“A cidade planeada à medida dos especuladores e o respeitinho pelo capital”. “O pequeno comércio expulso e os últimos residentes enxotados para a periferia” pelos grandes proprietários imobiliários. O sector privado “que desenha a cidade e a transforma ao seu gosto, decide quem fica e quem sai.” Estas três frases foram ditas a 14 de outubro de 2014 por Ricardo Robles, numa reunião da Assembleia Municipal de Lisboa para criticar a reabilitação que abria caminho a fins especulativos. Os que o ouviam ainda não sabiam, mas cinco meses antes o deputado municipal do Bloco de Esquerda tinha vencido um leilão para comprar à Segurança Social um prédio em Alfama por 347 mil euros, que anos mais tarde colocaria à venda no mercado por 5,7 milhões de euros. Ainda hoje recusa que se trate de especulação.
Robles-deputado municipal critica; Robles-cidadão faz
Como o Observador constatou através da ata dessa reunião, Ricardo Robles não poupou muita gente: o então presidente da Câmara, António Costa, “olhou para a cidade como um ativo financeiro”, vendo Lisboa “com uma caixa registadora debaixo do braço” e vendendo património ao desbarato; o vereador do Urbanismo, Manuel Salgado, aplicou uma estratégia de “respeitinho pelo capital” e nenhum por quem vivia e trabalhava na cidade; Lisboa tinha hotéis a mais e quase todos de luxo, muitos na zona histórica; a empresa do Estado para gerir património, a ESTAMO, estava envolvida numa “gigantesca operação de especulação imobiliária”. Numa frase: uma “cidade planeada à medida dos especuladores e do respeitinho pelo capital”.
Enquanto dizia tudo aquilo, Ricardo Robles investiu num prédio em Lisboa (juntamente com a irmã pagou 16% de juros num empréstimo ao Montepio para financiar parte da aquisição e obras). Apresentaram uma proposta por um edifício na zona de Alfama, em frente ao Museu do Fado e a poucas centenas de metros do terminal de cruzeiros de Lisboa. Uma zona típica, que atrai mais turistas do que arrendatários. A proposta foi feita à Segurança Social, que nos principais anos da crise económica abriu vários destes concursos para se livrar de património imobiliário. Ganharam o concurso, com uma oferta de 347 mil euros, dez mil euros acima das propostas dos concorrentes: uma empresa de alojamento local, dois particulares, uma imobiliária e um empreiteiro.
Prédio de 5,7 milhões. Quem concorreu (e perdeu) no leilão contra Robles
Os irmãos fizeram depois obras no valor de 650 mil euros (mais tarde viriam a renegociar a taxa de juro do empréstimo com a Caixa Geral, para 5%). Acordaram com alguns moradores do prédio a renovação das rendas e com outros tentaram negociar a sua saída (há ainda um caso que está por resolver em tribunal). O prédio tinha um pequeno comércio – no caso um restaurante, o Pão com Manteiga – que já não existe. Obras feitas e o prédio de Alfama foi posto à venda por 5,7 milhões de euros. Poderia mesmo ter como fim o alojamento local. Mas ao fim de seis meses no mercado não chegou a haver negócio.
Em Outubro de 2014, era assim que Ricardo Robles-deputado municipal apertava com António Costa: “A estratégia de alienação de património municipal é errada, porque desiste de um instrumento fundamental de intervenção no mercado, a bolsa de arrendamento. Em vez de desbaratar este património, a CML deveria mobilizar estes edifícios e outro património disperso para intervir na política de habitação. A bolsa de arrendamento permitiria pressionar a baixa de preços, aumentando a oferta”.
E continuou: “O Programa ‘Reabilita Primeiro Paga Depois’, já aqui referido, é a continuidade desta política de desistência. Este programa, que atribuiu benefícios a investidores que adquiriram património municipal para reabilitação, falha duplamente. Primeiro porque insiste na alienação de património e segundo porque não impõe qualquer restrição ou condição ao tipo de uso futuro após a reabilitação”.
Meses antes, Ricardo Robles-cidadão já tinha aproveitado uma venda de património a um preço muito abaixo do valor de mercado, não à câmara, mas sim à Segurança Social. E não lhe foi imposta qualquer restrição ao uso futuro do prédio comprado, uma regra que o próprio defendeu em campanha que devia ser aplicada a quem comprasse edifícios à Câmara.
Ricardo Robles citou uma reportagem da RTP para vincar a sua opinião: a especulação imobiliária estava a expulsar o pequeno comércio da cidade de Lisboa. “’Há ouro na Baixa’ é o título de uma grande reportagem feita durante o mês de setembro pela RTP, na peça a jornalista retrata a nova Baixa lisboeta e toda a atividade de reabilitação urbana é orientada para hotéis. Há cinco anos eram seis, hoje já são trinta só os registados, conta-se mais de três mil camas. O pequeno comércio foi expulso e os últimos residentes enxotados para a periferia”.
Na prática, o negócio que o deputado municipal tinha feito conjuntamente com a irmã, meses antes, acabaria por resultar nisso mesmo: quando o comprou, funcionava no prédio um pequeno comércio – no caso um restaurante. Hoje já não existe: Robles mantém um diferendo com os proprietários, porque estes não queriam sair do local nas condições que o agora vereador ofereceu.
[Veja no vídeo esta intervenção de Ricardo Robles na Assembleia Municipal]
Votar contra o Plano para Alfama, mas aproveitar as novas regras
25 de fevereiro de 2014. Faltava exatamente um mês para o início do leilão do prédio que Ricardo Robles comprou por 347 mil na zona de Alfama. Enquanto a Segurança Social se preparava para o colocar no mercado com uma base de licitação de 286 mil euros (valor que resulta de uma avaliação independente), o então deputado municipal do Bloco de Esquerda pedia a palavra para intervir no plenário. O que se estava a discutir, entre outros diplomas? Precisamente a Alteração ao Plano de Urbanização do Núcleo Histórico de Alfama e Colina do Castelo – onde se situa o imóvel que o vereador do Bloco de Esquerda acabaria por comprar em abril.
De acordo com a ata dessa reunião, Ricardo Robles votou contra. Porquê? Para o bloquista, o diploma refletia uma estratégia para a capital que “impunha, ou que permitia que acontecesse, na cidade Lisboa, mais construção, impermeabilização de logradouros e, entre outros, o aumento do índice de construção”. Isso era então inaceitável. Sobretudo em zonas históricas e com fins turísticos.
Apesar de conceder que os hotéis de charme “beneficiavam o turismo e geravam novos postos de trabalho”, Robles indicou que as alterações de uso nos edifícios desses bairros estavam a promover “a terciarização” e que o centro histórico não podia ser “uma montra” para este tipo de alojamento.
O Plano de Urbanização do Núcleo Histórico de Alfama e Colina do Castelo introduziu regras adicionais à construção, reconstrução e reabilitação dos edifícios nestas duas zonas. Uma das ruas abrangida pelas novas regras é a Rua do Terreiro do Trigo, onde Ricardo Robles comprou o seu prédio e fez obras. Mais importante: esta proposta, contra a qual o deputado municipal bloquista votou mas que foi aprovada, permitia uma liberalização da utilização de edifícios nestas zonas históricas para fins turísticos.
Prédio de Robles era para alojamento local. Veja aqui o anúncio da Christie’s
Segundo o jornal Público deste sábado, o prédio dos Robles em Alfama esteve à venda na Internet com a descrição de que os “apartamentos estão prontos para serem utilizados em short term rental”. Ou seja, Ricardo votou contra mas terá usado as novas regras do jogo para poder colocar o seu edifício para alojamento local, uma forma, atualmente, bastante mais rentável de aproveitar várias frações do que o arrendamento habitual de longo prazo.
Venda pela Defesa é censurável, compra à Segurança Social não
Dias mais tarde, a 18 de março, os deputados municipais debatiam a Proposta N.º 851/2013, referente a uma alteração simplificada do Plano Diretor Municipal de Lisboa. Faltava então uma semana para a abertura do leilão do imóvel que hoje é de Ricardo Robles, e o deputado municipal do BE voltava a pedir a palavra.
Na prática, dava razão ao deputado do PCP que tinha falado antes dele, Modesto Navarro. O deputado comunista estava contra a alienação de património público para imobiliário privado, mais concretamente a venda de antigos edifícios estatais pela Direção-Geral do Tesouro e Finanças (DGTF) e o Ministério da Defesa Nacional (através da Direção-Geral de Armamento e Infraestruturas de Defesa), para capitalizar o Fundo de Pensões do Militares das Forças Armadas. A decisão tinha sido tomada em conselho de ministros em 2012, em plena crise económica. Modesto Navarro e Ricardo Robles criticavam a “lógica de alienação de património público” subjacente ao diploma, como pode ler-se na ata que o Observador consultou.
O bloquista não tinha dúvidas de que essa estratégia da autarquia espelhava “a marca do governo” de Passos Coelho e Paulo Portas, na altura no poder.
Como se pode confirmar na ata, Robles estava contra a alienação de património do Estado quando era feita pelas Finanças e pela Defesa. São edifícios que não tinham fins habitacionais e que poderiam passar a ter. Na sua intervenção Ricardo Robles não clarificou quais as partes deste negócio com as quais não concordava: se era por se transformar edifícios públicos em habitações, se por se tratar de venda de património público a privados.
Mas o deputado municipal não mostrou as mesmas reservas uma semana depois, quando se iniciou o leilão da Segurança Social de que agora se fala. O resto é história: no final do concurso, os irmãos Robles acabariam mesmo por tornar-se os proprietários de ex-património estatal.
Mariana Mortágua criticou Robles… sem saber: “Quem é rico fica com uns bons prédios em boas áreas”
As críticas que nos últimos dias têm sido feitas a Ricardo Robles não isentam de culpas o próprio Bloco de Esquerda. Ainda esta sexta-feira, na rubrica “Esquerda-Direita” da SIC Notícias, Adolfo Mesquita Nunes criticava, sob o olhar atento de Mariana Mortágua, os bloquistas pela “superioridade moral” com que “normalmente” abordam temas como os da habitação ou da especulação imobiliária. Na ótica do vice-presidente do CDS-PP, eram estas as posições que tornavam a atitude do vereador do BE criticáveis. “Do ponto de vista moral”, sublinhava.
Comissão política do Bloco de Esquerda pediu esclarecimentos a Ricardo Robles sobre casa em Lisboa
Do outro lado da mesa, a deputada não gostava do que ouvia e ia fazendo a defesa do colega de partido, afirmando que não tinha havido qualquer incoerência na atuação de Ricardo Robles e reforçando as palavras que o próprio tinha proferido na conferência de imprensa que tinha dado horas antes. “Qualquer pessoa que tenha uma casa em Lisboa vai vendê-la por um preço superior ao de há quatro anos”, insistia. “A compra do imóvel não foi feita para especulação.” Pelo meio, ia reafirmando as posições que o partido sempre defendeu em matéria de habitação ao longo dos anos.
Já em 2014, Mariana Mortágua, enquanto colega de bancada de Ricardo Robles na Assembleia Municipal de Lisboa, criticou precisamente a reabilitação urbana feita por privados. Consultando a ata de uma reunião na AML que decorreu no dia 27 de maio, encontra-se a deputada a tecer duras críticas aos investidores privados. “Podemos concluir que o que vai acontecer é o que temos visto até agora, que é uma reabilitação urbana feita por privados, para privados, para quem pode pagar. É uma cidade em que quem é rico e tem dinheiro fica com uns bons prédios em boas áreas, e quem não tem dinheiro não tem acesso a prédios reabilitados”, afirmou então.
[Veja no vídeo a crítica de Mariana Mortágua à reabilitação urbana feita “para quem pode pagar”]
O leilão do prédio que está no centro da polémica tinha terminado pouco mais de um mês antes. Ricardo Robles já sabia, a 27 de maio, que era o novo proprietário do prédio de Alfama. Pelos prazos do regulamento (abertura das propostas, notificação, confirmação da compra e marcação dos atos necessários), estaria, por estes dias, a assinar a escritura de compra do edifício da Rua Terreiro do Trigo.
Ricardo Robles assinou a folha de presenças da reunião, mas nada disse. Nem mesmo quando Mariana Mortágua falou contra “uma cidade em que quem é rico e tem dinheiro fica com os bons prédios em boas áreas”.