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Sem que nada fizesse prever, o Tribunal Penal Internacional emitiu, a 17 de março, um mandado de captura em nome de Vladimir Putin por suspeitas da prática de crimes de guerra relacionados com a deportação ilegal de crianças da Ucrânia para a Rússia. Num país estilhaçado pela guerra, o Presidente russo era acusado de deportar centenas de menores ucranianos, que eram retirados de orfanatos e das próprias casas, onde viviam com as famílias, e levadas para a Rússia.
O tema é particularmente sensível, com o Ocidente a estimar que cerca de 20 mil crianças foram transferidas do território ucraniano para a Rússia. Agora, três semanas depois, Moscovo aproveitou os poderes de que dispunha ao presidir o Conselho de Segurança para convocar uma reunião em que acusava três países europeus de roubarem as crianças da Ucrânia. O embaixador russo na ONU, Vasily Nebenzya, mostrou mesmo um vídeo com alegados casos do sucedido.
As autoridades portuguesas referem a existência de 737 casos de menores que chegaram a Portugal no último ano, vindas da Ucrânia sem estarem acompanhadas pelos pais ou por um representante legal, dos quais 15 foram sinalizados como correndo algum tipo de “perigo”. E há ainda 27 menores que, tendo chegado na companhia de um adulto que exercesse responsabilidades legais sobre os mesmos, foram retiradas e institucionalizadas. Mas o ponto de partida — o argumento de que havia crianças a serem “roubadas” a refugiados ucranianos em Portugal — não tem, até ao momento, qualquer fundamento factual.
Como surgiu a história de crianças retiradas a refugiados ucranianos?
A história foi trazida esta quarta-feira pelo embaixador russo na Organização das Nações Unidas. Numa reunião informal do Conselho de Segurança, convocada pela Rússia, o responsável diplomático focou o caso de três países em específico — Alemanha, Espanha e Portugal — e mostrou um vídeo com alguns testemunhos de alegados “roubos” de crianças por parte das autoridades daqueles Estados.
Embora a plataforma usada (ONU) seja uma novidade, o teor das acusações não o é. Ao Observador, o presidente da Associação de Ucranianos em Portugal, Pavlo Sadokha, contou que, nos últimos dois meses, subiu o número de denúncias destes casos divulgados por canais Youtube de propaganda pró-Putin, mas que carecem de confirmação oficial.
Alguns dos testemunhos revelados na reunião informal do Conselho de Segurança eram conhecidos por Pavlo Sadokha, já que as associações ucranianas na Europa tiveram uma “reunião” há cerca de uma semana, depois de tomarem conhecimento do aumento da partilha destes vídeos.
Que suspeitas foram lançadas pelo embaixador russo nas Nações Unidas?
Vasily Nebenzya especificou que as autoridades portuguesas, espanholas e alemãs retiraram centenas de crianças ucranianas às mães para as colocar em estruturas de acolhimento nos respetivos territórios. “O número de pessoas que passaram por isso está na casa das centenas. Crianças pequenas estão a ser levadas para centros de acolhimento por pessoas estranhas. As mães que estão a tentar recuperar as crianças são ameaçadas com processos criminais”, acusou o diplomata na reunião do Conselho de Segurança.
Além disso, o embaixador russo das Nações Unidas assinalou que as embaixadas e consulados ucranianos “não fazem nada” para tentar recuperar as crianças, caracterizando o comportamento dos três países da União Europeia visados e da Ucrânia como “hipócrita”.
No caso de Portugal, o responsável diplomático de Moscovo mostrou o testemunho de Alina Komisarenko, da cidade de Zaporíjia, uma refugiada que passou pelo distrito do Porto. “As minhas crianças foram retiradas pelo sistema juvenil em Portugal”, alegou a mulher, que pediu, no vídeo, para que a ajudassem a recuperar os três filhos.
Perante o Conselho de Segurança, o embaixador russo “aproveitou a oportunidade” para se dirigir à sociedade civil dos países europeus, “àqueles para quem os direitos humanos e os direitos das crianças não são apenas um elemento de propaganda para combater a Rússia, mas um sistema de valores”. “Se puderem ajudar essas mães ucranianas, entrem em contacto connosco e colocá-los-emos em contacto direto com elas”, disse.
Vasily Nebenzya deixou ainda várias críticas à atuação de Koiev — o “regime criminoso de Zelensky”, nas palavras do embaixador russo em Nova Iorque —, atirando que “nem a Rússia, nem as mães têm muita esperança” de que Kiev crie as condições para que as progenitoras voltem a ver os filhos.
Por sua vez, Pavlo Sadokha desmente as acusações lançadas pelo embaixador russo nas Nações Unidas. Reconhecendo que o caso de Alina Komisarenko é “real”, o responsável ucraniano disse que já teve conhecimento do mesmo, vincando que “a Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) tinha de agir para proteger as crianças”. “Mas não é nenhuma discriminação, nem de nacionalidade nem de origem”, ressalvou.
Na ótica de Pavlo Sadokha, as suspeitas do embaixador russo nas Nações Unidas fazem parte de um esforço da “propaganda russa”, para Moscovo defender a sua política da retirada de crianças ucranianas para a Rússia e para criar “uma atmosfera de medo para os refugiados da Ucrânia”. É também uma forma, admite, de tentar desviar atenções do mandado de detenção emitido pelo Tribunal Penal Internacional com os nomes de Vladimir Putin e da comissária para os direitos da criança da Rússia, Maria Lvova-Belova, que, curiosamente, participou na reunião da ONU.
E como reagiu o Governo português?
O Governo “repudiou firmemente” as declarações de Pavlo Sadokha,”reafirmando o seu apoio à Ucrânia nas diferentes dimensões, incluindo a do acolhimento aos ucranianos deslocados, vítimas da agressão da Rússia ao seu país”.
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— Canada Mission UN (@CanadaUN) April 5, 2023
Ao mesmo tempo, Portugal surgiu como um dos 49 — países europeus e outros Estados com representação nas Nações Unidas, entre os quais o Reino Unido e os Estados Unidos — subscritores de uma declaração que condena a ação de “desinformação” das autoridades russas. “Não há divulgação de desinformação pela Federação Russa que possa negar a verdade”, declararam os países, que acusaram a Rússia da deportação forçada de 19.500 crianças ucranianas. “Isso incluiu a separação deliberada de crianças dos seus pais e o rapto de crianças de orfanatos antes de os colocar para adoção na Rússia.”
Quantos casos de crianças foram retiradas a refugiados ucranianos em território português?
O Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social avança ao jornal Público a informação de que, desde o início da intervenção militar russa na Ucrânia — e, portanto, desde que começaram a chegar a Portugal refugiados de guerra oriundos daquele país — foram retiradas 27 crianças a cidadãos ucranianos a residir em território nacional (o Observador questionou o MTSSS, mas não obteve qualquer resposta até ao momento da publicação deste artigo).
São casos de crianças que, tendo chegado acompanhadas por um adulto que assumia a responsabilidade sobre as mesmas, foram sinalizadas como correndo “perigo” e obrigaram à intervenção das entidades responsáveis por garantir a segurança de menores em território nacional, como a Comissão de Proteção de Crianças e Jovens. Desses 27 casos, 19 estavam ainda ativos, sendo que em cinco deles já tinham sido alvo da aplicação de medidas cautelares e os restantes ainda estavam a ser avaliados pelas entidades competentes. Alguns dos menores já tinham, nesse momento, sido reintegradas no núcleo familiar.
Ainda de acordo com os dados fornecidos ao Público, atualmente, nove crianças e/ou jovens encontravam-se em acolhimento residencial, um processo pelo qual já tinham passado outras 12. Seis já estiveram em acolhimento familiar.
No total, a Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens tinha sinalizado, até ao dia 2 de março, 151 casos de menores que, tendo chegado a Portugal com os pais, poderiam estar em risco (não são detalhadas as situações em que cada um desses menores se encontravam e que levaram à sua sinalização). De sublinhar que a abertura do processo também pode ocorrer nas situações em que os menores que já possuem um representante legal, caso, por exemplo, este não reúna as condições necessárias para o acolher.
Neste universo de crianças retiradas a familiares ou representantes legais, os casos conhecidos são o de Alina Komisarenko e os que têm sido publicados na internet (mas que não foram verificados por entidades oficiais), tal como os do propagandista pró-Putin, que recentemente apresentou a história de um pai que também acusa as autoridades portuguesas de lhe retirar os filhos.
https://www.youtube.com/live/8FMnev3F68w
A revisão Visão divulgou outro caso. Snizhana Volodymyrivna, uma refugiada ucraniana que chegou a Portugal em março de 2022, contou que a Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) de Miranda do Corvo lhe retirou as duas filhas em outubro do ano passado.
Por sua vez, o Ministério Público diz ao Observador que um total de 942 crianças ucranianas chegaram a Portugal sem pais ou representantes legais desde o início do conflito na Ucrânia, tendo o Ministério Público (MP) recebido 769 comunicações relativas à chegada daqueles menores.
Após as 769 comunicações realizadas por aquelas entidades, o Ministério Público detalha que instaurou “um total de 461 ações”: 241 levaram à abertura de “processos judiciais de promoção e proteção” de menores, o que significa que o Ministério Público considerou haver “indícios de situação de perigo para a criança ou jovem, suscetíveis de reclamar a aplicação de medida judicial”.
Na resposta ao Observador, o Ministério Público clarificou que, segundo dados recolhidos pelo Gabinete da Família, da Criança, do Jovem e do Idoso e Contra a Violência Doméstica, muitas destas crianças foram colocadas “em famílias de acolhimento”, quer da Santa Casa de Misericórdia de Lisboa quer da Segurança Social.
Relativamente às outras 220 crianças ucranianas que chegaram a Portugal sem os pais ou representantes legal — e relativamente às quais não foi necessário instaurar um processo de proteção e promoção, o MP dá conta de que foram instaurados “procedimentos tutelares” para confiar os menores aos “familiares” ou “outras pessoas idóneas”. Em muitos desses casos, as crianças ficaram junto a esses mesmos familiares.
E porque é que as crianças foram retiradas aos pais?
Sobre Alina Komisarenko, Pavlo Sadokha descreveu que o “estado emocional” da mulher não seria o melhor. “O caso é complicado”, define, explicando que a mãe de três crianças “não percebe línguas” e que a retirada “teve a ver com problemas de tradução dos direitos de Alina”. Atualmente, o responsável assegura que a mulher está “a ser acompanhada” pela embaixada da Ucrânia em Portugal e também pela associação: “Estamos a tentar a ajudá-la.”
O caso de Snizhana Volodymyrivna é idêntico. Os responsáveis da CPCJ de Miranda do Corvo apresentaram um documento em que alegam que a mulher agredia as filhas. “Usaram o tradutor do Google no telemóvel para me dizerem que havia queixas sobre as crianças, que eu não podia bater-lhes e que, se não assinasse, iam para tribunal e eu ficava sem elas. Eu estava cheia de medo e assinei o papel”, revelou à Visão.
Alegadamente sem saber ao certo o que estava escrito no documento, a mulher teria assinado um “acordo de promoção e proteção”, o que levou à institucionalização das filhas durante um ano.
Em resposta à Visão, o presidente da CPCJ de Miranda do Corvo, Fernando Saavedra, não deu grandes detalhes, afirmando apenas que “todas as decisões” tomadas pelo organismo “têm em conta o superior interesse das crianças e jovens e que a sua intervenção depende do consentimento expresso e prestado por escrito dos pais, do representante legal ou da pessoa que tenha a guarda de facto, consoante o caso”.
Há indícios de que operava em Portugal uma rede de tráfico de crianças?
O ministro da Administração Interna, José Luís Carneiro, indicou, em maio de 2022, que o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) não tinha registado até esse momento — cerca de três depois do início da guerra — qualquer caso de tráfico de menores.
Quantos menores chegaram a Portugal sem estarem acompanhados por um representante legal?
Ao Observador, fonte do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) adiantou que, até ao final de março, chegaram a Portugal 737 menores oriundos de território ucraniano não acompanhados por um adulto ou acompanhados por pessoas que não eram os seus pais ou representantes legais, mas que, após uma análise, ficou claro que não havia qualquer “perigo atual ou iminente”.
Há ainda 15 menores que chegaram a Portugal não acompanhados, com outra pessoa que não os pais ou representante legal comprovado, e que corriam “perigo atual ou iminente para a vida”. Noutros casos, acrescenta o SEF, considerou-se que existia “grave comprometimento da integridade física ou psíquica da criança ou jovem”.
O Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social revela ao Público que, entre esses 15 casos em que os menores corriam “perigo”, em “apenas duas situações se revelou necessário recorrer à medida de acolhimento residencial”. Em ambos os casos, as crianças já foram devolvidas às respetivas famílias, acrescenta o mesmo jornal.
O que aconteceu a essas crianças e/ou adolescentes?
No caso dos 737 menores, como explicou ao Observador Rita Sassetti, advogada na área da família e menores, é feita uma avaliação por parte do SEF, que analisa a situação do menor, identificando “potenciais riscos” e averiguando a sua “relação” com as pessoas que não são os pais ou representantes legais. O caso é depois “remetido” para o Ministério Público (MP).
Verificando-se que existe realmente uma proximidade entre o menor e a pessoa que chegou com ele a Portugal, o MP procede à “nomeação de um representante legal”, desta feita em território nacional, que passa a responsabilizar-se por essa criança ou jovem.
Sobre aqueles que estão em “perigo atual ou iminente”, fonte conhecedora do processo sinalizou ao Observador que o SEF aciona as comissões de proteção de crianças e jovens em perigo. De acordo com a lei 27/2008, no âmbito das “condições e procedimentos de concessão de asilo ou proteção subsidiária e os estatutos de requerente de asilo, de refugiado e de proteção subsidiária”, o Ministério Público é igualmente informado de imediato da situação.
O SEF procede, após a chegada de um membro da comissão, a uma “entrevista pessoal” e, se for necessário, “recorre à perícia médica através de um exame pericial não invasivo” para comprovar a idade do menor. Após estes dois processos, as comissões de proteção de crianças e jovens agem, podendo “apresentar um pedido de proteção internacional em nome do menor não acompanhado”, em função da “avaliação da respetiva situação pessoal e se considerarem que o menor pode necessitar dessa proteção”.
Ao mesmo tempo, com “o objetivo de proteger os interesses superiores do menor não acompanhado”, a lei 27/2008 estipula que o “SEF, em articulação com as outras entidades envolvidas no procedimento e com o ministério responsável pela área dos Negócios Estrangeiros”, deve iniciar “o processo para encontrar os membros da família” — mesmo no caso em que já tenha sido emitido um pedido de proteção internacional.
Especial atualizado às 15h17 com os dados do Ministério Público