos escuros – a sua imagem de marca –, e veste fato completo – outra imagem de marca –, com a particularidade de parecer ter saído de um filme do Tim Burton, com os vários pontos das costuras desenhados no tecido, tornados visíveis como se fossem o esqueleto do casaco e das calças. O Pedro tinha destas subtilezas.

Mas o que esta imagem tem de particular é o facto de o artista ser fotografado a olhar para cima, ele que tinha a tendência – fosse a andar na rua ou a atuar em palco – de olhar para baixo. Mas também aquilo para que está a olhar: um emaranhado de cor, um punhado de balões amarelos, rosas, castanhos, roxos.

O imaginário que a música dos Dead Combo evoca é tudo menos alegria, é tudo menos cor, é tudo menos céu. Invoca outros prazeres, outras tonalidades, outros firmamentos. É uma música que vem das entranhas dos becos mais sombrios da cidade, com tudo o que isso implica de noturno, de vadio, de imperfeito e, por isso, de genuíno. É esse o seu âmago, o lugar criativo de onde vêm. O que está sobejamente retratado nas muitas fotografias de concertos dos Dead Combo, agora também muito partilhadas, em que vemos os dois músicos em palco mas na penumbra, sem lugar particular de destaque, rodeados de fumo e com as luzes, vermelhas, cor de inferno, cor de sangue, a assegurarem-lhes a sombra.

Pedro Gonçalves, olhos ao alto, num emaranhado de cor (Foto: Estelle Valente/ Teatro São Luiz 2021)

O Pedro era muito tímido. Grande e tímido, o sorriso apenas esboçado denotava-lhe o sentido de humor. Sem ter convivido com o Pedro nos últimos tempos, depois da estrondosa notícia de que tinha um cancro – lutava contra o monstro há anos –, é sempre esta a presença que tenho: a parecer-me que vivia muito dentro da própria cabeça. E por isso talvez o achassem um pouco sisudo, um pouco inflexível nas suas ideias. Eu chamar-lhe-ia obstinado. A arte e a música disseram ámen a isso.

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Conheci o Pedro numa altura em que fazia um programa de artes e cultura urbana, com a produtora Subfilmes, para a RTP2, e fizemos uma peça com os Dead Combo, a propósito do lançamento do seu primeiro álbum, Vol. 1. Estávamos em 2004. Pusemo-los no salão dos Alunos de Apolo a tocar no meio de vários pares de dançarinos, estáticos, rodeados por uma voragem de movimento. A produtora ficava na Rua da Rosa, ao Bairro Alto, e naquela altura não havia ainda o putedo (o Pedro haveria de gostar deste termo) do turismo a tornar aquelas ruas num circo. É essa a imagem que mais retenho dele, quando era para mim ainda e apenas o último quadradinho da banda desenhada do Lucky Luke, a afastar-se, já final do dia, rua acima, no Bairro Alto que poderia ser Alfama ou Mouraria, e a deixar um rasto de sombra atrás de si.

Morreu Pedro Gonçalves, o “generoso, ousado e original” músico dos Dead Combo

O Pedro formou entretanto família e reside aqui a terceira camada de significação da foto do Pedro a segurar num punhado de balões coloridos. A carreira dos Dead Combo foi feita de mais oito álbuns, dois ao vivo e seis de estúdio, com o último a ser editado em 2018, o Odeon Hotel.

A música dos Dead Combo poderíamos dizer que parte de uma rua de Lisboa, porque está sempre implicada na premissa o local a partir do qual criamos e também porque inclui o fado na fusão que faz dos diversos géneros, que vão do rock aos blues. Mas não pertence a lado algum, porque pertence a tantos e tantos lugares, a tantos e tantos mundos (e pessoas, todos nós): um hotel de segunda em Buenos Aires, um boteco de chope em São Paulo, uma roda de percussores numa praça de terra batida nos arredores de Maputo, um clube noturno em Jackson, Mississippi. Um mundo que é também como ele, sempre muito cinematográfico. Deliciosamente de série B.