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É uma das redes sociais mais populares do momento. O TikTok, propriedade da chinesa ByteDance, deixa parte da geração Z (nascida entre a segunda metade dos anos 1990 e o início de 2010) agarrada ao ecrã, mas não tem conseguido convencer os EUA de que é segura e de que não funciona como uma ferramenta de espionagem ao serviço de Pequim.
A três dias do fim do ano de 2022, o braço de ferro entre os EUA e a China relativamente à aplicação de vídeos adensou-se. Joe Biden, Presidente norte-americano, ratificou o orçamento para o ano fiscal de 2023, que contempla despesas de 1,7 biliões de dólares para financiar agências federais, providenciar ajuda militar e económica à Ucrânia e estabelecer um bloqueio ao TikTok nos dispositivos móveis dos funcionários do governo federal. Os membros do executivo podem continuar a utilizar a rede social, mas só se o fizerem através dos seus telemóveis ou computadores pessoais. Os cidadãos norte-americanos também podem continuar a descarregar a aplicação, uma vez que não são abrangidos pela proibição.
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As agências governamentais têm, desde 29 de dezembro, 60 dias para definirem as regras de implementação da proibição aos visados. Na Casa Branca ou no departamento da Defesa, o TikTok já estava bloqueado dos dispositivos, pelo que, para os funcionários dessas instituições, nada muda.
O TikTok deve ser removido dos dispositivos móveis dos funcionários do governo federal dos EUA, exceto se estiver a ser utilizado para atividades relacionadas com a segurança nacional ou com questões legais. Através da porta-voz Brooke Oberwetter, a rede social reagiu à medida dizendo-se “despontada” e considerando que este é um “gesto político que não fará nada para promover os interesses de segurança nacional”.
Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre os riscos de manipulação do TikTok.
A proibição tem por base o receio norte-americano de que o governo chinês utilize a rede social como ferramenta de espionagem. Ainda assim, o The Washington Post entende que a medida é, em grande parte, simbólica porque o TikTok conta com mais de 100 milhões de utilizadores nos EUA. Por sua vez, a Forbes escreve que, apesar de existirem evidências do uso indevido de dados de norte-americanos pela ByteDance, é improvável que a aplicação seja totalmente bloqueada nos EUA.
A Electronic Frontier Foundation (EFF), organização sem fins lucrativos sediada na Califórnia que diz ter como objetivo proteger a liberdade de expressão, também defende que apesar de “a segurança, a privacidade e a relação do TikTok com o governo chinês serem, de facto, preocupantes, um bloqueio total não é a resposta”. Em declarações escritas ao Observador, a fundação afirma que uma proibição geral devido “a preocupações de segurança e privacidade estabelece um golpe de censura contra o discurso de milhões de norte-americanos”.
“Uma proibição do TikTok viola os princípios fundamentais da Primeira Emenda porque os efeitos da censura são sentidos mais diretamente pelos utilizadores, que ficarão privados da plataforma”, acrescenta. É a Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos que garante, entre outras coisas, a liberdade de expressão e a liberdade de escolha de uma religião ao proibir que o Congresso dê preferência a uma determinada doutrina.
Não só a EFF não vê com bons olhos um bloqueio total, como também, neste momento, alguns políticos já estão relutantes à ideia de, no futuro, poderem ter que deixar o TikTok porque entendem que a aplicação é uma ‘arma’ que têm para alcançar eleitores da geração Z, considerada, segundo a versão inglesa do El País, como difícil de mobilizar.
Como é que o ‘braço de ferro’ chegou até aqui?
Os receios de que o governo chinês peça ao TikTok que recolha dados dos cidadãos norte-americanos ou que influencie os vídeos que lhes são recomendados não são novos. Dias antes da assinatura do projeto de lei, a diretora administrativa da Câmara dos Representantes, Catherine Szpindor, emitia uma ordem explicando que o TikTok representava um “alto risco para a segurança dos utilizadores” e que, por isso, seria proibido nos telemóveis dos funcionários e dos legisladores.
A nota enviada pelo Comité de Administração da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, que a Vanity Fair diz ter tido “efeito imediato”, explica que os funcionários “NÃO estão autorizados a fazer download da aplicação em nenhum dispositivo móvel da Câmara dos Representantes”. Desta forma, os trabalhadores que têm a rede social nos seus dispositivos móveis “serão contactados para o remover”.
The U.S. House of Representatives’ Chief Administrative Officer has issued a cyber advisory on TikTok, labeling it “high-risk” with personal info accessed from inside China:
“we do not recommend the download or use of this application due to these security and privacy concerns.” pic.twitter.com/F87qwFiHhR
— Brendan Carr (@BrendanCarrFCC) August 17, 2022
Três meses antes da proibição, Catherine Szpindor já tinha afirmado que a rede social era de “alto risco” para os utilizadores devido à “falta de transparência acerca da forma como protege os dados do consumidor” e devido “a possíveis riscos de segurança envolvidos no seu uso”.
O TikTok é detido por uma empresa chinesa e qualquer uso desta plataforma deve ser feito com isso em mente”, acrescentou, num “cyber advisory” que foi partilhado pelo Politico.
Além disso, a diretora administrativa da Câmara dos Representantes defendeu que o TikTok armazena dados pessoais dos utilizadores em servidores localizados na China e “potencialmente explorados para fins comerciais e privados”. O The Guardian refere que a rede social negou as acusações ao explicar que esses dados são mantidos nos EUA e em Singapura — e não em Pequim, argumentando que a proibição é “politicamente motivada” e que “não ajudará a promover a segurança”.
As preocupações chegaram a alguns dos 50 estados norte-americanos, que proibiram, desde o início de dezembro, a utilização da aplicação nos dispositivos administrados pelo governo. Texas, Louisiana, Geórgia, Vírgina Ocidental, Ohio ou New Jersey são alguns dos que implementaram o bloqueio devido a receios de que a China possa utilizar o TikTok para rastrear norte-americanos e censurar conteúdos.
Ao contrário do que aconteceu nesses estados, em Rapid City, a segunda maior cidade da Dakota do Sul, a proposta que bloquearia o acesso a essa rede social em dispositivos e networks da região perdeu por 8-1.
Os avisos do “extremamente preocupado” diretor do FBI
Ainda antes da proibição, foram declarações de Christopher Wray que colocaram as suspeitas dos EUA na agenda mediática. Em novembro, o diretor do FBI avisou que o governo da China poderia tentar usar o TikTok para “controlar a recolha de dados de milhões de utilizadores” ou “controlar o algoritmo” que decide os conteúdos que determinado utilizador vê.
Citado pela agência Reuters, Christopher Wray afirmou que as empresas chinesas são obrigadas a “fazer o que o governo [desse país] quer que elas façam em termos de partilha de informação” e de servirem de “instrumento” a esse executivo. “Isso é motivo suficiente para estar extremamente preocupado”, salientou, acrescentando que, no seu entender, a rede social pode ser também utilizada por Pequim para “controlar o software de milhões de dispositivos” tendo assim a oportunidade de os “comprometer tecnicamente”.
Em reação às declarações, o TikTok disse que a “contribuição do FBI está a ser considerada como parte das negociações em curso com o governo dos EUA”. Com as conversações, que decorrem desde 2019, a rede social pretende dar certezas da sua segurança ao executivo norte-americano. Apesar da confidencialidade, a plataforma acredita estar “no caminho para satisfazer plenamente todas as preocupações” dos EUA.
De acordo com o Engadget, a rede social detida pela ByteDance tem tentado acalmar as preocupações dos legisladores quanto às suspeitas de espionagem. Por isso, desde junho do ano passado, todo o tráfego dos EUA é direcionado para servidores da empresa de tecnologia Oracle nesse país. Tanto o TikTok como a ByteDance disseram que iam excluir dos seus próprios servidores os dados dos utilizadores norte-americanos.
Questionada pelo Observador acerca da possibilidade de outras redes sociais, além do TikTok, poderem tentar “controlar” os dados dos utilizadores norte-americanos, a Electronic Frontier Foundation considera que esta plataforma não é “particularmente menos segura” do que outras. Porém, “é diferente das outras aplicações, como o Facebook ou o Twitter, porque tem funcionários na China e a sua proprietária está sujeita à jurisdição chinesa”. Existe uma lei chinesa que “desde 2017 declara que todas as organizações e cidadãos devem ‘apoiar, assistir e cooperar’ com os esforços dos serviços de informação nacionais, o que pode incluir vigilância ou acesso aos dados dos utilizadores”, acrescenta a EFF.
Ainda assim, a organização sem fins lucrativos salienta que “outros governos [além do chinês] procuram aceder a informações dos utilizadores e que as aplicações por vezes dão essas informações aos governos”. Para sustentar a opinião, a fundação norte-americana remeteu o Observador para a página de “transparência” disponível no site da Meta, onde a tecnológica escreve que o “Facebook responde a solicitações governamentais para acesso a data em concordância com a aplicabilidade da lei e os termos de serviço”.
Afinal, a ByteDance teve ou não acesso a dados de norte-americanos?
Ainda o projeto de lei estava em discussão no Congresso quando a ByteDance demitiu quatro trabalhadores — dois nos EUA e dois na China — que obtiveram acesso a dados (como endereços IP) de vários utilizadores norte-americanos do TikTok, incluindo dois jornalistas. De acordo com o The New York Times, esses funcionários tentavam encontrar as fontes responsáveis por fugas de informação e entrega de documentos comerciais à comunicação social. Os esforços para encontrar os responsáveis pelas fugas de informação terão sido em vão.
ByteDance despediu centenas de trabalhadores na China
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No final de 2022, a ByteDance, proprietária do TikTok, despediu centenas de funcionários na China. Os números exatos não foram avançados, mas os cortes representam uma pequena percentagem da força de trabalho da empresa chinesa, de acordo com o South China Morning Post.
A medida faz parte de um esforço da ByteDance para cortar custos. Os funcionários despedidos vão ser indemnizados com base no número de anos de trabalho, mais um mês de salário.
Ainda assim, apesar dos despedimentos, a empresa também se encontra a contratar em Pequim, Londres e Califórnia.
Um dos meios de comunicação com informações é o BuzzFeed, que teve acesso a áudios de mais de 80 reuniões internas do TikTok. O site diz que esses ficheiros comprovam que engenheiros da China terão acedido, de forma regular, entre setembro de 2021 e janeiro de 2022, a dados de utilizadores norte-americanos (como, por exemplo, números de telemóvel).
Tudo é visto na China”, disse um funcionário do TikTok numa reunião em setembro. Nesse mesmo mês, um diretor descreveu um engenheiro da ByteDance em Pequim como um “‘master admin [administrador]” que “tem acesso a tudo”.
Uns dias após o artigo do BuzzFeed ter sido publicado, um comité do Senado pediu à Comissão Federal de Comércio que investigasse se as autoridades chinesas estavam a aceder a dados de utilizadores norte-americanos através do TikTok. Além disso, o comité pretendia que fosse estudado o uso que engenheiros e funcionários chineses podiam fazer dos dados recolhidos pela rede social e pela ByteDance, a proprietária.
As informações presentes nas reuniões internas da empresa foram confirmadas pelo TikTok, que garantiu, porém, que os dados dos utilizadores dos EUA “nunca” foram partilhados com o governo e que “não o faria” se tal fosse solicitado.
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As negociações do “projeto Texas”
Com a divulgação de informações acerca do acesso de funcionários da ByteDance na China a dados de utilizadores norte-americanos, a empresa desenvolveu um plano — conhecido como “projeto Texas” — para tentar dar garantias da sua segurança às entidades que a questionam.
O TikTok já gastou mais de 1,5 mil milhões de dólares, mas ainda não conseguiu chegar a acordo com o Comité de Investimento Estrangeiros nos EUA (Committee on Foreign Investment in the United States, CFIUS), que detém o poder de encerrar negócios que considere que podem representar uma ameaça à segurança nacional, para a implementação do plano. As negociações “confidenciais“ decorrem desde 2019.
Quatro fontes familiarizadas com o tema disseram ao The Washington Post que, durante as negociações, a rede social concordou em separar as decisões tomadas nos EUA das tomadas pela empresa chinesa ByteDance. Além disso, com a implementação do “projeto Texas”, passariam a ser os norte-americanos a definir os padrões para a contratação da equipa do TikTok no país.
O plano prevê ainda que sejam supervisores independentes a fazer a auditoria do algoritmo e dos sistemas de moderação de conteúdo para evitar que esses mecanismos possam ser utilizados pela China, como temem os EUA, para influenciar as publicações que os utilizadores veem. A ideia do “projeto Texas” é que dados “confidenciais” não possam sair dos EUA para a China e que todas as informações armazenadas pelos servidores da Oracle não possam ser acedidas por Pequim.
O TikTok planeia contratar um inspetor de código-fonte, um supervisor independente e três auditores, incluindo um para garantir que os dados são excluídos dos servidores da rede social após a migração para os da Oracle e outro dedicado à cibersegurança, para responder aos receios do governo de Joe Biden. As funções que o terceiro auditor teria não são conhecidas.
No início deste novo ano, porém, a plataforma suspendeu o processo de contratação de consultores que ajudariam a implementar o plano, argumentando com “desenvolvimentos recentes” (sem especificar quais). Duas fontes com conhecimento do tema, citadas pela agência Reuters, referem que os especialistas que disputam uma das vagas foram informados de que o processo está suspenso e de que serão informados, até ao final de janeiro, caso existam novidades. As mesmas fontes acrescentam que esses indivíduos, se contratados, serão pagos pelo TikTok, mas terão que reportar ao governo norte-americano.
A última vez que as ideias do TikTok para o “projeto Texas” foram apresentadas ao CFIUS foi em agosto de 2021. Até ao momento, não receberam qualquer aprovação e não existem indicações de que um acordo esteja iminente.
Trump tentou bloquear o TikTok, mas não conseguiu
Quando estava a terminar o mandato de Presidente dos EUA, em 2020, Donald Trump tentou bloquear a realização de novos downloads do TikTok e da WeChat, duas aplicações chinesas que considerava que representavam uma ameaça para a segurança nacional. A proibição enfrentou desafios legais e nunca entrou em vigor, refere a BBC.
Em junho de 2021, Joe Biden revogou a ordem executiva do antecessor. Porém, na nova ordem, o atual Presidente norte-americano afirmou que as aplicações podem “aceder e capturar vastas” informações dos utilizadores, que podem “fornecer aos adversários estrangeiros”. Por isso, salientou que o governo federal deve avaliar as ameaças representadas por aplicações e softwares baseados na China através de uma “análise rigorosa e baseada em evidências” e abordar “quaisquer riscos inaceitáveis”, entre outras coisas, à segurança nacional.
A revogação da ordem executiva de Trump não significa que Biden não continuou a olhar para o TikTok, como veio a provar um ano depois, no final de 2022, ao assinar o projeto de lei que inclui a proibição desse rede social nos dispositivos móveis de alguns funcionários do governo federal.
O país onde o TikTok não está disponível
Ao contrário de Trump, a Índia não só tentou como conseguiu. Foi em junho de 2020 que o país proibiu o TikTok, juntamente com outras 58 empresas chinesas como a Shein ou a WeChat. Um artigo do Tech Crunch, à época, indicava que o país se preocupava com a possibilidade de as aplicações desenvolvidas por empresas chinesas estarem envolvidas em atividades que ameaçassem a “segurança nacional e a defesa da Índia”, o que, no seu entender, afeta a sua “soberania” e “integridade”.
No início desse mês de junho, o sentimento anti-China ganhou força após mais de 20 soldados indianos terem sido mortos num confronto entre os exércitos indiano e chinês nas áreas fronteiriças disputadas dos Himalaias. No Twitter, tópicos como “boicote à China” foram parar às tendência com cidadãos a publicar vídeos onde destruíam produtos, como telemóveis, fabricados na China.
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Ainda antes do boicote, em maio, já o TikTok recebia avaliações negativas de utilizadores na Índia que, segundo o Tech Crunch, descobriram (e depois começaram a partilhar no Twitter) vídeos que promoviam temas como a violência doméstica, o racismo ou o abuso de menores. Com a proibição (sem precedentes) da Índia, a plataforma chinesa perdeu os 200 milhões de utilizadores que tinha nesse país.