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É aquela altura do ano outra vez. O Observador telefonou ao bispo do Porto D. Manuel Linda e ao padre Anselmo Borges à procura das respostas às perguntas mais difíceis sobre a quadra natalícia. E ouviu as explicações para algumas das principais dúvidas, entre elas as mais inconvenientes.
Maria era virgem — mas apenas no sentido figurado. Ninguém sabe quando Jesus nasceu — e provavelmente nem sequer foi em Belém. O Natal não é assim tão cristão porque é mais transversal que isso — e sim, as pessoas de outras religiões têm mesmo de gozar este feriado, quer queiram quer não.
Em véspera de Natal, eis tudo o que precisa de saber sobre o que realmente estamos a festejar.
Porque é que o Natal se celebra a 25 de dezembro?
Os cristãos celebram o Natal a 25 de dezembro porque havia uma festa pagã que acontecia por altura do solstício de dezembro, que acontece a 21 de dezembro — e que este ano começou precisamente às 22h23 da última sexta-feira. “Os cristãos tinham de fazer feriado mas custava-lhes honrar um deus que não era o deles. Então, começaram a substituir a razão da festa, não para honrar o imperador de Roma mas para honrar o Sol que nasce nas alturas, que é Jesus”, explica ao Observador D. Manuel Linda, bispo do Porto.
Isso mesmo sublinha o padre Anselmo Borges, padre, ensaísta e professor universitário na Universidade deCoimbra : “Quando o Cristianismo se impôs, havia uma festa no Império Romano que era a festa do Sol Invicto. Nós celebramos o Natal no solstício do inverno, quando os dias começam a crescer no hemisfério norte. E como para os cristãos a verdadeira luz é Jesus, então começaram a celebrar o Natal, o nascimento de Jesus, em substituição dessa festa“.
Ainda antes dessa celebração havia uma outra chamada Saturnália, que na cultura romana honrava o deus Saturno e se celebrava entre 17 de dezembro e 24 de dezembro. Com a chegada da festa do Sol Invicto e, mais tarde, com as festas da Natividade, os costumes da Saturnália — que eram de índole pecaminosa aos olhos dos cristãos — começaram a ser eliminados. As datas, essas, permaneceram mas com um novo significado. E assim se passou a celebrar o Natal desde o século VI.
Então em que dia nasceu mesmo Jesus Cristo?
Ninguém sabe.
A Bíblia, através dos evangelhos de São Mateus e de São Lucas, dá-nos algumas pistas: Jesus Cristo nasceu na mesma época em que Quirino era presidente da Síria, enquanto Herodes era rei de Israel e quando César Augusto fazia um recenseamento no Império Romano. No entanto, alguns desses dados podem não estar corretos: Públio Sulpício Quirino só foi nomeado governador da Síria em 6 d.C. quando Arquelau, filho e sucessor de Herodes na Judeia como tetrarca, foi demitido. Foi também nesse ano que ocorreu o primeiro recenseamento da história do Império Romano (pelo qual Maria e José se dirigiam a Belém). Ora, o ano 6 não é uma data possível para o nascimento de Jesus se ele tiver de facto vindo ao mundo enquanto Herodes era vivo. Herodes, o Grande, ficou à frente de Israel desde 57 a.C. até à morte, que pode ter acontecido em 1 a.C. ou no ano 4. Mas essas duas datas acontecem antes da tomada de posse de Quirino.
D. Manuel Linda diz ser muito improvável, impossível até, que se venha a descobrir a verdadeira data de nascimento de Jesus. Os registos civis só apareceram em Portugal com a instauração da República e mesmo a Igreja, que já fazia esse registo há mais tempo, só a começou a fazer há entre 400 e 500 anos. Assume-se que Jesus nasceu há 2018 anos — ou seja, que este 25 de dezembro celebraria 2018 anos — por causa “de um monge do século VI que se enganou”, conta Anselmo Borges: “Os cristãos começaram por ser perseguidos, mas depois tornaram-se a maioria e o Império Romano converteu-se ao Cristianismo. No século VI, houve um monge chamado Dionísio, o Exíguo, que foi encarregado de estabelecer a data de nascimento de Jesus e que se enganou numa margem de entre 4 e 6 anos”.
Ou seja, de um modo geral, diz-se que Jesus nasceu algures entre os anos 4 a.C. e 6 a.C.. As contas têm por base que Jesus nasceu durante os dias do reinado de Herodes, que esse rei ordenou que todos os rapazes primogénitos com dois anos ou menos fossem mortos para que o seu reino não fosse ameaçado e que Herodes deixou de governar em 4 a.C.. Perante estes dados, o intervalo possível — tendo em conta a idade máxima que Jesus teria nessa altura e as datas do reinado de Herodes — sugere que todos estes factos aconteceram entre 6 a.C. e 4 a.C..
São Lucas também dá outros dados que sugerem o mesmo intervalo de tempo. No capítulo 3, o evangelista escreve que “Jesus, quando começou o seu ministério, tinha cerca de trinta anos de idade”. Sabe-se que Jesus começou esse ministério durante o tempo em que João Batista ministrou no deserto. E sabe-se também que João Batista começou o ministério no ano quinze do império de Tibério César, quando Pôncio Pilatos era presidente da Judeia, Herodes era tetrarca da Galileia, Filipe era tetrarca da Itureia e da província de Traconites, Lisânias era tetrarca de Abilene e tanto Anás como Caifás eram sumos sacerdotes.
O único período de tempo que se ajusta a todos esses factos é o intervalo entre 27 d.C. e 29 d.C.. Por isso, se Jesus tinha “cerca de trinta anos de idade” nesse período de tempo, então o parto deve ter acontecido entre 4 a.C. e 6 a.C.
Se o ano de nascimento de Jesus é difícil de descobrir, o mês e o dia são quase impossíveis de desvendar. Mas uma das teorias mais famosas diz que ele veio ao mundo em setembro. Um dos motivos que sustenta essa hipótese é a descrição que São Lucas faz do tempo em que Jesus nasceu: “Ora, havia naquela mesma comarca pastores que estavam no campo, e guardavam, durante as vigílias da noite, o seu rebanho”. Alguns registos históricos dizem que os pastores não costumavam ir para o campo no inverno porque o tempo era demasiado húmido na Judeia. É exatamente por causa do clima frio que o recenseamento que levou Maria e José a Belém não deve ter acontecido no inverno, mas provavelmente durante o verão ou no início do outono.
Além disso, a teoria de que Jesus nasceu em setembro depende do momento do nascimento de João Batista. Diz São Lucas que o pai de João Batista era um padre da divisão de Abias chamado Zacarias que estava a servir num templo quando o anjo Gabriel lhe apareceu e anunciou que Isabel iria ter um filho. Zacarias voltou a casa e Isabel estava, de facto, grávida. Só depois é que o anjo Gabriel visitou Maria para anunciar a conceção de Jesus, já Isabel ia no sexto mês de gestação.
Ora, os registos históricos dizem que os sacerdotes da divisão de Abias serviam nos templos entre os dias 13 e 19 de junho. Se nessa altura Isabel estava no início da gravidez, então o sexto mês de gestação deve ter acontecido em dezembro ou janeiro. E assumindo que Maria também concebeu Jesus pouco antes disso, então ele deve ter vindo ao mundo nove meses depois de ela ter visitado a prima, ou seja, em agosto ou… setembro.
Mas há alguns problemas com essa teoria. Em primeiro lugar, porque as temperaturas mínimas em Belém no inverno nessa época deviam ser semelhantes às que se fazem sentir no norte e interior de Portugal. Em nesse caso além do frio poder não ser impeditivo, um recenseamento no inverno, mesmo mais rigoroso, podia sempre ser obrigatório por causa do cariz ditatorial do regime de César Augusto à frente do Império Romano.
E depois porque a matemática relacionada com a gestação de Isabel e de Maria pode estar errada: é verdade que foi estabelecido por David um calendário para servir nos templos quando Salomão era rei, mas ele foi modificado nos tempos do exílio babilónico. Se há registos históricos que dizem que a divisão de Abias, a que Zacarias pertencia, servia nos templos em junho, outros sugerem que só acontecia em outubro. Se assim for, então Jesus só terá nascido em dezembro ou janeiro.
E como pode Jesus ser filho de uma virgem?
Na perspetiva do padre Anselmo Borges, Jesus Cristo não é filho de uma mulher virgem e foi concebido por Maria e José “como outra criança qualquer”. A virgindade de Maria é, na opinião deste sacerdote, uma forma de mostrar que Jesus era uma pessoa especial.
O evangelho de São Lucas, um dos mais confiáveis da Bíblia, conta que um anjo chamado Gabriel foi enviado por Deus à cidade de Nazaré, na Galileia, para visitar Maria, apresentada como “uma virgem desposada com um homem”. O anjo disse-lhe: “Maria, não temas, porque achaste graça diante de Deus. E eis que em teu ventre conceberás e darás à luz um filho, e pôr-lhe-ás o nome de Jesus. Este será grande e será chamado filho do Altíssimo. E o Senhor Deus lhe dará o trono de David, seu pai. Reinará eternamente na casa de Jacob e o seu reino não terá fim”.
Maria ficou confusa porque nunca tinha tido relações sexuais com nenhum homem. Mas o anjo Gabriel esclareceu-a: “Descerá sobre ti o Espírito Santo e a virtude do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra. Por isso também o Santo, que de ti há de nascer, será chamado Filho de Deus. E eis que também Isabel, tua prima, concebeu um filho na sua velhice. E é este o sexto mês para aquela que era chamada estéril. Porque para Deus nada é impossível”.
Já o bispo do Porto, D. Manuel Linda, sem negar o dogma da virgindade perpétua de Maria proclamado pela doutrina da Igreja Católica, refere ao Observador que “nunca devemos referir a virgindade física da Virgem Maria”: “O Antigo Testamento diz muitas vezes que Jesus iria nascer de uma donzela, filha de Israel, que fosse simples, pobre e humilde. Mas na verdade isso é apenas uma referência à devoção plena dessa mulher mulher a Deus. O dom de ser mãe de Deus foi dado a Maria por ela ter um coração indiviso. O que importa é a plena doação“, explica D. Manuel Linda. E acrescenta: “Há com certeza mulheres com o hímen rompido [que é associado ao sinal físico da perda da virgindade por uma mulher] que são mais virgens no sentido da plena devoção a Deus do que algumas com o hímen intacto”.
Anselmo Borges dá um exemplo prático para explicar o simbolismo da virgindade normalmente conferida a Maria: “Na minha terra, havia um senhor que era muito inteligente. Não tinha estudado mas curava muita gente. Tinha um dom. Então as pessoas começaram a dizer que o senhor tinha chorado na barriga da mãe. Ninguém o tinha visto a chorar lá dentro mas era uma maneira de dizer que era alguém especial”, conta o professor e padre. Algo semelhante acontece com João Batista, primo de Jesus, que nasceu de Isabel quando ela já era velha e não podia ter filhos.
Ou seja, dizer que Jesus nasceu de uma mulher virgem é uma verdade teológica mas não necessariamente uma verdade biológica. Anselmo Borges até acrescenta que “a teologia não é um tratado de biologia” e que a virgindade de Maria serve apenas para “dizer a importância de Jesus enquanto filho especial de Deus”: “Maria e José só mais tarde é que se aperceberam do filho especial que tinham tido. Qualquer mãe se espanta com os filhos e com Maria e José aconteceu o mesmo. Nossa Senhora é especial porque se converteu à mensagem de Jesus. Às vezes entendia-a e outras vezes não”, conclui Anselmo Borges.
Anselmo Borges concorda e diz que isso acontece porque a biografia de Jesus começou a ser escrita ao contrário. Provavelmente, Jesus não nasceu em Belém como diz a Bíblia: na verdade, deve ter nascido em Nazaré. Só que como para os cristãos Jesus é “o verdadeiro Messias”, então isso significa em teoria que, tal como José, faz parte da linhagem do rei David, que era de Belém. Jesus também não deve ter estado exilado no Egito, como sugere a Bíblia. Só que ele é visto como “o verdadeiro libertador”. Ora, Moisés é de origem egípcia e era visto como um libertador do povo de Israel. Daí se ter criado este paralelismo entre os dois.
O Natal deixou de ser uma festa cristã?
Talvez, mas isso não tem de ser necessariamente uma coisa má, considera o padre Anselmo Borges. “Independentemente de se ser cristão ou não, foi através de Jesus que chegou à humanidade a convicção da dignidade humana. Não é por acaso que a Declaração dos Direitos Humanos foi feita em contexto judaico-cristão. O conceito de ‘pessoa’ apareceu no ocidente a partir dos debates que houve para perceber a figura de Jesus e o mistério da Santíssima Trindade. Esse conceito vem ao mundo através do Cristianismo”, defende o professor de filosofia.
Anselmo Borges cita dois filósofos para sustentar essa ideia: um é agnóstico e chama-se Juger Habermas e outro é ateu e chama-se Ernst Bloch. Habermas defendia que “a ideia da democracia no sentido de um Homem valer um voto é a tradução para a política da ideia cristã de que todos os homens e mulheres são filhos de Deus”, traduz o padre português: “Em teoria, porque é que o voto de um analfabeto há de valer tanto como o de uma pessoa letrada? Por causa da ideia cristã de que todos os homens e todos as mulheres estão em igualdade de circunstâncias por todos serem filhos de Deus“, acrescenta. Bloch, considerado um dos filósofos marxistas alemães mais influentes do século XX, dizia que “nenhum ser humano pode ser tratado como gado e que isso sabemos através de Jesus”.
Uma das ameaças ao sentido mais religioso do Natal é o consumismo da época. O Estudo de Natal 2018 publicado pela Deloitte previu que cada agregado familiar em Portugal ia gastar em média 314 euros, o que mesmo assim é menos 7,1% dos gastos estimados em 2017 e quase metade do registado em 2008. Anselmo Borges diz que, às vezes, as pessoas “consomem-se a consumir” e que “se esquecem do essencial”. No entanto, isso só acontece porque “queremos ser amados e Jesus veio dizer que Deus nos ama”: “É por isso é que o Natal é uma festa de alegria e de confiança apesar de todos os problemas. Apesar de nos consumirmos a consumir, não é por acaso que somos mais solidários uns com os outros e tomamos mais consciência da dignidade uns dos outros“.
O bispo do Porto também desvaloriza o problema do consumismo da quadra. É verdade que “para uma parte significativa da nossa população o Natal é o consumo” e que “do filho de Deus não ficou nada, nem sequer o nome” — antes as prendas eram dadas pelo menino Jesus, agora são com o Pai Natal criado pela Coca Cola.
Mas por outro lado, a festa sempre foi associada às maiores celebrações religiosas, ressalva D. Manuel Linda: “Quando há festas são precisas prendas e gostamos de ter uma roupa melhor. Não sou contra essas ideia. Sou contra, isso sim, quando tudo o resto se dilui à conta disso. Mas não faço do consumismo o campo da minha batalha”.
Questionado sobre se o Natal deixou de ser uma festa cristã, D. Manuel Linda responde que “até mesmo as pessoas que não vivem muito a dimensão religiosa do Natal têm uma réstia do que ela significa nas celebrações que fazem”: “Nas sociedades ocidentais, e na Europa em particular, há uma fortíssima diminuição da prática religiosa. Isso faz com que nos possamos esquecer dos factos da nossa história cristã. É possível que o Natal esteja a sofrer a erosão que a própria vivência cristã está a sofrer. Mas a nossa cultura ainda regista esta ideia de que o Natal é uma época diferente”.
Quem é ateu pode gozar o feriado de 25 de dezembro? Ou pode recusar?
Não só pode como tem de gozar os feriados religiosos obrigatórios. É isso que a lei determina em Portugal.
De acordo com o artigo número 234 do Código do Trabalho, são considerados obrigatórios os feriados de Ano Novo (1 de janeiro), Sexta-Feira Santa (19 de abril de 2019), Domingo de Páscoa (21 de abril de 2019), Dia da Liberdade (25 de abril), Dia do Trabalhador (1 de maio), Dia de Portugal (10 de junho), Dia da Assunção de Nossa Senhora (15 de agosto), Dia da Implantação da República (5 de outubro), Dia de Todos os Santos (1 de novembro), Dia da Restauração da Independência (1 de dezembro), Dia da Imaculada Conceição (8 de dezembro) e Dia de Natal (25 de dezembro).
Nesses feriados, diz o artigo número 236 do Código do Trabalho, “têm de encerrar ou suspender a laboração todas as atividades que não sejam permitidas aos domingos”. Mesmo que o trabalhador assuma ser ateu — isto é, que não acredita da existência de qualquer ser divino —, o ponto dois desse mesmo artigo sublinha que “o instrumento de regulamentação coletiva de trabalho ou o contrato de trabalho não pode estabelecer feriados diferentes dos indicados nos artigos anteriores”.
Entre os feriados obrigatórios, só mesmo o da Sexta-Feira Santa é que pode ser celebrado noutra ocasião, em concordância com “o significado local da Páscoa”. De resto, apenas há dois feriados facultativos: um é a terça-feira de Carnaval, que em 2019 se vai celebrar a 5 de março; o outro são os feriados municipais, que dependem de cidade para cidade. O facto de um trabalhador poder gozar desses dois feriados tem de estar previsto no contrato assinado entre ele e a entidade empregadora ou então tem de estar explicado na regulamentação coletiva de trabalho. E mesmo assim, em substituição de qualquer um desses feriados facultativos, o trabalhador pode gozá-los noutro dia desde que isso seja acordado com o empregador.
Por outras palavras, mesmo que um trabalhador não seja fiel a qualquer religião, num feriado religioso obrigatório tem mesmo de o gozar porque, de qualquer modo, não tinha onde trabalhar. Isso é explicado ao Observador por José Vera Jardim, presidente da Comissão da Liberdade Religiosa: “É a mesma coisa que imaginar o caso de um indivíduo que seja monárquico e diga que não quer celebrar o 5 de outubro porque esse é um feriado para os republicanos. Mesmo que ele queira trabalhar não o pode porque é feriado. É mesmo assim”.
E se for de outra religião?
Se uma pessoa pertencer a uma religião que não tem como feriado o 25 de dezembro, por exemplo, também é obrigado por lei a não trabalhar nesse dia. Mas também está previsto que, se quiser gozar outro feriado que conste no calendário da sua religião, tem direito a fazê-lo desde que compense as horas de trabalho desse dia noutra altura. É isso que consta na Constituição da República e na Lei da Liberdade Religiosa. E também foi isso que o presidente da Comissão da Liberdade Religiosa, explicou ao Observador.
O artigo 41 da Constituição da República portuguesa garante que “a liberdade de consciência, de religião e de culto é inviolável” e especifica que “ninguém pode ser perseguido, privado de direitos ou isento de obrigações ou deveres cívicos por causa das suas convicções ou prática religiosa”. Por outras palavras, todas as pessoas têm direito a colocar em prática os hábitos relacionados com a religião que seguem.
Isso está em concordância com o Declaração Universal dos Direitos Humanos e com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que no artigo 18 e 9 respetivamente defendem que todas as pessoas têm direito “à liberdade de pensamento, de consciência e de religião”, assim como de “manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos”. Em Portugal também existe a Lei da Liberdade Religiosa, que inclui todos esses direitos.
Ora, acontece que a Lei da Liberdade Religiosa, no artigo número 2, especifica que “ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, perseguido, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever por causa das suas convicções ou prática religiosa” e que “o Estado não discriminará nenhuma igreja ou comunidade religiosa relativamente às outras”. Acontece que os feriados religiosos obrigatórios do calendário português são cristãos — ligados ao catolicismo — apesar de Portugal ser um Estado laico. José Vera Jardim explica que isso acontece porque “os Estados, por mais laicos que sejam, marcam no calendários os feriados religiosos obrigatórios consoante as Igrejas dominantes, digamos assim: “Portugal tem estes feriados porque tem um acordo com a Igreja Católica por causa das nossas raízes históricas”, acrescenta.
Vera Jardim diz que não podia ser de outra maneira senão “era uma balbúrdia” por causa da quantidade de religiões inscritas em Portugal e, consequentemente, da quantidade de dias santificados que haveria no calendários. O problema é que muitas delas têm um calendário próprio: o presidente da Comissão afirma que o Natal começa a ser celebrado por várias religiões, não como um feriado santificado mas apenas como uma celebração em família. Com a Páscoa, por exemplo, isso não acontece. Então, qual é a solução?
A solução é a que está no artigo 14 da Lei da Liberdade Religiosa: “Os funcionários e agentes do Estado e demais entidades públicas, bem como os trabalhadores em regime de contrato de trabalho, têm o direito de, a seu pedido, suspender o trabalho no dia de descanso semanal, nos dias das festividades e nos períodos horários que lhes sejam prescritos pela confissão que professam”. Para gozar desse direito o trabalhador tem de pertencer a uma religião registada em Portugal, explica José Vera Jardim: “Todas as religiões que constem nesse registo podem comunicar os feriados e dias santificados delas no início do ano a um membro do governo, que normalmente é o ministro da Justiça”.
Nesses casos fica-se dispensado de trabalhar nos dias comunicados pela Igreja no início do ano civil sem precisar de fazer prova de que realmente segue essa religião. A entidade empregadora não pode pedir qualquer prova dessa natureza ou então estará a violar a Constituição, que sublinha que “ninguém pode ser perguntado por qualquer autoridade acerca das suas convicções ou prática religiosa, salvo para recolha de dados estatísticos não individualmente identificáveis, nem ser prejudicado por se recusar a responder”. Mas há uma contrapartida: tem de gozar à mesma os feriados obrigatórios cristãos pelo mesmo motivo que os ateus — as empresas são obrigadas por lei a encerrar, salvo algumas exceções — e se quiser gozar de um feriado que não conste no calendário português, tem de compensar noutra altura as horas que não trabalhar nesse dia.
Isso é o que está previsto na Lei da Liberdade Religiosa: só pode gozar destes direitos quem trabalhar “em regime de flexibilidade de horário” e se houver uma “compensação integral do respetivo período de trabalho”. “Há Igrejas que o dia semanal de oração não é o domingo. Os judeus e os adventistas têm o sábado. Os testemunhas de Jeová também têm alguns feriados. Essas religiões comunicam no início do ano os dias santificados e podem substituir por trabalho. Isto é, têm de trabalhar horas extraordinárias para compensar. É o que vem na lei. Aí também depende um pouco do tipo de trabalho que têm e da boa vontade. A lei admite estes princípios mas não regula todas as coisas. Mas no fundo tem de compensar a entidade empregadora porque usou um feriado e gozou um dia em que não trabalhou”, diz Vera Jardim.
É assim com os trabalhadores e é assim com os estudantes também. Quem andar na escola fica dispensado das aulas “nos dias de semana consagrados ao repouso e culto pelas respetivas confissões religiosas”, diz a Lei da Liberdade Religiosa. Além disso “se a data de prestação de provas de avaliação dos alunos coincidir com o dia dedicado ao repouso ou ao culto pelas respetivas confissões religiosas, poderão essas provas ser prestadas em segunda chamada, ou em nova chamada, em dia em que se não levante a mesma objeção”, prevê a lei.
O presidente da Comissão para a Liberdade Religiosa assume que já se tem posto o caso de um feriado religioso calhar em dias de exame porque há alguns deles que são marcados aos sábados. Mas segundo a doutrina, esses alunos têm direito a uma chamada especial. No entanto, esse direito só pode ser cumprido se forem “ressalvadas as condições de normal aproveitamento escolar”: “Se houver uma data de dias em que ele não pode ir e os exames calharem todos a esse dia, então a prioridade deve ser o aproveitamento escolar”, explica Vera Jardim.
Uma situação desta natureza já aconteceu com uma procuradora do Ministério Público que lutou entre 2011 e 2014 para que não tivesse de trabalhar ao sábado por ser adventista. O Supremo Tribunal Administrativo tinha começado por não dar razão à procuradora por não haver flexibilidade de trabalho e, portanto, não haver a possibilidade de ela repor as horas em que não ia trabalhar nos dias santificados da Igreja Adventista do Sétimo Dia — casos em que a liberdade religiosa não se aplica nesses termos. Mas o Tribunal Constitucional negou: disse que os procuradores, na verdade, trabalham mesmo em horário flexível de turnos. A decisão do Tribunal Constitucional prevaleceu e a procuradora ganhou o caso.
Mas afinal, o que é mesmo o Natal?
O Natal é a altura do ano em que os cristãos recordam a vinda de Jesus Cristo ao mundo e os ensinamentos que ele defendeu. D. Manuel Linda, bispo do Porto, explicou ao Observador que esta época é também a altura em que pensamos “na dimensão humana daqueles que connosco estão no mundo”. E Anselmo Borges acrescenta que o Natal “traz uma mensagem decisiva para toda a humanidade, que é o amor: “Deus é amor e ama todos os homens e mulheres. Esse amor manifesta-se em Jesus por palavras e obras. Jesus procedeu como Deus, ao interessar-se por todos. Por isso é que esteve tão próximo de todos, mas principalmente daqueles de quem ninguém está próximo, como os frágeis, os abandonados, os pobres e até os pecadores”.
O nascimento de Jesus é explicado na Bíblia no evangelho de São Lucas. Enquanto Maria ainda estava grávida de Jesus, César Augusto publicou um decreto que ordenava o recenseamento de todo o Império Romano. Todas as pessoas que estivessem fora da cidade natal tinham de regressar para participar nesse recenseamento, tinha ordenado o imperador. Foi por isso que José foi da cidade de Nazaré da Galileia para Belém, na Judeia, que era a cidade de David e José fazia parte da linhagem dele.
Já em Belém enquanto José e Maria esperavam por recensear-se, chegou o tempo de nascer o bebé. Diz o evangelho de São Lucas, que Jesus foi envolvido em panos e colocado numa manjedoura “porque não havia lugar para eles na hospedaria”. Mais tarde, José e Maria receberam a visita dos reis magos, que tinha visto uma estrela no céu e que os guiou até ao estábulo. Entretanto, sabendo do nascimento de Jesus e em como ele era apresentado como “o rei dos judeus”, Herodes mandou matar todos os primogénitos que tivessem menos de dois anos. Jesus escapou à morte porque José foi avisado do perigo por um anjo e fugiu com Maria e o recém-nascido.
Este texto foi alterado às 15h do dia 26 de dezembro de 2018 para clarificar a posição do bispo do Porto, D. Manuel Linda, relativamente ao dogma da virgindade perpétua de Maria. O Observador pede desculpas ao bispo e aos leitores.