Começou a maratona orçamental. A expressão usada por Hugo Carneiro, deputado do PSD, no debate inaugural da proposta de Orçamento do Estado para 2024 (com o ministro das Finanças) está longe de ser uma hipérbole. Há um número crescente de artigos e, sobretudo, uma avalanche de propostas de alteração que têm de ser votadas (às vezes alínea a alínea (e até metade de alíneas) sem que os deputados tenham qualquer informação sobre quanto custam, se são úteis ou até se são exequíveis.
Com o prazo para alterações fechado e mesmo perante a perspetiva de um Orçamento diminuído — já que um novo Governo fará provavelmente um retificativo — os partidos voltaram a bater o recorde com a entrega de cerca de 1.900 propostas (já esta quinta-feira, entre aditamentos, eliminações e substituições e erros de carregamento, a contagem ia nos 1920). Estes números correspondem a 1810 propostas numeradas (que serão votadas e em alguns casos menos frequentes, alínea a alínea), o que compara com as 1763 propostas numeradas do ano passado.
Se dividirmos o número pelos dias de votação em comissão — quatro dias mais meio dia — daria qualquer coisa como 17 propostas a votar por hora (algumas são também discutidas e votadas no plenário). Isto se os deputados não fizessem mais nada durante esse período. Os próximos três dias úteis serão dedicados a elaborar os longos guiões para a votação, que vai decorrer entre 23 e 29 de novembro.
“A verdade é que nem com um exército de 50 avaliadores independentes altamente competentes seria possível avaliar impactos orçamentais em meia dúzia de dias”. O desabafo consta do parecer preliminar à última proposta orçamental elaborado pela Unidade Técnica de Apoio Orçamental que tem como uma das suas missões fazer a avaliação de algumas das muitas propostas, sobretudo das que dividem mais os partidos.
A UTAO só tem capacidade para avaliar um número reduzido de iniciativas. Para o Orçamento de 2021, analisou o impacto de três medidas: descontos nas ex-Scut, suspensão de pagamentos por conta e receita do IVA da restauração. E para o OE 2023 avaliou o impacto da criação de novos escalões do IRS.
O que é essencial num Orçamento e a “via verde” para legislar sobre tudo
Os técnicos do Parlamento defendem que, no limite, bastavam meia dúzia de artigos a fixar limites e alguns quadros contabilísticos para se cumprir o mínimo que um Orçamento deve assegurar.
- Fixar o teto da despesa das administrações públicas
- Prever as receitas das administrações públicas
- Estabelecimento de teto de financiamento através da emissão de dívida
- Fixação de teto para avales e garantias de Estado
- Definir a dotação provisional
- Quantificar o valor das transferências do Estado para os subsetores regional e local
E um conjunto de mapas contabilísticos.
Mas, em vez disso, temos orçamentos com um número crescente de leis. A UTAO lembra que o de 1999 tinha 87 artigos, número que triplicou para os 284 artigos da lei do OE de 2023. A proposta para 2024 tem, para já, apenas 198 artigos, mas vai crescer, tal como a do ano passado, que cresceu com a introdução 86 artigos.
Sem contar com o recorde atingido de 445 artigos na lei orçamental de 2021 — o último Orçamento da Geringonça e sem maioria absoluta.
Ainda mais alucinante é a explosão do número de propostas de alteração e aditamento ao já vasto programa proposto. Depois de ter conhecido uma queda muito acentuada nos anos da troika e do programa financeiro — para chegar ao valor mais baixo em mais de uma década em 2016 (o primeiro ano da Geringonça) com 249 — o rol de alterações propostas tem crescido de forma consistente todos os anos, tendo atingido as 1547 em 2021 — mais uma vez o último ano em que o PS precisou dos parceiros à esquerda para viabilizar o Orçamento.
E, não poucas vezes, foi derrotado por maiorias negativas da esquerda com a direita, como o célebre caso já no final da maratona negocial de 2021 (a passar a meia noite), da proposta do Bloco para eliminar a alínea do mapa que transferia recursos para o Fundo de Resolução realizar a injeção anual no Novo Banco.
A apresentação de artigos novos segue a mesma tendência de crescimento até 2021, tendo recuado para 74 no ano passado.
Em 2022 já existia uma maioria socialista, o que limitou o potencial para aprovação de propostas da oposição que o Governo permite, mas o número de alterações propostas caiu apenas ligeiramente para 1505. E voltou a disparar na discussão do Orçamento para 2023, quando os partidos entregaram 1862 propostas.
“Estes números avassaladores falam por si. É neste ambiente institucional que o país decide o importante e o acessório, mais com emoção do que com a razão, sempre de olhos postos no curto prazo, ou seja, no Orçamento do ano seguinte e sem tempo para pensar estrategicamente o médio prazo”, refere a UTAO.
Os impostos, considera a UTAO, têm sido uma vítima preferencial deste “processo de decisão coletiva alucinante”, na medida em que as propostas orçamentais têm sido o veículo privilegiado para legislar sobre o tema. E não o mais adequado, porque não há uma reflexão estrutural sobre a ligação à economia e porque gera mais incerteza, imprevisibilidade e complexidade.
Mas na verdade, o “processo legislativo orçamental é uma via verde para legislar sobre tudo”. Diplomas que propostos fora desta janela demorariam dezenas de dias para que fosse assegurado o cumprimento das regras — como a audição das partes interessadas — ganham com o Orçamento o empurrão decisivo. Muitas vezes as propostas são votadas por número, sem indicar o tema e muito menos o conteúdo. “Em suma, a via verde é rápida, mas à custa de transparência e escrutínios públicos”.
Mais propostas, as mesmas aprovações. E a exceção do primeiro ano da geringonça
Apesar deste crescimento constante, as estatísticas apresentadas pela UTAO mostram que o número de propostas aprovadas não cresce na mesma proporção. Ou seja, não é por ter mais alterações que estas são aprovadas. A relação entre as propostas e aprovações tem a mais ver com ciclos políticos.
Nunca, nas mais de duas décadas analisadas pela UTAO (de 1999 a 2023), houve uma maior aproximação entre as alterações propostas e o número de aprovações do que em 2016, que é na prática o ano inaugural da geringonça. A taxa de aprovação foi superior a 50%, o que denota o grau de envolvimento dos partidos à esquerda do PS, ou da dependência deste do PCP e Bloco. Esta proximidade manteve-se em 2017, mas já a partir de 2018 começa a verificar-se um afastamento mais consistente com a prática de anteriores legislaturas.
Se os números são reveladores da forma como os partidos (e o Governo) olham para o Orçamento do Estado como a resposta para quase todos os problemas do país, os técnicos do Parlamento atiram também ao quadro legal vigente. “As regras do jogo do processo legislativo orçamental, inscritas na Constituição, na lei de enquadramento orçamental e no regimento da Assembleia da República (que não limita, por exemplo, o número de propostas) não só permitem como estimulam que quase tudo possa ser legislado nesta época e acabar plasmando todos os anos na lei do Orçamento do Estado”.
Propostas não fundamentadas nem avaliadas
A UTAO nota que o Parlamento aprova muitas alterações no mesmo dia em que aprova os mapas preparados pelos ministérios das Finanças e Segurança Social onde estão inscritos os valores para as unidades orgânicas dos organismos do Estado, sem saber que novas medidas serão acrescentadas ou alteradas. E muito menos as suas implicações financeiras.
“É humanamente impossível avaliar o impacto orçamental previsível das alterações aprovadas pela AR. As propostas são conhecidas a uma semana do início das votações e procedem de um conjunto de gigantesco de propostas”.
E qual é o resultado desta enxurrada legislativa concentrada entre a apresentação e discussão do OE, num período de um mês e meio? Ninguém parece saber muito bem. Mas isso não impede alguns partidos de apresentarem centenas de propostas. “O que esperam as proponentes alcançar com tanto esforço? É certo que muitas são repetições de propostas submetidas em anos anteriores ou de iniciativas que não vingaram no processo legislativo normal”.
Na avaliação da UTAO das 1505 alterações propostas ao Orçamento de 2022, a grande maioria corresponde a medidas de política com impacto nas finanças públicas. No entanto, “o escrutínio sobre as suas implicações na economia e nas contas públicas é impossível”. As propostas não são sustentadas em documentos técnicos que justifiquem a sua utilidade ou se são exequíveis. E muitas remetem para regulamentação a elaborar no ano seguinte e nem têm sequer o grau de detalhe que permita perceber quais serão as variáveis económicas e orçamentais impactadas. Para além da ausência de metas associadas às medidas
Há partidos a entregarem centenas de propostas, muitas das quais são repetições de iniciativas chumbadas no passado pelo que “a expetativa de sucesso das propostas oriundas das oposições não será, com certeza o incentivo por detrás deste impulso proponente”, concluem os técnicos do Parlamento.
Sendo a maioria destas iniciativas de natureza política fica a interrogação. “Se for para mostrar aos eleitores a capacidade política dos partidos ou dos deputados subscritores, capacidade de pensar e oferecer soluções concretas para as necessidades que identificam com toda a legitimidade, valerá a pena perguntar que partes das centenas de PA (propostas de alteração) apresentadas em novembro conseguem os simpatizantes de cada partido recordar meia dúzia de dias após elas serem divulgadas. Como é que os cidadãos apreendem as prioridades de um partido no debate parlamentar da POE quando apresenta dezenas e centenas de medidas de política?”
Não podendo perguntar aos cidadãos, o Observador dirigiu as perguntas aos partidos que mais propostas apresentaram no último ano, mas a crise política e a intensa atividade partidária que a acompanhou atrapalharam a receção das explicações.
PCP e Chega são os que apresentam maior número de alterações
O Partido Comunista, que continua a liderar o pódio, remeteu para a declaração de Paula Santos, a líder parlamentar. A deputada defendeu que as 450 (chegaram a 494 com substituições) propostas permitem “uma intervenção ampla e diversificada, alicerçada no conhecimento e na ligação aos trabalhadores e às populações, com medidas e soluções que permitem melhorar as condições de vida dos trabalhadores e dos reformados, reforçar serviços públicos e garantir direitos consagrados na constituição, combater injustiças e desigualdades, promover a produção nacional e proteger a natureza e o ambiente, reforçar o investimento público e a coesão territorial”.
Nesta apresentação, os comunistas destacaram a descida do passe social como uma das medidas adotadas no passado para a qual contribuíram. Este ano a propõe baixar para 20 euros. E enviaram recado à direita. “No debate da especialidade do orçamento, o PS, tal como PSD, IL e CH serão confrontados com as nossas propostas, com soluções concretas que são possíveis e necessárias. Propostas que demonstram que é possível uma política alternativa.”
O Chega, o segundo partido com mais alterações, justificou esta opção com o desacordo face ao documento original, segundo afirmou André Ventura na conferência de apresentação das propostas.
“Não podemos passar o ano a dizer que é mau, negativo e quando chega o momento entregamos só 10 ou 20 propostas. Isso seria demitir-nos do trabalho político e da nossa função”, declarou numa crítica implícita à Iniciativa Liberal, que apresenta 41 propostas, e é o partido que menos pretende alterar o orçamento.
Chega quer mais impostos sobre a banca e descida do IVA nos combustíveis
Dando o sinal de que as propostas do Chega são o esqueleto de um orçamento retificativo que pretende entregar no próximo ano após as eleições, e se a direita tiver a maioria, com um conjunto delas a irem para uma área concreta, a justiça. E garante que apesar do número de alterações não ser diferente do que aconteceu nos anos anteriores, as propostas em si são, na essência, diferentes. No ano passado, o partido não teve nenhuma proposta aprovada em parte por causa da cerca sanitária imposta pela maioria socialista. O cenário deverá repetir-se este ano.
É de cada um dos extremos do espectro político representado no Parlamento que chegam mais propostas de alteração. Na discussão do Orçamento de 2023, o Chega liderou com 506, seguido do PCP, com 425. Seguiram-se o PAN e o PSD, ambos com 263 e o Bloco de Esquerda entregou 156, o Livre 141, o PS 73 e a IL foi o partido mais moderado com 35 iniciativas.
O cenário repete-se, com ligeiras nuances, na discussão e votação na especialidade do Orçamento para 2024. O Chega, com 441 propostas, foi ultrapassado pelos comunistas (494 entradas). O PSD entregou 302, o Bloco, 184, o PAN, 159, o Livre, 153, e a IL, 54. Até os socialistas, que defendem as qualidades deste Orçamento, entregaram 99 propostas, e uma delas para apagar o incómodo agravamento do imposto único de circulação (IUC).
Quando se muda a lente para avaliar o número de propostas por deputado apresentadas, o PAN é o líder absoluto já que tem apenas um deputado (nem sequer um grupo parlamentar), o que não impediu de entregar tantas iniciativas como o maior partido da oposição, que tem 76 deputados. Isto no ano passado. Este ano, e considerando o número de propostas por deputado, PAN e Livre disputam esse pódio.