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Multiplicam-se os sinais de radicalização social no que diz respeito ao clima. Alguns jovens partem do pressuposto de que a mudança climática é inexorável, e consideram que qualquer hesitação se traduz em tempo perdido e terá custos futuros desproporcionados e trágicos. A carga emocional traduz-se num discurso apocalíptico com visibilidade mediática, por vezes acompanhado por ações de alguma violência. Este sentido de urgência não é socialmente consensual, alimenta indiretamente o ceticismo, e urge reencontrar um novo acordo que nos permita ultrapassar com sucesso as grandes transformações que se aproximam.
Existe base científica que suporte o discurso apocalíptico? Donde provém a evidência que temos da mudança climática, dos mecanismos que a alimentam e da sua inexorabilidade? A base científica da relação entre a concentração de CO2 e a temperatura da atmosfera tem mais de cento e vinte anos, mas esse efeito não foi percetível ao longo de quase todo o século XX, confundindo-se com a variabilidade natural do clima. A evidência começou a ser construída a partir de três fontes: as projeções de modelos numéricos do clima, as paleotemperaturas reconstruídas a partir de registos geológicos ou biológicos, e o registo instrumental da temperatura do ar na superfície, em terra e no mar.
O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) das Nações Unidas tem procurado fomentar a precisão crescente destas fontes de informação, ao mesmo tempo que conduz “meta-análises” da literatura publicada, apoiadas por painéis de especialistas que procuram de forma indutiva estabelecer a verosimilhança de cada uma das afirmações que estão reproduzidas nos Relatórios do IPCC.
Não existem verdades científicas definitivas e a ciência envolve sempre uma fração importante de controvérsia. No caso das ciências da Terra, a margem para controvérsia é grande porque os impactos das emissões de gases de efeito de estufa não podem ser simulados realisticamente em laboratório, como acontece com as ciências experimentais, nem podem ser deduzidas de um conjunto pequeno de axiomas, como acontece com a matemática. Existe assim um terreno fértil para interpretações alternativas. Por vezes, estas interpretações provêm de comunidades cientificamente muito informadas.
Em todas as fontes que suportam a convicção da inexorabilidade da mudança climática é possível encontrar limitações. Os modelos numéricos, apesar da sua evolução e complexidade crescente, não capturam a totalidade dos processos do sistema terrestre. As paleotemperaturas são induzidas a partir das abundâncias de dois isótopos do oxigénio medidas em amostras de glaciares, ou de indicadores indiretos como os anéis das árvores de maior longevidade. As medições de temperatura à superfície são afetadas pela distribuição irregular das estações meteorológicas de referência e, no caso das medições por satélites, pela necessidade de converter radiâncias no topo da atmosfera em temperaturas à superfície, através de correções que reproduzem da melhor maneira possível a transferência radiativa.
Apesar da complexidade inerente a todos estes procedimentos para a quantificação objetiva do aquecimento global e da sua relação com as emissões de gases de efeito de estufa, saliente-se que, à medida que aumenta a quantidade e diversidade de dados de observação, bem como a qualidade dos modelos numéricos, tem-se sempre reforçado a convicção de que os processos se encontram bem caracterizados e que o único caminho que nos resta para assegurar a estabilidade do clima passa pela descarbonização.
Os Relatórios do IPCC são importantes para guiar os decisores políticos, mas têm um impacto menor fora desse circuito. As descrições dos futuros possíveis são áridas e, na tentação de serem objetivas, escapa-lhes muito do que é importante na vida das comunidades, da sua história e da sua cultura. A perceção social crescente da mudança climática está mais relacionada com os fenómenos meteorológicos extremos relatados em tempo real pelos media do que com as meta-análises do IPCC ou as opiniões dos cientistas na televisão. Mesmo a comunidade que segue de perto os media tem uma representatividade social limitada.
Ceticismo climático
Escapa-nos muitas vezes que existem sinais de redução da perceção social dos riscos associados à perda da estabilidade climática, que são particularmente importantes nas economias ricas e fortemente dependentes dos hidrocarbonetos1. Mesmo na Alemanha, um país europeu com elevados índices de literacia científica, o ceticismo climático é importante, com cerca de 20% a duvidar da existência de mudanças no clima e cerca de 30% a duvidar da origem antropogénica, verificando-se, entre 2017 e 2019, um crescimento destes valores2. Estudos realizados noutros países traduzem realidades semelhantes.
Podemos conviver sensatamente com o ceticismo climático? As sociedades têm por vezes a necessidade de fazer conviver uma convicção dominante, assente em ciência escrutinada pelos processos habituais dos cientistas, com uma convicção minoritária muito forte alicerçada muitas vezes em teorias da conspiração, mas que pode invocar também suporte científico. Os três exemplos mais referidos4 são a vacinação, os organismos geneticamente modificados e, agora cada vez mais, a mudança climática. Nos três casos, estamos a falar de problemas centrais da humanidade, porque se relacionam com a erradicação de doenças, o aumento da produção de alimentos e o equilíbrio do ambiente ocupado pelos humanos.
Esta situação é particularmente sensível porque parece ser possível encontrar preditores para estas três variantes de ceticismo. A compreensão da ciência está correlacionada negativamente com a recusa da vacinação e a utilização de organismos geneticamente modificados4, mas não está correlacionada com a negação da mudança climática ou dos mecanismos que a condicionam4. A religiosidade está também correlacionada com a recusa da vacinação. O conservadorismo político (e económico?) está correlacionado com o ceticismo climático4.
À partida, os valores conservadores deveriam ser incompatíveis com o ceticismo climático, uma vez que as estratégias que podem conduzir à redução da amplitude da mudança climática procuram conservar os valores naturais e assegurar que são legados às gerações futuras. Poder-se-ia argumentar que uma atitude conservadora deveria privilegiar um mínimo de alterações do seu modo de vida e do comportamento humano no geral, mas esse mínimo tem de assegurar a estabilidade do clima como um valor a preservar. Tal como acontece hoje com a conservação ambiental, que é um tópico cada vez menos fraturante, é preciso que a estabilidade climática obtenha um consenso social e político muito alargado.
O limite dos mecanismos económicos
O conjunto de medidas de mitigação aplicadas pelos diferentes governos democráticos, como forma de progredir na descarbonização, têm-se centrado na utilização de mecanismos económicos sob a forma de taxas. Esta estratégia, que procura utilizar o mercado para discriminar positivamente os comportamentos “amigos da estabilidade climática”, tem impactos sociais importantes, com aumentos de preços de bens ou serviços essenciais. Apesar de ser uma estratégia culturalmente “liberal”, por evitar restrições impostas por um Estado forte, cria um terreno fértil para o populismo, porque os segmentos mais frágeis da população sofrem uma real injustiça social. Para eles, qualquer variação mesmo pequena dos recursos de que dispõem tem um impacto desproporcionado na sua vida e na sua família.
Repete-se demasiado que é preciso viver com menos recursos devido à finitude do planeta, esquecendo-se que muitos cidadãos sempre viveram com muito poucos recursos. Por isso, as estratégias de mitigação acabam por ser interpretadas muitas vezes como representando os interesses de uma minoria que vive confortavelmente3. Contraditoriamente, uma estratégia cuja materialização utiliza mecanismos de mercado alimenta também as visões radicais dos que veem nela uma forma inconsequente de lidar com a mudança climática, com resultados duvidosos. O mercado tem uma capacidade espantosa de adaptação e multiplicam-se os exemplos de “greenwashing”, que aumentam a desconfiança sobre a seriedade destas estratégias.
Democracia e clima
Do ponto de vista da democracia, a situação não parece hoje muito favorável. As metas definidas de forma tentativa pelos organismos internacionais não estão a ser atingidas, apesar do esforço real, por exemplo, da União Europeia. As Nações Unidas declaram-se impotentes. Os governos têm muita dificuldade na imposição de agendas mais firmes na transição energética e ambiental. Alguns setores sociais extremam-se, quer do lado do ativismo climático e do discurso apocalíptico quer do lado do populismo e do discurso negacionista. Ambos os discursos conduzem à inércia.
Nesta divisão social entre céticos e radicais não pode haver vencedores. Sendo verdade, como disse Samuelson, evocando Max Planck, que a ciência avança funeral a funeral, a reposição de um “novo acordo” nunca poderá ser obtida pela imposição de uma interpretação científica transformada em lei, independentemente da sua verosimilhança. É necessário reduzir a conflitualidade climática, tratando com clareza os diferentes pontos de vista, não recusando a realidade dos impactos negativos da descarbonização, e recorrendo com prioridade a estratégias que não deprimam economicamente os setores sociais mais vulneráveis. É preciso um novo acordo que retire da conflitualidade política a necessidade da mitigação da mudança climática, de forma similar ao que foi feito com a vacinação.
A responsabilidade corporativa
Devemos também responsabilizar os atores corporativos nos casos da desinformação intencional? Esta questão está na ordem do dia, em particular pela polémica à volta do conhecimento que os cientistas da Exxon teriam desde há várias décadas da magnitude da mudança climática e que terá sido sonegada do conhecimento público. O exemplo da polémica à volta do tabaco está ainda na memória de todos. E, nos casos em que se possa concluir que não estamos na presença de atividades tidas à época como úteis e proveitosas e que geraram consequências imprevisíveis, mas sim de desinformação intencional, temos de encarar como possível a responsabilização.
Um argumento muito forte é que as pessoas do futuro têm direito à autodeterminação e à existência, e que estes são direitos substantivos, postos em causa com a desinformação intencional, pelo que existe uma base jurídica para a responsabilização corporativa6. Não sendo certamente a ferramenta mais importante para o estabelecimento de um “novo acordo”, a responsabilização legal da desinformação intencional não pode ser descartada.
À responsabilidade corporativa temos também de adicionar o papel de cada um de nós. Tanto as ações como as palavras têm um peso que não pode ser esquecido. A leviandade no discurso e nas opções de vida pode ser socialmente aceitável, mas não é inócua.
A necessidade de um novo acordo
Resta-nos, assim, um caminho difícil, mas necessário. Feito de informação científica compreensível e de compreensão. Capaz de separar o essencial do secundário e de procurar soluções que sejam compatíveis com todos os segmentos sociais. Que permita a tomada de medidas políticas difíceis numa sociedade democrática, porque elas são alicerçadas numa compreensão social alargada. Que retire das agendas políticas a mitigação e adaptação à mudança climática e as incorpore no património comum.
Se não conseguirmos percorrer este caminho, então serão os acontecimentos extremos que farão o seu trabalho. Veremos fogos florestais imparáveis, como os que observámos muito recentemente na Califórnia, na Austrália ou aqui mais perto na Grécia. Assistiremos impotentes a cheias rápidas antes inimagináveis em zonas como o Norte da Europa, ou com a capacidade destruidora recentemente observada na Líbia. Agravar-se-ão os furacões de magnitude superior a 4 em diferentes bacias oceânicas. Arriscaremos a segurança alimentar com as secas extensivas que destroem a produção agrícola. Estes fenómenos extremos vão impor a agenda.
As catástrofes naturais não reconhecem fronteiras, nem partidos, nem sensibilidades científicas. Se não formos muito mais atuantes, o tempo para repor a estabilidade climática será demasiadamente curto. A serenidade será inviável, e o discurso apocalíptico virá uma e outra vez a acompanhar cada episódio dramático. Cada um irá arrastar consigo um grande número de vítimas para as quais chegará mesmo o fim do mundo.
Referências
- Stoknes, P. E. (2015). What we think about when we try not to think about global warming: Toward a new psychology of climate action. Chelsea Green Publishing.
- Knollenborg, L., & Sommer, S. (2023). Diverging beliefs on climate change and climate policy: The role of political orientation. Environmental and Resource Economics, 84(4), 1031-1049.
- Cross, B. (2023). Climate Change and the Politics of Apocalyptic Redirection. Political Studies Review, 21(2), 223-237.
- Rutjens, B. T., Sutton, R. M., & van der Lee, R. (2018). Not all skepticism is equal: Exploring the ideological antecedents of science acceptance and rejection. Personality and Social Psychology Bulletin, 44(3), 384-405.
- Wentz, J., & Franta, B. (2022). Liability for Public Deception: Linking Fossil Fuel Disinformation to Climate Damages. Env’t L. Rep., 52, 10995.
- Szalay-Szandtner, R. G. Climate Change Denialism and the Rights of Future Generations. MSc Thesis.