A história do jazz norte-americano já não se conta por completo sem o seu nome. Se a divisão for reduzida à dos trompetistas, então Ambrose Akinmusire estará garantidamente entre os mais importantes e inovadores músicos da sua geração, do jazz e da “música negra norte-americana”. Com 37 anos, o músico norte-americano não se formou apenas nas universidades (também as frequentou) mas também nas ruas de Oakland, estado da Califórnia. Foi precisamente a partir de Oakland que nos atendeu uma chamada telefónica, para uma entrevista sobre o seu percurso e sobre o concerto que dará no próximo fim-de-semana — sábado, 10 de agosto — na Gulbenkian, em Lisboa, no âmbito do festival Jazz em Agosto, dedicado este ano à música de resistência.
Autor de vários álbuns editados em seu nome absolutamente decisivos na história do jazz deste século (nomeadamente os últimos quatro, um dos quais ao vivo, que editou através da Blue Note Records, uma das mais famosas casas discográficas da história do jazz americano), Ambrose Akinmusire já colaborou com músicos de referência. Entre eles estão o saxofonista Steve Coleman, o pianista Vijay Iyer, a baixista e cantora Esperanza Spalding, o trompetista (já falecido) Roy Hargrove, o baterista Jack DeJohnette e o pianista Brad Mehldau. No ano passado, o The New York Times chamou-lhe mesmo “possivelmente o mais distintivo, esquivo e satisfatório trompetista da sua geração”.
Ao Observador, Ambrose Akinmusire falou do seu último álbum, Origami Harvest, que motiva a atuação próxima em Lisboa e que aprofunda a sua fuga ao cânone jazzístico tradicional, estabelecendo um diálogo com a música de câmara, o hip-hop e a spoken word mais interventiva. A conversa, porém, estendeu-se a outros tópicos: da paternidade recente, que lhe acentuou o gosto pela improvisação e o tem feito perceber que a abordagem à música e à vida deve ser a mesma, à violência policial e ao racismo no seu país, que tem vindo a denunciar desde o seu segundo álbum (e primeiro editado na Blue Note Records), de 2011. Insistente tem sido também a vontade de não soar aos seus ídolos e de compor música que não se limite a reescrever o passado.
Vem a Portugal em breve, para um concerto no festival Jazz em Agosto, mas já esteve no país algumas vezes, a última das quais no ano passado, para um concerto no festival Outono em Jazz, na Casa da Música, Porto. Como foi essa última visita?
Foi ótima, muito divertida. Gostei muito da sala do concerto. Também tivemos um par de dias livres, foi bom poder andar a passear e ver um pouco da arquitetura da cidade. Além disso, comemos otimamente.
Alguma refeição em especial de que se lembre?
Sim. Não me lembro do nome do restaurante, mas o hotel em que ficámos tinha um restaurante praticamente na porta ao lado que servia peixe fresco maravilhoso.
No concerto que dará em Lisboa, no Jazz em Agosto, terá consigo músicos que tocaram no seu último disco [o pianista Sam Harris e o quarteto de cordas Mivos, com violino, viola de arco e violoncelo], Origami Harvest, que irá apresentar em palco. Mas terá também Justin Brown em vez de Marcus Gilmore na bateria e Kokayi a fazer as partes rap. O Kokayi vai improvisar ou vai usar as palavras do Kool A. D., rapper e artista de spoken word que — esse sim — participa no disco?
Vai improvisar. A música que escrevi para este álbum tem servido nos últimos concertos quase como enquadramento para as pessoas improvisarem a partir dela. Portanto o o Kokayi não fará as partes de rap do Kool A. D. Este será talvez o nosso quinto concerto com esta formação e há uma identidade nova que se está a formar. O disco que tocamos ao vivo é já um disco diferente daquele que editei.
Numa entrevista a propósito do álbum que o leva agora a Lisboa, referiu que odiava a palavra “mescla” mas que este disco soava a um conjunto de coisas do seu iPod “tocadas ao mesmo tempo”. Importa-se de desenvolver a ideia?
Não é algo assim tão profundo, todos os artistas são uma coleção das suas influências. Oiço muitas coisas cuja instrumentação está mais associada com a música clássica, daí o quarteto de cordas. Também oiço, claro, jazz e hip-hop. Há muito tempo que oiço coisas muito diferentes e acho que o meu trabalho tem dado várias pistas disso. Já tinha usado cordas não no no álbum anterior a este, mas no antecessor. No meu primeiro disco tinha uma cantora de ópera. Também já tive canções com linhas de baixo muito próximas do hip-hop. O meu trabalho nunca foi de um só estilo.
Na entrevista em que falavas da mistura de sons do seu iPod tocados ao mesmo tempo, falava no Kendrick Lamar [Ambrose Akinmusire tocou no disco To Pimp a Butterfly, editado pelo rapper] e em “muitas pessoas do jazz” que parece que estão “a apagar os géneros musicais” e as fronteiras entre esses estilos. Consegue identificar uma causa para isso? E acha que é sobretudo uma moda recente ou que sempre aconteceu?
Acho que acontece há muito tempo e que é simplesmente humano, mas acho que está a acontecer cada vez mais. Talvez por causa do estado da política, do estado do mundo, as pessoas vão-se aproximando da diferença. Talvez seja uma resposta ao que veem. Em todo o lado parece que há junções a acontecer. A música reflete os tempos que se vivem e no campo artístico nota-se essa reação de aglutinação.
Essa mistura de coisas tão diferentes pode também ser uma solução para se criar uma coisa original? Pergunto-lhe isto porque é normal, na juventude, termos referências tão fortes — quase ídolos — que tentamos soar como eles, escrever como eles, ser como eles. Ter influências múltiplas ajuda a ser-se menos igual a cada uma delas?
Passei, sem dúvida, por uma fase de imitar outros — mais, ainda estou a passar por ela de certo modo. Quando estou a praticar, a tocar em casa, isso acontece. Ultimamente tenho andado muito em torno da música do [também trompetista, que viveu nos anos 1930, 1940 e 1950,] Clifford Brown e de outras pessoas. Tentar perceber como eles pensavam passa, para mim e numa primeira fase, por os imitar. Mas isso é enquanto pratico.
Lembra-se do momento em que se libertou um pouco de um ou outro modelo específico de artista?
Quando tinha 19 anos, passei um ano em Nova Iorque e percebi que a maior parte dos trompetistas soava ao Freddie Hubbard. Adoro o Freddie, mas para mim aquilo não fazia sentido. Ainda muito novo, pensava já no que as pessoas deixavam para trás, de certa forma estava a pensar em legado: qual é o contributo que se acrescenta, o que é que se deixa para trás? Acho que esse pensamento veio muito de andar desde cedo com malta como o Steve Coleman ou o Donald Bailey. Conhecia-os, já tinha tocado com eles com 19 anos. Olhava para eles, olhava para a cena musical do jazz e questionava-me sobre o que é que era preciso acrescentar de novo. Mas claro que tive um período de imitar os meus heróis, como o Lee Morgan e outros.
É notório que conhece a tradição e a história do jazz, mas não é propriamente um tradicionalista, não toca de forma meramente “clássica” nem se dedica a standards. Conhecer a tradição foi importante para fazer algo diferente? É importante conhecer as regras para as destruir com propriedade?
Acho que é muito importante conhecer a tradição, mas noto que muitas pessoas pensam de forma um pouco contrária. Para mim, não se trata tanto de destruir as regras mas de as conhecer tão bem que conseguimos olhar para elas de ângulos diferentes, para criar algo novo. É como quando conheces o teu carro tão bem que consegues usar individualmente as peças para montar um carro totalmente diferente. Isso é muito diferente de decidir que se vai fazer um carro novo a partir do nada. Talvez seja possível fazê-lo, é possível que consigamos algo, mas há uma razão para que seja preciso conhecer as peças para pôr o carro a andar.
[Trailer documental do álbum ‘Origami Harvest’, editado por Ambrose Akinmusire em 2018:]
Voltando ao disco Origami Harvest: porque é que convidou o Mivos Quartet e o Kool A. D. para participarem? O que é que o interessou mais naquilo que eles fazem?
O Victor e eu somos da mesma área [Oakland] e, quando estava a pensar no disco, queria simplesmente ter alguém que fosse destemido o suficiente para fazer o que quer que cada momento pedisse. O Victor é um rapper mas sinto-me ligeiramente desconfortável em chamar-lhe apenas um rapper, porque ele é tantas coisas diferentes: é um poeta, um narrador, um rapper, está a fazer tantas coisas… É por isso que o convidei a fazer parte disto.
Em relação a Mivos, acho que o motivo [para o convite] não foi muito diferente: podem ir a qualquer lado a qualquer momento, quando estão a tocar. Estão dispostos a tocar a coisa mais bonita e, na parte musical seguinte, tocar a coisa mais feia e suja que já ouviste. E conseguem tocar tudo o que fica no meio dessas duas coisas. Além disso, muitas vezes noto que, com músicos de cordas, é difícil entrar na mesma pista do que eles, ritmicamente. E com o Mivos não tenho esse problema.
Já disse que à medida que envelhece, vai sentindo cada vez mais que está cá “apenas como um escriba, que vai anotando coisas”. Também disse, sobre esse processo: “É o que sai, não há julgamento, não há ideias pré-concebidas”. Como acha que o seu crescimento pessoal, a sua maturidade e aprendizagem, o afetaram e o guiaram para essa sensação e essa liberdade?
Tenho percebido que isto não é nada de especialmente profundo, as pessoas expressam essa sensação de muitas maneiras diferentes, mas aprendi que não há, na verdade, nenhuma separação entre a vida e a música. Podemos acordar um dia e dizer que vamos fazer isto e aquilo, mas assim que saíamos da porta de casa não sabemos o que vai acontecer ou o que nos vai aparecer pelo caminho. Portanto, acho que ser simplesmente capaz de dançar com a vida, aceitar o que lá está e criar a partir daí, é a melhor maneira de viver. Com a música acontece o mesmo, improvisa-se. A vida está mesmo muito relacionada com a improvisação, com a forma de reagirmos e lidarmos com cada momento inesperado.
Acho que compor é difícil porque podemos ter a ilusão de que podemos ir ao passado e reescrevê-lo, reescrever coisas. Tento não fazer isso. A minha abordagem passa por muito por encontrar formas de acreditar cada vez mais que a música e a vida são exatamente a mesma coisa, pelo menos na forma como lidamos com elas.
É curioso fazer essa comparação entre música e vida, porque era por aí que ia prosseguir. Uma crítica ao seu mais recente disco descrevia esta música como “inquieta”, “constantemente incerta” e apenas “semi-comfortável”. Fazendo essa ligação com a vida, a sua inquietação e as suas incertezas cresceram com a idade? Foi perdendo certezas à medida que crescia?
Acho que tive sempre uma posição de questionamento sobre tudo, sem grandes certezas. Uma parte importante deste álbum, e não falo dela a muitas pessoas, é que antes do disco a minha vida mudou completamente: mudei-me de novo para a minha terra [Oakland] e um mês depois desse regresso tive um filho. Estava a trabalhar neste disco quando o meu filho nasceu. Só ter isso a acontecer na minha vida e andar a pensar em como adquirimos informação, ou como andamos pelo mundo — só vendo-o, ao mesmo tempo que tenho pais que estão a envelhecer, vendo esse ciclo das coisas, vendo a beleza nos resultados da improvisação na vida… Penso que tudo isto está muito relacionado com ter sido pai, fez-me pensar cada vez mais sobre improvisação porque é isso que os bebés fazem: não percebem tudo o que se está a passar, vão improvisando, reagindo à sua maneira a cada momento.
“My Name Is Oscar”, “Rollcall for Those Absent” e “Free, white and 21 [três temas interventivos com palavras duras sobre violência policial, racismo e desigualdades]. Ao longo destes anos não se tem furtado a contribuir para discussões importantes que estão a acontecer no seu país e no mundo. É uma pergunta habitual, mas gostava de saber o que pensa: acha que os músicos têm um papel importante em contribuir para essas discussões? E, já agora, tem uma relação especial, como ouvinte, com música que o faz ou nem por isso?
Tenho tantas respostas para dar sobre isto… antes de mais, faço estas coisas porque são a minha vida, não porque estou a tentar conscientemente ser político ou algo assim. São assuntos que fazem parte da minha vida, ainda mais agora que estou a viver novamente em Oakland: o Oscar Grant foi assassinado a dez minutos do sítio onde estou a viver agora. Por vezes passo pela casa em que ele vivia enquanto conduzo, é algo que está muito presente na minha vida, que é real. Às vezes ando no comboio em que foi morto e os mesmos polícias estão por lá…
Um afro-americano nos Estados Unidos da América de certo modo sente-se caçado, tem um medo que é inseparável do que significa ser afro-americano. Não é possível evitar esse medo — por mais rico ou famoso que se seja, seja a pessoa quem for, esse medo está presente. Essa é a minha realidade e é natural que seja refletida na música. Se acho que os músicos têm um papel vital e uma obrigação de falar de política ou de coisas que estejam a acontecer? Acho que seria muito bonito se toda a gente que tem uma plataforma para falar, por maior ou mais pequena que seja, encontrasse uma forma de criar um debate. Não tem de ser um debate sobre política ou raça, pode ser sobre género, sobre o que for. Acho que o debate é necessário. Vivemos hoje numa sociedade em que a discussão não é encorajada, pelo menos a discussão mais longa. Espero que até certo ponto esteja a encorajar debates.
Como vê o seu país reagir a essas discussões sobre violência policial e desigualdade racial? Depois do impacto de um movimento como o “Black Lives Matter”, em que ponto acha que estão as coisas, tendo em conta que não só as observa de perto como tem uma experiência empírica a lidar com elas?
Muitas pessoas perguntam-me porque falo destes temas nos meus álbuns. Faço isso como uma espécie de leitmotif — são temas que têm aparecido em todos os álbuns — mas também o faço para dizer que as coisas não estão a mudar com os anos, pelo menos o suficiente. Ainda são discussões relevantes para se ter hoje. De certo modo [riso nervoso] é uma maneira engraçada de tornar os meus álbuns relevantes socialmente, de garantir que eles continuam relevantes ao longo do tempo. Ver que nada está a mudar…
As pessoas pensam que este álbum que lancei está relacionado com o Trump, mas respondo-lhes: fiz o tema “My Name Is Oscar” em 2011. Foi há muito tempo. Continuo a insistir porque o problema nunca foi resolvido. Comecei a abordar estes temas quando o presidente era Obama. Fiz esse tema de 2011 antes do aparecimento do movimento “Black Lives Matter”. E tenho a sensação de que quando o Trump deixar de ser presidente, vou continuar a fazer isto e continuará a ser relevante. Isto não tem nada a ver com o Trump, especificamente — nós, negros, andamos a ser mortos desde que chegámos aqui. Não houve um momento em que não o tenhamos sido. Simplesmente agora o Trump estar como presidente tem levado o mundo a olhar com mais atenção para isto e tem feito as pessoas que cometem essas atrocidades sentirem-se com mais força e com mais poder, já não precisam tanto de se esconder. Mas lá porque estavam escondidas não significa que não andassem a causar os mesmos danos que estão a causar agora. É uma m**** que o Trump esteja como presidente, mas na verdade não acho que as coisas tenham mudado assim tanto. Mas estou só a falar do meu ponto de vista.
Claro, era aquele que queria ouvir. Mudando um pouco de assunto: nasceu e cresceu em Oakland, na Califórnia. A música, a espiritualidade e a religião eram coisas que estavam muito presentes na sua vida desde pequeno, pelo que li. Como foi o início da sua relação com a música e como foi o meio em que cresceu?
A música esteve muito presente em grande parte da minha infância e faz parte de muitas das minhas memórias mais antigas. A família da minha mãe veio do Mississippi depois do período da segunda grande migração, quando muitas pessoas do sul dos EUA vieram para a costa oeste do país à procura de melhores trabalhos e melhores oportunidades. Além disso, a minha mãe ainda se lembra de ter andado nos campos de algodão do Mississippi a apanhar algodão, já muito depois de a escravatura ter sido declarada ilegal. A razão pela qual falo nisto é porque a música, na comunidade negra, tem há muito um papel de escapatória de um destino, de uma situação horrível. A minha família trouxe esse legado consigo e lembro-me de, em miúdo, ouvir a minha avó murmurar pela casa velhas canções espirituais.
Havia um piano em casa e sempre que passava pelo piano tocava qualquer coisa. Eventualmente os meus pais puseram-me a ter aulas de piano. Também íamos muito à igreja e, sempre que podia, depois da missa acabar arranjava maneira de ir para o piano tocar.
Quanto tempo passou entre começar a tocar piano e começar a trocar trompete, o seu instrumento principal hoje em dia?
Muito tempo [risos]. Quase dez anos. Comecei a tocar piano com 3 ou 4 anos, andei a tocar na igreja e depois comecei a tocar trompete quando estava no 6º ano. Mas a grande memória musical que tenho da infância e juventude é esta: lembro-me de ouvir cantoras de igreja a cantar bastante mal, individualmente, mas depois quando o coro se juntava soava maravilhoso. É capaz de ter sido a minha primeira experiência poderosa com a música, tinha estado sempre presente na minha vida mas vi ali uma espécie de truque mágico. Como é que aquilo acontecia, como é que soavam mal cantando sozinhas mas quando se juntavam soavam incrivelmente? [risos]
Mencionou uma vez que a sua formação veio mais das ruas, dos músicos com quem tocava localmente, do que com com programas académicos e de ensino de jazz que também frequentou. Nota na música que tem vindo a fazer um efeito direto, percetível e concreto, disso?
Definitivamente. Vim parar à música pela cultura, não pelas notas ou pela teoria musical. Interessavam-me as pessoas que criavam a cultura em que me inseria, de onde vinham, o que tinham vivido, como expressavam as suas experiências através da música. Muitos dos meus mentores conheceram o Miles Davis, o Joe Henderson, todas essas pessoas — conheciam-nas pessoalmente. Isso teve um grande efeito em mim e só comecei a aprender todas as outras coisas, mais teóricas, ao ir para a universidade. Quando lá cheguei, muitos dos meus colegas já conheciam técnicas de teoria musical, mas quando falávamos da história da música não a conheciam, não se sentiam ligados a essa história, não se sentiam parte dela. Falo de pessoas de todas as raças, não apenas brancos e não apenas negros. Muitos não se sentiam ligados à história da música, a música era apenas algo que gostavam de fazer, não era a vida deles — mas eu sempre me senti ligado.
Como foi o primeiro contacto que teve com a Blue Note Records [talvez a mais famosa editora de jazz do mundo]? Porque é que decidiu assinar e como é que a sua relação com a editora tem evoluído?
Nunca pensei que um dia assinaria por uma grande editora — não porque não achasse que as pessoas ficariam interessadas na minha música, mas porque nunca achei que a música que tocava se enquadrasse. Não estava na minha de lista de objetivos. Tudo começou quando o Bruce Lundvall [antigo presidente e CEO da editora, que morreu em 2015] ligou-me a dizer que queria ter uma reunião comigo. Por saber quem ele era, fui à reunião. Fui por respeito, não fui a pensar “vou assinar pela Blue Note”. Sentei-me e ouvi-o falar durante uns 45 minutos. Acho que o Bruce percebeu que não estava interessado e parou a meio da conversa para dizer: “Ambrose, aqui na Blue Note podes fazer a música que quiseres fazer. Nunca vamos dizer-te que música deves fazer ou como a deves fazer, sabemos que o nosso trabalho é vendê-la, não misturamos as coisas”. Foi assim que ele me apanhou [risos].
Idealmente deveria ser sempre assim.
Deveria, deveria mesmo. Adorava mesmo o Bruce Lundvall, foi mesmo muito bom para mim e para a minha carreira. Sem ele… não teria desistido, mas não andaria aqui a fazer digressões. Sempre que recebia um prémio ou que alguma coisa acontecia, o Bruce Lundvall ligava-me pessoalmente, agradecia-me e encorajava-me. Era muito bonito. A morte dele custou-me muito.
[“a blooming bloodfruit in a hoodie”, tema do mais recente álbum de Ambrose Akinmusire, ‘Origami Harvest’:]
Imagino que sim. Mas novamente mudando de assunto: uma vez disse que “é quase impossível improvisar com este instrumento [trompete], portanto é preciso lidar com ele praticando todos os dias”. Quanto tempo diário dedica a tocar trompete?
Oh, meu… num dia mau, pelo menos duas horas e meia. Pode aumentar para umas cinco horas, tem sido mais comum por estes dias. Mas bom, tenho um filho… antigamente costumava praticar o dia todo. Improvisar no trompete é de facto difícil, conseguir reagir e fugir da linha é quase como correr numa pista quando temos um comboio a tremer e a mexer-se por todo o lado [risos]. Mesmo assim é preciso tentar continuar a avançar.
Lembra-se do dia em que tocou mais horas?
Não sei, mas houve uma fase longa em que tocava desde que acordava até me deitar, apenas com um par de pausas para comer. Esse era um dia normal para mim, sobretudo quando estava em Nova Iorque.
Também mencionou uma vez umas férias em Porto Rico…
[Gargalhadas]
Passou uma semana de férias em Porto Rico, sem tocar trompete toda a semana. Quer recordar como se sentiu quer durante essa semana, o que é algo que nunca o vi comentar, quer quando regressou aos EUA?
Tenho uma perspetiva diferente sobre isso hoje em dia. Na altura senti-me horrível. A minha namorada da altura dizia-me: praticas o dia todo, precisas de relaxar, precisas de tirar umas férias. Éramos jovens, tinha 21 anos e não tínhamos dinheiro nenhum, pelo que não andávamos a jantar em restaurantes caros ou a ficar em hotéis incríveis, nada parecido com isso.
De qualquer forma, não levei o trompete para as férias. Quando voltei daquela semana, demorei uns seis meses a voltar ao nível a que estava antes de ir. Mas há uma coisa que nunca contei a ninguém: enquanto estava em Porto Rico, a minha avó morreu. Por causa disso, foi uma soma horrível de stress de não tocar com a dor da perda da minha avó. Mas acho que precisava mesmo daquele tempo afastado. Foi bom para a relação que tinha com a minha namorada, também: ainda estamos juntos, é a mãe do meu filho, portanto acho que precisávamos daquelas férias. Ela tinha razão, como tem muitas vezes [risos].
Como é que gostava de ser recordado futuramente? Se as pessoas perceberem realmente aquilo que tem tentado fazer nos últimos anos, como é que o deverão recordar?
Penso bastante nisto, por acaso: gostava que as pessoas dissessem que o Ambrose as encorajou a serem elas mesmas e que juntou muita gente de diferentes países e diferentes contextos. Também gostava que algumas pessoas se sentissem curadas, aliviadas — se não por mim, pelo menos por alguém que tenha inspirado. Mas o principal é mesmo o que disse primeiro: quero encorajar as pessoas a serem como são precisamente por eu ser como sou, sem tentar me adaptar a modelos definidos por outros para mim.
Muito obrigado pela entrevista.
“Cool”. Obrigado eu!