André Ventura juntou argumentos para ver autorizado o seu pedido de suspensão temporária do mandato de deputado — mas a questão está longe de ser pacífica. O líder do Chega formalizou a vontade junto da Assembleia da República mas há dúvidas sobre se a hipótese é ou não legal. Os constitucionalistas ouvidos pelo Observador explicam a polémica.

O que está em causa?

O líder do Chega quer suspender temporariamente o mandato para se candidatar a Presidente da República, fazendo-se substituir por Diogo Pacheco Amorim, número dois na lista de deputados por Lisboa e ideólogo do partido.

O que diz a lei?

A figura da suspensão temporária do mandato de deputado só está prevista em três casos:

  • “Doença grave que envolva impedimento do exercício das funções por período não inferior a 30 dias nem superior a 180”;
  • “Exercício da licença por maternidade ou paternidade”;
  • “Necessidade de garantir seguimento de processo [judicial ou similar] nos termos do n.º 3 do artigo 11.º”.

A lei eleitoral do Presidente da República, por outro lado, estipula que os candidatos “têm direito à dispensa do exercício das respetivas funções, sejam públicas ou privadas” durante o período de campanha, mantendo o direito à remuneração.

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Quais os argumentos de André Ventura?

O líder do Chega invoca, neste caso, dois artigos da Constituição da República. O número 2 do artigo 13.º:

Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.”

E o número 2 do artigo 50.º:

Ninguém pode ser prejudicado na sua colocação, no seu emprego, na sua carreira profissional ou nos benefícios sociais a que tenha direito, em virtude do exercício de direitos políticos ou do desempenho de cargos públicos.”

Ventura usa ainda o artigo 46.º da lei que regula a eleição do Presidente da República e que diz, precisamente, que “todas as candidaturas têm direito a igual tratamento por parte das entidades públicas e privadas, a fim de efetuarem, livremente e nas melhores condições, a sua campanha eleitoral.”

O que dizem os constitucionalistas?

Mesmo admitindo que a questão é “nova” e “vai provocar discussão”, o constitucionalista José Moreira da Silva entende que André Ventura “não pode fazer-se substituir” e que tem “apenas direito a justificação das suas faltas e a manutenção do seu mandato de deputado”.

Para o antigo deputado social-democrata e ex-membro do Conselho Superior da Magistratura, o Chega ficará objetivamente prejudicado se Ventura não puder ser substituído, mas a questão não se pode colocar nesses termos. “O direito [de André Ventura] está salvaguardado, mas realmente há um prejuízo para o partido. Só que a Constituição não protege o partido, antes o mandato de deputado. E esse está salvaguardado”, nota.

Já o penalista e constitucionalista Paulo Saragoça da Matta “diz não ter dúvidas de que a lei eleitoral para a Presidência prevalece sobre o Estatuto de Deputados”. “André Ventura terá razão“, concede o advogado.

Paulo Otero concorda. “Em caso de dúvida, deve optar-se pela solução que mais amplia ou reconhece os direitos fundamentais. Neste caso, aliás, por força do princípio da igualdade entre candidatos presidenciais, se existem dúvidas deve prevalecer a solução da lei eleitoral para Presidente da República que, enquanto lei especial, gera a ‘derrotabilidade’ da solução mais restritiva do Estatuto dos Deputados”, argumenta o constitucionalista e professor catedrático em declarações ao Observador.

Qual é o calendário?

O pedido de André Ventura, sabe o Observador, só deu entrada esta terça-feira. O caso será agora analisado pela Comissão Parlamentar e Transparência e Estatuto dos Deputados, presidida pelo deputado socialista Jorge Lacão, e só depois é que o parecer chegará a Eduardo Ferro Rodrigues, Presidente da Assembleia da República.

Jorge Lacão mandou convocar a reunião da Comissão para a próxima terça-feira às 15 horas para apreciação do caso.

O que se prepara para deliberar o Parlamento?

Em agosto, quando o deputado do Chega ensaiou pela primeira vez a vontade de suspender o mandato para acompanhar as eleições açorianas, Ventura e Ferro Rodrigues tiveram uma primeira reunião onde, de acordo com a versão do líder do Chega, se terá concluído que “não haveria nenhuma hipótese” de pedir a suspensão de mandato nestas circunstâncias.

Eduardo Ferro Rodrigues tem mantido o silêncio sobre o tema. José Manuel Pureza, deputado do Bloco de Esquerda e vice-presidente da Assembleia da República, no entanto, foi definitivo. “A lei é clara: um deputado não pode suspender o mandato para concorrer a outro cargo; cumprir o mandato para que se foi eleito, dê jeito ou não dê, ponto final.”

Para já, os deputados que vão avaliar o caso preferem manter alguma prudência. Além da questão jurídica, será preciso avaliar se este é um precedente que a Assembleia da República deve ou não abrir, sabendo que, de facto, não permitir a substituição de André Ventura, num partido que tem apenas um deputado, seria altamente prejudicial para o Chega.

E o que pode fazer André Ventura?

Não está excluída a hipótese de a Assembleia recusar o requerimento de Ventura. Nesse caso, o deputado faltaria aos trabalhos parlamentares e poderia justificar as faltas com “trabalho político”, uma figura que está prevista no estatuto dos deputados. O estatuto diz que se considera “motivo justificado de falta a doença, o casamento, a maternidade e a paternidade, o luto, força maior, missão ou trabalho parlamentar e o trabalho político ou do partido a que o deputado pertence, bem como a participação em atividades parlamentares, nos termos do regimento”.

Ventura pode alegar que a presença em ações da campanha de um candidato apoiado pelo Chega é trabalho político, mas teria de enviar a justificação por cada falta em plenário num prazo de cinco dias para Ferro Rodrigues. O regime de presenças e faltas em plenário defende, no entanto, a interpretação feita pelos deputados já que diz que “a palavra do deputado faz fé, não carecendo por isso de comprovativos adicionais.”

Apesar das faltas justificadas, o Chega ficaria, na prática, sem representação parlamentar durante esses dias e Diogo Pacheco Amorim não poderia tomar posse como deputado.

Se tal acontecer, André Ventura já prometeu avançar para o Tribunal Constitucional. Ora, o mais provável é que, entre uma e outra decisão, o processo se arraste até à campanha presidencial, tornando-se naturalmente tema de debate.

Se o seu pedido for recusado, entende Ventura, tal configurará “uma intervenção no jogo eleitoral que claramente prejudicará uma candidatura em detrimento das restantes, nomeadamente do Presidente da República em exercício de funções”.

Não só o país não o aceitará, como o Direito não o sustentará e ferida ficará a honra do Estado de Direito Democrático da qual vossa excelência é parte fundamental”, remata André Ventura no requerimento dirigido a Eduardo Ferro Rodrigues.