No final de fevereiro deste ano, um utilizador da Wikipédia que dava pelo nome fictício “Junktuner” foi à página daquela enciclopédia digital sobre a COP28 (a 28.ª cimeira das Nações Unidas sobre as alterações climáticas, que decorre esta semana no Dubai) para fazer alterações ao conteúdo do texto. No segmento do artigo em que era apresentada a nomeação de Sultan Ahmed Al Jaber como presidente da COP28, eram mencionadas as muitas críticas de que a escolha foi alvo: Al Jaber é o presidente da petrolífera estatal dos Emirados Árabes Unidos, que é uma das empresas mais poluidoras do mundo, e a sua nomeação como responsável máximo da principal cimeira climática do mundo foi profundamente criticada por decisores políticos, cientistas e ambientalistas, que acusam o país de usar a cimeira da ONU para branquear a sua imagem no que toca ao clima.
O utilizador “Junktuner” foi ao artigo acrescentar um novo parágrafo: uma citação de um editorial da Bloomberg que elogiava Al-Jaber e o classificava como “precisamente o tipo de aliado de que o movimento climático necessita”.
Só mais tarde, depois de um outro utilizador da Wikipédia ter questionado as alterações introduzidas no artigo, é que se soube quem era “Junktuner”: Ramzi Haddad, o diretor de marketing da organização da COP28, gerida pelo governo dos Emirados Árabes Unidos.
A alteração ao artigo da Wikipédia foi noticiada em maio deste ano pelo jornal britânico The Guardian, que avançou que aquele não tinha sido caso único. Pelo contrário, fazia parte de uma rede de utilizadores da Wikipédia que se estavam a dedicar a alterar artigos da enciclopédia para tornar “mais verde” a imagem do Dubai, da COP28 e do próprio Al-Jaber. No artigo da Wikipédia sobre Sultan Ahmed Al Jaber, um outro utilizador tentou fazer uma série de modificações, incluindo retirar a referência a um negócio multimilionário assinado por Al Jaber em 2019 para a construção de novos oleodutos e eliminar uma citação de um artigo do Financial Times no qual era apontada a incoerência de ter o responsável pela expansão da exploração petrolífera do Dubai como líder das negociações climáticas.
Nesse artigo, o famoso “Junktuner” também introduziu as suas modificações, escrevendo que Al Jaber era “o primeiro CEO da história a ser presidente de uma COP, tendo tido um papel fundamental a moldar o caminho do país para a energia limpa”.
A revelação da estratégia concertada para modificar as páginas de Wikipédia atraiu duras críticas da parte dos ativistas pelo ambiente e pelos direitos humanos — que já têm vindo a protestar contra a escolha de Al Jaber desde que ela foi conhecida. Para Marwa Fatafta, do grupo ativista Access Now, o esquema é apenas mais uma ferramenta ao serviço da muito mais ampla estratégia dos Emirados Árabes Unidos para “controlar a narrativa” e para “branquear a imagem de Al Jaber”. Ao The Guardian, Fatafta destacou que as críticas a Al Jaber se estavam a intensificar à medida que a COP28 se aproximava. “Vejo isto como uma ação preventiva, para tentar controlar e moldar a narrativa tanto quanto possível.”
Quando, em janeiro deste ano, se soube que os EAU tinham nomeado Sultan Al Jaber como presidente da COP28, os principais grupos ambientalistas do planeta manifestaram-se contra a decisão. Tasneem Essop, a diretora-executiva do grupo Climate Action Network, avisou que Al Jaber “não pode presidir a um processo cuja tarefa é abordar a crise climática com um conflito de interesses desta natureza, sendo líder de uma indústria que é responsável pela própria crise”.
“Se ele não renunciar ao cargo de CEO, isso representa a captura total das negociações climáticas da ONU pela petrolífera nacional de um petro-Estado e pelos seus lobistas dos combustíveis fósseis”, acrescentou Essop. Em declarações à CNN, o consultor político Tom Evans, do think-tank climático europeu E3G, foi igualmente taxativo: “O líder de uma empresa nacional de petróleo está, obviamente, perante um gigante conflito de interesses.” A ativista sueca Greta Thunberg, o principal rosto do ativismo climático contemporâneo, foi mais longe e classificou como “completamente ridículo” que Al Jaber tenha sido escolhido para o cargo.
Al Jaber, por seu turno, tem garantido que os Emirados Árabes Unidos “olham para a COP28 com o grande sentido de responsabilidade e com a maior ambição possível”. O responsável da petrolífera estatal dos EAU já assegurou mesmo que a sua prioridade é um grande foco “em diminuir as emissões dos combustíveis fósseis, aumentando as alternativas de carbono zero viáveis e acessíveis” — uma declaração em que muitos têm visto um subtexto de defesa de estratégias de captura de carbono em vez de uma eliminação total do recurso a combustíveis fósseis.
Os Emirados Árabes Unidos, país anfitrião da COP que arranca esta semana no Dubai, têm procurado sublinhar as outras facetas de Al Jaber, que além de ser o líder da petrolífera estatal, foi também o fundador da Masdar (empresa de energias renováveis) e tem sido o enviado dos EAU para as negociações climáticas globais.
Ainda assim, desde a nomeação de Al Jaber como presidente da COP, têm-se multiplicado revelações que lançam sérias dúvidas sobre as reais intenções dos Emirados Árabes Unidos com esta cimeira. Apesar dos intensos esforços de comunicação e marketing que o país tem levado a cabo para destacar os seus pergaminhos em matéria climática, alguns dados são inescapáveis: a ADNOC (petrolífera liderada por Al Jaber) é a empresa que, a nível global, tem os planos de expansão da exploração de combustíveis fósseis mais incompatíveis com as metas climáticas do Acordo de Paris; documentos internos recentemente revelados mostram que os EAU planearam adiar um novo concurso para novas explorações de combustíveis fósseis para o primeiro trimestre de 2024 (para ocorrerem apenas depois da COP); e, mais recentemente, foi noticiado que o país estava a planear usar a presença de responsáveis de quase 200 países no Dubai para levar a cabo encontros bilaterais e multilaterais destinados a negociar novos contratos petrolíferos.
Atualmente, os Emirados Árabes Unidos são o sétimo maior produtor de petróleo do mundo, responsáveis pela produção de 4% de todo o petróleo consumido a nível global — e a exportação de petróleo representa cerca de um terço da economia do país. A petrolífera estatal, a ADNOC, tem planos ambiciosos para intensificar a exploração de combustíveis fósseis no futuro, que colidem com as metas do Acordo de Paris.
A organização da COP28 no Dubai, centro económico dos EAU, está a ser vista, por isso, por múltiplos ambientalistas como mais uma ferramenta da sua estratégia de greenwashing — ou seja, destinada a melhorar a imagem internacional do país no âmbito do combate às alterações climáticas, sem que isso se reflita em ações concretas de redução da exploração de combustíveis fósseis. Várias organizações ambientalistas, mas também de defesa dos direitos humanos, já apelaram ao boicote da cimeira, alegando que os Emirados Árabes Unidos não só não estão empenhados verdadeiramente na ação climática, como também têm um historial de violações dos direitos humanos.
Al Jaber, o CEO que quer “dançar em duas pistas ao mesmo tempo”
No centro de toda esta controvérsia está uma personagem relativamente desconhecida do plano global, mas que agora ganhou proeminência: Sultan Ahmed Al Jaber, o ministro dos EAU para a tecnologia, enviado do país para as negociações climáticas, líder da empresa de energias renováveis do pequeno país árabe e, sobretudo, o presidente executivo da ADNOC, a petrolífera estatal dos Emirados. Nascido em 1973 no emirado de Umm Al Quwain, sem qualquer ligação à elite monárquica do país, Sultan Ahmed Al Haber estudou no Reino Unido e nos Estados Unidos antes de subir ao topo do setor da energia dos Emirados.
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Na COP28, os negociadores oriundos de quase 200 países vão ter em cima da mesa o primeiro balanço global das políticas climáticas adotadas ao abrigo do Acordo de Paris, firmado em 2015 na COP21 — e o resultado desse balanço deverá ser profundamente negativo. O planeta continua longe do caminho que permitiria cumprir a principal meta de Paris (limitar o aquecimento global a 1,5ºC acima dos valores pré-industriais) e a esmagadora maioria dos compromissos climáticos assumidos nas diferentes cimeiras do clima estão por cumprir. A procura de combustíveis fósseis continua a aumentar (quando devia estar a reduzir-se significativamente, dando lugar a um triplicar das energias renováveis) e as empresas petrolíferas continuam a ter planos de expansão da exploração de petróleo nos próximos anos. Trinta anos depois da primeira cimeira climática da ONU, o observatório europeu Copernicus já veio dizer que 2023 deverá ser o ano mais quente em 125 mil anos de história da humanidade.
Há dois anos, na COP26, em Glasgow, os negociadores conseguiram uma pequena vitória: incluir, pela primeira vez na história dos tratados climáticos da ONU, o compromisso de reduzir o uso de combustíveis fósseis como medida necessária para combater as alterações climáticas. Contudo, a fortíssima pressão imposta nas últimas rondas negociais pelos países cujas economias mais dependem dos combustíveis fósseis levou a uma redução significativa da ambição do documento, que no final de contas não passou de uma declaração de intenções.
Numa altura em que as Nações Unidas classificam como mais urgente do que nunca um compromisso com vista à redução efetiva da exploração e consumo de combustíveis fósseis, a cimeira climática acontece justamente num dos países mais dependentes do petróleo.
A presidir a essas negociações estará um homem que, segundo um longo perfil-entrevista feito pelo The Guardian, “raramente dá entrevistas” e tem resumido as suas aparições públicas relativamente à COP28 a “intervenções com guião escrito, grandes em ambição mas curtas em substância, sem responder a perguntas e repetindo as mesmas poucas mensagens: ‘As alterações climáticas são o inimigo comum, temos de nos unir para o combater.’”
No seu site oficial, Sultan Ahmed Al Jaber é descrito como uma personalidade que se revelou “fundamental para fazer avançar a agenda verde dos Emirados Árabes Unidos, ao mesmo tempo que defende a importância da transição energética para acelerar o crescimento económico e cumprir os objetivos ambientais”. Mais: na qualidade de “enviado especial” para as questões do clima, Al Jaber “afirmou-se como o arquiteto da iniciativa dos EAU para a economia verde, suportando a liderança do país e a sua visão para alcançar o desenvolvimento sustentável em setores industriais fundamentais”.
A página apresenta ainda Al Jaber como o homem certo para presidir à COP28 numa altura em que o mundo “enfrenta o impacto das alterações climáticas, com o aumento dos desafios na energia, alimentação e segurança”, já que teve um papel “proativo” em mais de dez edições anteriores da COP, “incluindo no histórico Acordo de Paris, assinado na COP21 em 2015”. A missão de Al Jaber como enviado especial para as questões do clima é, diz ainda a mesma página oficial, “cumprir o compromisso do país de alcançar a neutralidade carbónica até 2050” — os Emirados foram “a primeira nação do Médio Oriente a dar um passo decisivo rumo à ação climática”.
Naquela página, abundam as citações de Al Jaber em diferentes discursos e intervenções. Em todas, há um tom comum: o principal desafio climático é o da energia, e a solução não passa por acabar totalmente com os combustíveis fósseis, mas explorá-los com menos emissões poluentes e integrá-los na solução para a transição energética. Nas suas intervenções, Al Jaber repete a importância da “ação climática progressiva” e aponta: “Para fazer face às necessidades energéticas atuais e futuras, o mundo precisa de todas as soluções que conseguir.” É necessário, disse numa intervenção já como presidente-designado da COP28, implementar “uma transição energética justa que não deixe ninguém para trás”.
Em resumo: de Al Jaber não se deverá esperar um posicionamento radical contra os combustíveis fósseis, que são responsáveis por 75% de todas as emissões de gases com efeito de estufa do planeta. Pelo contrário, o presidente da COP28, que é simultaneamente presidente de uma petrolífera, defende que qualquer cenário para as próximas décadas não dispensa os combustíveis fósseis.
Na entrevista ao The Guardian, confrontado com o facto de ser o CEO de uma petrolífera e estar à frente de negociações com vista a aumentar a ambição mundial das políticas climáticas, Al Jaber foi taxativo: “Não ter o petróleo, o gás e as indústrias das grandes emissões à mesma mesa não é o correto a fazer. Temos de os trazer todos. Temos de reimaginar esta relação entre produtores e consumidores.” Nessa mesma entrevista, o responsável da petrolífera dos Emirados vincou reiteradamente que o país tem investido na modernização dos seus processos de exploração e produção de petróleo — o que torna os combustíveis fósseis produzidos pela ADNOC consideravelmente mais sustentáveis, já que a sua produção é responsável por menos emissões de dióxido de carbono do que outros métodos usados noutros países.
“Temos de permitir que os combustíveis fósseis menos intensivos em dióxido de carbono façam parte do mix energético”, defendeu Al Jaber, referindo-se à realidade da produção de energia em 2050, o ano para o qual é apontada a meta da neutralidade carbónica. “Quer gostemos quer não gostemos, o mundo vai continuar a precisar desta fonte de energia.” O presidente da ADNOC também não se comprometeu com qualquer esforço na cimeira climática no sentido de assumir um compromisso com a eliminação dos combustíveis fósseis no planeta. “Nem eu, nem você, nem ninguém neste planeta sabe a resposta a esta pergunta [quando será possível acabar com os combustíveis fósseis]. Tudo depende de se conseguimos que o mundo se una em torno de um programa de descarbonização acelerado e muito sério.”
Para Christiana Figueres, a economista costa-riquenha que liderou a Convenção Quadro das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas entre 2010 e 2016 e que teve um papel decisivo na elaboração do Acordo de Paris, Sultan Ahmed Al Jaber quer “dançar em duas pistas de dança ao mesmo tempo” e representa uma abordagem “muito perigosa” à questão do clima. “Ele está a tentar dizer: ‘Nós, que somos produtores de combustíveis fósseis, vamos ser responsáveis pelas nossas emissões através de novas tecnologias de captura e armazenamento de dióxido de carbono. E nós, ou a presidência da COP, também vamos apoiar as alternativas [energéticas] com zero emissões de dióxido de carbono”, disse Figueres em maio deste ano num podcast que apresenta.
A antiga responsável das negociações climáticas da ONU disse compreender que, “de uma perspetiva dos Emirados Árabes Unidos”, faça sentido pensar que “a energia de combustíveis fósseis usada hoje vai continuar a fazer parte do mix energético global no futuro próximo”. “Contudo, na perspetiva de um presidente da COP, é muito perigoso. Simplesmente, não vejo a maioria dos países, especialmente os países mais vulneráveis, disponíveis para apoiar o presidente da COP neste assunto, porque é uma ameaça direta à sobrevivência deles”, disse ainda. “Quando se é presidente da COP, não se pode representar a posição do país de onde se vem. Tem de se ser capaz de ser neutro.”
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Concretamente sobre a ideia de Al Jaber de investir a sério na captura de dióxido de carbono — ou seja, em tecnologia que seja capaz de capturar o dióxido de carbono emitido pela produção de combustíveis fósseis, tornando o processo neutro em termos de emissões —, Christiana Figueres também atacou a proposta, habitualmente defendida pela indústria petrolífera no contexto das negociações climáticas. Sublinhando que, simplesmente, não existe tecnologia de captura e armazenamento de dióxido de carbono “comercialmente disponível e viável nos próximos cinco a sete anos”, Figueres lembrou que “há aqui um problema de timing, além de um problema moral”, já que o cumprimento das metas de Paris exige um corte de 45% das emissões de dióxido de carbono até 2030.
Petrolífera de Al Jaber lidera planos de expansão da produção de combustíveis fósseis
Em 2021, um estudo científico publicado na revista Nature concluiu que 90% de todo o carvão existente no planeta tem de ficar no solo para que continue a ser possível que o planeta cumpra a meta de Paris de limitar o aquecimento global a 1,5ºC acima dos limites pré-industriais. Se o acordo de Paris é para levar a sério, dizem os autores do estudo, 90% do carvão que se sabe existir nas reservas do subsolo nunca poderá ser extraído, bem como 58% do petróleo e 59% do gás.
É uma conclusão que ameaça estruturalmente toda a indústria dos combustíveis fósseis, já que inviabiliza por completo as receitas de muitos biliões de euros esperadas com a continuação da exploração de carvão, petróleo e gás. O cenário ideal perspetivado no estudo é o de que a exploração de combustíveis fósseis já tenha atingido o seu ponto máximo e que agora vá reduzindo cerca de 3% ao ano.
A situação é especialmente crítica para os países mais dependentes dos combustíveis fósseis. De acordo com o estudo, países como os EUA, a Rússia e as antigas repúblicas soviéticas têm no seu território metade das reservas mundiais de carvão — e terão de deixar 97% delas no solo. A Austrália, por seu turno, terá de deixar 95%, enquanto a China e a Índia terão de deixar por explorar 76% das reservas. No que toca ao petróleo, é nos países do Médio Oriente que estão mais de metade das reservas mundiais — das quais dois terços não poderão ser extraídas.
“Não estamos, de todo, perto das metas de Paris no que toca aos combustíveis fósseis que estamos a planear produzir”, disse o investigador Paul Ekins, da University College de Londres, um dos autores do estudo, em declarações citadas pelo The Guardian. “Sempre e em qualquer lugar em que se encontra petróleo e gás, todos os governos do mundo, apesar de tudo o que possam ter dito [sobre o clima], tentam extraí-lo do solo para a atmosfera o mais rapidamente possível.”
A proposta dos cientistas, admite Ekins, “exige que as empresas privadas reduzam as suas reservas”. Contudo, “os países com empresas petrolíferas nacionalizadas apenas vêem uma grande quantidade de riqueza a evaporar”. O lado positivo, disse ainda o cientista, é que é possível fazê-lo. “Sabemos que as tecnologias de energia limpa podem ser implementadas em grande escala muito rapidamente, quando os mecanismos políticos são postos em prática.”
Dentro do próprio setor energético têm-se multiplicado os alertas. Também em 2021, a Agência Internacional de Energia lançou o aviso: para permitir manter o planeta dentro das metas do aquecimento global e atingir a neutralidade carbónica até 2050, já não podiam ser desenvolvidos novos projetos de exploração de combustíveis fósseis. Aquele era o último ano em que era possível haver novos projetos. Mais: a partir de 2035, não podem ser vendidos mais carros alimentados a combustíveis fósseis.
“Se os governos estão a falar a sério sobre a crise climática, não pode haver novos investimentos em petróleo, gás e carvão a partir de agora. A partir deste ano”, disse na altura o diretor executivo da AIE, Fatih Birol, também ao The Guardian. “Cada vez há mais países a avançarem com compromissos de neutralidade carbónica, o que é muito bom, mas também vejo uma distância crescente entre a retórica e a realidade.”
Apesar dos repetidos alertas, a indústria dos combustíveis fósseis continua a investir em novos projetos de exploração, incompatíveis com as metas de Paris. Desde 2019, as Nações Unidas publicam periodicamente o “Production Gap Report”, uma análise detalhada à compatibilidade entre os planos existentes para a produção de combustíveis fósseis nas próximas décadas e as metas do Acordo de Paris.
Na edição mais recente do relatório, publicada no início de novembro, a ONU conclui que, somando todos os planos e projetos a nível global, o mundo estará em 2030 a produzir “mais do dobro da quantidade de combustíveis fósseis” do que aquela que seria consistente com o cumprimento da meta do Acordo de Paris de limitar o aquecimento global a 1,5ºC em relação aos níveis pré-industriais.
“Em conjunto, os planos e projeções dos governos levariam a um aumento na produção mundial de carvão até 2030 e na produção global de petróleo e gás até pelo menos 2050. Isto entra em conflito com os compromissos dos governos ao abrigo do Acordo de Paris e colide com a expectativa de que a procura global por carvão, petróleo e gás atinja o seu pico dentro desta década, mesmo sem novas políticas”, diz o relatório.
Em grande destaque neste conflito surge a Abu Dhabi National Oil Company (ADNOC), a empresa petrolífera estatal dos Emirados Árabes Unidos, presidida desde 2016 por Sultan Al Jaber, o homem que agora está à frente dos debates climáticos da ONU na COP28, a decorrer no Dubai.
Dados recentes divulgados pelo projeto GOGEL (Global Oil & Gas Exit List), da organização sem fins lucrativos alemã Urgewald, mostram que a ADNOC é a empresa do mundo que tem os planos de expansão mais incompatíveis com as metas climáticas. Segundo o jornal britânico The Guardian, a base de dados do GOGEL inclui mais de 1.600 empresas que, em conjunto, representam 95% da produção global de combustíveis fósseis.
Segundo aquela contabilização, só desde 2021 — o ano a partir do qual a AIE disse que já não deveria haver novos projetos de exploração de combustíveis fósseis para assegurar o cumprimento das metas ambientais — o setor já gastou 170 mil milhões de dólares em projetos para exploração de novas reservas de gás e petróleo. Apesar dos compromissos ambientais assumidos a nível global, diz o mesmo jornal, 96% das 700 empresas que exploram novas reservas de petróleo e gás continuam a fazê-lo — ao mesmo tempo que há mais de mil empresas a planear novos gasodutos, refinarias ou terminais de gás natural liquefeito.
De acordo com os dados do GOGEL, a ADNOC tem planos para expandir a sua produção de combustíveis fósseis numa quantidade equivalente a mais de 7 mil milhões de barris de petróleo. É mais do dobro da empresa que surge em segundo lugar, a petrolífera estatal iraniana, com planos de expansão da produção equivalentes a 3 mil milhões de barris. O “top 5” completa-se ainda com a ExxonMobil, a petrolífera estatal chinesa e a Chevron, todas com planos de expansão perto dos 3 mil milhões de barris.
“A magnitude dos planos de expansão da indústria é verdadeiramente assustadora”, disse o investigador Nils Bartsch, responsável pela base de dados GOGEL, em declarações citadas pelo The Guardian. “Para manter vivo o objetivo de 1,5ºC, é vital um declínio rápido e bem gerido da produção de petróleo e gás. Em vez disso, as empresas de petróleo e gás estão a construir uma ponte para o caos climático.” O ambientalista também comentou a nomeação de Al Jaber como presidente da COP28: “Penso que é ridículo. Não tenho a certeza de como é que uma pessoa que é responsável por este tipo de expansão da produção de petróleo e gás está habilitada a conduzir as negociações climáticas. É o mais óbvio dos conflitos de interesse que pode existir.”
Documentos internos mostram tentativa de greenwashing
Sultan Ahmed Al Jaber tem procurado defender-se das muitas acusações de que tem sido alvo, argumentando que, na qualidade de principal responsável de uma das maiores empresas petrolíferas do mundo, conhece a indústria como poucos — e defendendo que o setor dos combustíveis fósseis tem de ser chamado a ter um papel ativo na discussão climática. O líder da ADNOC tem, por outro lado, também defendido que os combustíveis fósseis não podem ser retirados do mix energético mundial tão cedo, já que não há alternativas viáveis em escala suficiente para dar resposta às necessidades energéticas do mundo. Por isso, considera Al Jaber, a grande aposta deve estar nas tecnologias de captura de dióxido de carbono.
Contudo, algumas revelações apontam no mesmo sentido das acusações dos ambientalistas: o de que Al Jaber e o governo dos Emirados Árabes Unidos estão interessados, essencialmente, em usar a presidência da COP28 como parte de uma estratégia de greenwashing.
Em outubro deste ano, o Politico revelou o conteúdo de um documento interno da ADNOC, contendo a estratégia de comunicação pública da petrolífera dos EAU para o ano de 2023. Nesse documento, a empresa admite que há um grande potencial para críticas ao duplo papel Al Jaber, como presidente de uma petrolífera e da COP28, e aponta que a resposta a essas potenciais críticas deve ser apresentar a empresa como um “fornecedor responsável de energia confiável e baixa em dióxido de carbono”. A estratégia de comunicação aponta também a possibilidade de obter o apoio de empresários, líderes políticos e jornalistas para os esforços no sentido de atenuar a imagem negativa da empresa.
Um dos visados nesses contactos é o enviado do governo norte-americano para as questões do clima, o ex-secretário de Estado John Kerry — que, efetivamente, viria a apoiar a liderança de Al Jaber na COP28. “Penso que o Dr. Sultan Al Jaber é uma excelente escolha, porque ele é o líder da empresa. Aquela empresa sabe que precisa da transição. Ele sabe e a liderança dos EAU está comprometida com a transição”, disse Kerry numa reação à nomeação de Al Jaber.
O documento revelado pelo Politico aponta também algumas estratégias para evitar as críticas e as acusações de inação ambiental — um dos maiores riscos, diz o documento, é a diferença entre o que se diz e o que se faz. Um dos elementos salta à vista: para proteger a reputação ambiental dos Emirados Árabes Unidos no período da COP28, uma importante ronda concursal para novas explorações de combustíveis fósseis foi adiada para o primeiro trimestre de 2024, para um momento descrito no documento interno e confidencial como “pós-COP”.
“Apesar de haver apelos por parte da comunidade climática para descontinuar os combustíveis fósseis (de alta intensidade), a posição da ADNOC é a de que tanto a energia limpa como a energia de baixa intensidade em dióxido de carbono (incluindo petróleo e gás) são críticas numa transição energética realista e inclusiva”, lê-se no documento citado, que também acrescenta que “2023 será um período de crescimento acelerado para a ADNOC, tanto no plano doméstico como internacionalmente, que tem de ser cuidadosamente gerido à luz da COP28”.
Em resposta ao Politico, um porta-voz da ADNOC limitou-se a dizer que, “como todas as grandes empresas”, a petrolífera dos Emirados “determina o timing de decisões empresariais e anúncios críticos com base num largo espectro de fatores internos e externos”. “Reconhecemos o imperativo de reduzir as emissões, ao mesmo tempo que fornecemos de modo responsável a energia de que o mundo precisa”, disse ainda o porta-voz. “Tanto as energias renováveis como a energia convencional vão continuar a ser necessárias para assegurar uma transição energética justa e responsável.”
Mas o documento interno e classificado como confidencial vai mais longe, afirmando mesmo que a estratégia de comunicação da petrolífera tem como objetivo “posicionar proativamente e proteger as reputações” das várias organizações em que Al Jaber está envolvido, incluindo a COP28, a empresa de energias renováveis Masdar e ainda o Ministério da Indústria e da Tecnologia Avançada dos Emirados Árabes Unidos. Para isso, nota o Politico, o documento fala em “planos de comunicação alinhados e coordenados”, “uma reunião semanal de coordenação” e a certeza de que a ADNOC “vai ter um papel importante na COP28, como parte de um esforço nacional coordenado e alinhado”.
Ao Politico, fonte da organização da COP28 assegurou que “o pessoal da COP28 está separado de qualquer outra entidade e opera com autonomia e em coordenação” com a agência climática das Nações Unidas. “A presidência da COP28 tem o seu escritório independente, o seu pessoal e um sistema informático individual”, disse ainda a mesma fonte. Em junho deste ano, o jornal The Guardian tinha noticiado que a ADNOC e a presidência da COP28 partilhavam o mesmo servidor de e-mail, o que permitia à petrolífera ler os emails da organização da cimeira.
Ao longo dos últimos meses, outros documentos internos divulgados pela imprensa internacional pintam uma imagem semelhante. Em agosto, o The Guardian revelou um documento interno com uma lista de “tópicos sensíveis” para o governo dos Emirados Árabes Unidos para a COP28. Aprovado pelo governo, o documento inclui uma lista de “mensagens estratégicas” que os responsáveis da COP28 devem veicular quando tiverem de responder a perguntas dos jornalistas.
“Temos de reduzir as emissões nos sistemas dos quais dependemos hoje”, lê-se numa das mensagens chave, destinada a defender a ideia de que o que é necessário é apostar na produção de combustíveis fósseis que emitam menos dióxido de carbono, e não acabar definitivamente com essa produção. Para defender a credibilidade de Al Jaber, a ideia chave é: “A carreira completa do Dr. Sultan (na energia, no clima e na diplomacia) dá-lhe a experiência necessária para se envolver de modo construtivo, disromper e unir os setores que são necessários para alcançar uma ação significativa.”
Em todo o documento, diz o The Guardian, só há uma referência aos combustíveis fósseis. A eventuais perguntas sobre o papel dos Emirados Árabes Unidos na indústria dos combustíveis fósseis, deve responder-se que o país “está a ajudar a construir o sistema de energia de amanhã, ao mesmo tempo que reduz a intensidade de dióxido de carbono do petróleo e do gás”.
Em setembro, por outro lado, o The New York Times revelou o conteúdo de uma reunião de preparação da COP28 que incluiu a participação de vários responsáveis do governo dos Emirados Árabes Unidos e da cimeira climática. A reunião centrou-se, essencialmente, na definição de estratégias para melhorar a imagem do país durante as semanas em que vai estar sob os holofotes mundiais. Na reunião, em que estiveram também presentes consultores de comunicação, os responsáveis procuraram antever as críticas que poderiam chover sobre o país, incluindo sobre violações dos direitos humanos.
Ainda mais recentemente, a BBC noticiou que os Emirados Árabes Unidos estavam a planear uma série de encontros privados bilaterais e multilaterais durante a COP28 para discutir possíveis negócios globais relacionados com combustíveis fósseis. A BBC teve acesso a documentos preparados pela presidência da COP28 que listam os tópicos a discutir em encontros com pelo menos 27 responsáveis governamentais diferentes. Manifestar a disponibilidade da ADNOC para apoiar a Colômbia a desenvolver a exploração de combustíveis fósseis, debater com a Alemanha o fornecimento de gás natural liquefeito ou assegurar parcerias com o Brasil para a produção de petroquímicos estão entre os tópicos listados no documento. Também era sugerida a possibilidade de abordar, com a China, uma eventual parceria para a exploração de gás natural liquefeito Moçambique, no Canadá e na Austrália.
Esta quarta-feira, na véspera da abertura oficial da COP28, Al Jaber deu uma conferência de imprensa no Dubai para negar as alegações movidas contra ele. “As alegações são falsas, não são verdadeiras, são incorretas e não são precisas”, disse. “Garanto-vos que nunca vi esses tópicos a que se referem nem usei esses tópicos nas minhas discussões”, afirmou o responsável. “Acham que os EAU ou eu próprio precisamos da COP ou da presidência da COP para estabelecer negócios ou relações comerciais? Ao longo dos últimos 50 anos, este país foi construído em torno da sua capacidade de construir pontes e de criar relações e parcerias.”