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Bazuca da UE "pode piorar as distorções" que há muito tolhem a economia portuguesa, avisa João Moreira Rato

PRR tem Estado a mais e pode causar um efeito similar à "Doença Holandesa", diz João Moreira Rato, o economista que andou a vender o país, lá fora, quando investir em Portugal podia dar despedimento.

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João Moreira Rato liderou o regresso de Portugal aos mercados à saída da crise da dívida, numa altura em que, para os investidores, fazer uma aposta nas obrigações portuguesas podia valer despedimento. Aliás, sobretudo no início, em 2012, “não era tanto uma questão de convencer os investidores a comprarem dívida portuguesa – mais do que isso, era convencê-los a não vender a que já tinham”, recorda o ex-presidente do IGCP.

Em entrevista exclusiva ao Observador, Moreira Rato fala sobre o livro que acaba de publicar, sobre como Portugal “navegou” o pós-crise financeira, que está repleto de histórias sobre os bastidores do regresso aos mercados. Contam-se os inúmeros pequenos-almoços com investidores, que perguntavam ao presidente do IGCP se a mãe dele andava a ir a muitas manifestações e, também, se os seus filhos, depois de estudarem, ficariam a trabalhar em Portugal. E até a vez em que João Moreira Rato achou que teria de agarrar a sua colega Cristina Casalinho (depois, sua sucessora no IGCP) enquanto ambos ouviam, cada vez mais irritados, um responsável de uma agência de rating que estava a falar “com preconceito” sobre Portugal.

Hoje, Moreira Rato é presidente do conselho de administração do Banco CTT, mas não exclui assumir novamente responsabilidades de “serviço público” – ainda que só nas “condições certas, caso contrário é um pesadelo, como o Dom Quixote a lutar contra os moinhos de vento”. O economista diz que parece haver em Portugal uma indisponibilidade para fazer o diagnóstico completo das razões pelas quais o país não cresce mais.

A culpa, diz Moreira Rato, é das “distorções” que há muito tolhem a produtividade da economia – “distorções” essas que os milhões do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), aprovado formalmente há poucos dias, podem agravar ainda mais. Há demasiado Estado no PRR, defende Moreira Rato, e por isso o economista receia que a “bazuca” europeia possa ter um efeito “pernicioso”, descrito nos livros de Economia como a “Doença Holandesa” – isto é, um bom desenvolvimento que, depois, acaba por levar as economias à ruína.

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E mesmo não querendo alongar-se muito sobre o Novo Banco (do qual foi o primeiro administrador-financeiro, por poucas semanas), não deixa de comentar a polémica dos bónus pagos (em anos de prejuízos) à administração do banco, liderada por António Ramalho.

O livro The European Debt Crisis: How Portugal Navigated the post-2008 Financial Crisis está disponível em formato físico e versão eletrónica em sites como a Amazon espanhola.

Calma nos mercados, graças ao BCE. Mas Portugal “não tem autonomia”

Hoje vivemos numa era completamente diferente do que existia quando estava no IGCP. Agora temos um banco central muito agressivo nos estímulos, muito presente nos mercados com a compra de dívida – os mercados estão um pouco anestesiados. Quanto é que isto pode durar?
A questão que se põe é uma questão de autonomia. Na situação em que estamos não temos autonomia – estamos dependentes de terceiros. Estamos dependentes do BCE para comprar as nossas obrigações onde, na verdade, estamos no mesmo barco que países que têm um peso muito importante na Europa, como França, por exemplo, que também tem os seus problemas.

Qual é o grande risco que existe, nessa perspetiva?
É que as taxas começarem a subir, impulsionadas por perspetivas de inflação mais elevada. Já se está a ver isso a acontecer nos EUA, arrastando também a Europa. Aí, a situação pode tornar-se mais tensa, porque se houver uma altura em que as taxas começam a subir, se se gera pressão para se diminuírem as compras do BCE e nós temos de colocar a nossa dívida (e temos muita para colocar), facilmente as taxas podem subir de forma significativa.

Portugal não seria o único afetado por isso, mas o que é que torna a situação do país mais específica, mais singular, aos olhos dos investidores?
O grande mistério de Portugal, que é específico do nosso caso, é que no nível de desenvolvimento que temos é difícil entender porque é que não crescemos mais. Todos os anos formamos melhores alunos, temos melhor capital humano, mas isso não se vê no aumento da produtividade. Temos uma economia muito rígida, pouco flexível e a política monetária que temos atualmente permite que se evite pensar em alguns problemas fundamentais e pensar-se mais estrategicamente e a prazo.

Moody’s: “É um enigma Portugal não estar a crescer mais”

Porque é que acha que a economia não cresce mais?
Porque a economia está cheia de distorções. É um problema termos tanta dívida acumulada e tão pouca capacidade de crescimento. É uma situação muito perigosa – é a mesma situação que nos levou ao que se passou em 2011. Temos em Portugal muitos setores em que diferentes empresas do mesmo setor têm índices de produtividade muito distintos, e isso é muito estranho.

Onde é que estão as distorções, na sua ótica?
Muitas delas já existiam antes da crise de 2008 [internacional, 2011 em Portugal] e têm a ver com o investimento que existe em setores de atividade com produtividades baixas. Investimentos que são feitos por razões que não são puramente economico-financeiras. Interferências políticas… Escolhas do Estado… Distorções no sistema financeiro, com alguns bancos que evitam tomar perdas de capital e, portanto, mantêm empresas zombies a funcionar… Essas empresas zombies, depois, estão em setores de atividade em que, por causa do financiamento dos bancos, acabam por conseguir sobreviver quando há empresas melhores que, por causa dessa distorção, não conseguem realizar esse diferencial de qualidade. É desse tipo de distorções de que estou a falar.

"Devíamos ter reduzido mais a dívida. A crise do Covid demonstrou-o"

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“A crise da Covid-19 fez com que nós nos deparássemos, de frente, com a nossa pouca capacidade orçamental. E essa pouca capacidade orçamental está relacionada com o facto de termos reduzido a dívida menos do que podíamos ter reduzido”, afirma João Moreira Rato, acrescentando que “é para precaver o risco de crises como esta que as coisas se fazem [a redução da dívida]”.

Por outro lado, o ex-líder do IGCP defende que “devíamos ter aproveitado – e devíamos estar a aproveitar – para emitir dívida com maturidades mais longas”. “Se olharmos para nossa estrutura de reembolsos, não há razão nenhuma para não termos alargado mais as maturidades – a maior parte dos emitentes soberanos europeus fizeram isso, nós só fizemos uma emissão mais longa”, lamenta.

Isso significava garantir custos de financiamento mais baixos para os nossos filhos ou netos mas suportar, agora, um pagamento mais caro, porque a dívida com prazo maior acarreta, normalmente, juros mais elevados. E, “além disso, significava que teríamos mais margem de manobra nos próximos 10 ou 15 anos, porque teríamos reembolsos mais leves do que temos.

“Não teríamos de financiar montantes tão elevados. Nós só não fizemos isso, em Portugal, por causa de preocupações orçamentais anuais, de curto prazo. Porque se fizéssemos isso teríamos um pouco mais a pagar, anualmente, em juros – embora esses custos pudessem ser vistos como um investimento, como expliquei – e isso pressionaria os orçamentos no curto prazo”, analisa.

A “bazuca” europeia. O risco é “concentrar muitos recursos em setores que não têm futuro nenhum”

O Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), aprovado há poucos dias, pode ser útil nesse aspeto?
O PRR, mais uma vez, é um investimento enorme feito no país mas em setores cuja escolha depende de decisores políticos que não têm obrigatoriamente em consideração critérios puramente financeiros. A partir daí, cria-se uma situação perigosa em que se podem concentrar muitos recursos em setores que não têm futuro nenhum. São setores que vão receber muito investimento, vai atrair muito capital humano valioso, as pessoas vão estar a ganhar bem, mas não se vai fazer a economia crescer.

Então a “bazuca” pode alimentar mais dessas distorções?
Pode, porque vai trazer muitos recursos para alguns setores em que, muito provavelmente, se não houvesse esses recursos não se afetaria capital físico e humano. Pode ser como a chamada “Doença Holandesa”, aquele fenómeno económico muito estudado em que um país descobriu grandes reservas gás natural, à primeira vista uma coisa boa mas que acabou por distorcer toda a economia. Aqui pode passar-se o mesmo.

O que é que tem em mente, em particular, quando diz isso? Que setores…?
Não é preciso ir muito longe, basta pensar em muitos investimentos que vão ser feitos no Estado. Quando, por exemplo, se investe na digitalização do Estado sem se reorganizar o Estado arrisca-se a meter muitos recursos em consultores e hardware e software em áreas que nunca serão utilizadas.

Como é que faria diferente?
Seria necessário concentrar o máximo de investimento em infraestruturas produtivas – como a ferrovia, por exemplo, nos portos, no chamado last mile – e, no que diz respeito ao setor público, ter a certeza de que o capital humano está ajustado à transformação digital que se quer fazer. É preciso criar mecanismos de flexibilidade dentro da administração pública, mesmo ao nível dos recursos humanos. O capital tem de vir com algumas reformas associadas.

"Serviço público atrai-me. Mas só nas condições certas – senão é como o Dom Quixote"

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Presidente do conselho de administração do Banco CTT, João Moreira Rato não exclui voltar a assumir responsabilidades públicas. “Eu estou sempre interessado em fazer serviço público. O trabalho que eu fiz na minha vida, com mais significado, provavelmente, foi o do IGCP. Mas sei que só resulta se as condições estiverem asseguradas para se conseguir fazer um bom trabalho. Ou seja, se estivermos a falar de participar num esforço comum para melhorar a vida das pessoas, através do nosso trabalho, do nosso serviço público, é uma sorte, é um privilégio. Mas se os agentes não estão todos alinhados, é um pesadelo”.

O trabalho do IGCP, por exemplo, só funcionou porque havia um programa de ajustamento que fazia sentido e havia um governo com vontade de o seguir. Só assim eu pude explicar aos investidores o que estava a acontecer – se não tivesse tido um ministro das Finanças que estivesse a fazer esse trabalho eu também não teria conseguido fazer o meu.

“Fazer serviço público só assim, quando as coisas estão alinhadas, senão é um bocadinho como o Dom Quixote a lutar contra os moinhos de vento”, afirma.

O Banco de Fomento pode ter um papel importante nessa alocação?
No passado já tivemos um banco de desenvolvimento, nos anos 80… Agora a primeira questão é saber se temos um Banco de Fomento com a governance certa, com as pessoas certas, as pessoas têm de ser bem pagas porque senão não se consegue ir buscar as pessoas melhores – e isso logo aí é um problema, mais independentes e com uma carreira mais consistente… Os técnicos de que o Banco de Fomento precisa são técnicos caros.

Bónus no Novo Banco? Quando o Estado foi buscar este tipo de investidores, já sabia…

Mas até no seu caso, quando estava no IGCP, houve um jornal que fez capa com o seu salário…
É verdade. É o que é. Era um problema que tínhamos no IGCP, não eu próprio, mas os técnicos do IGCP não eram bem pagos para o que faziam e para a responsabilidade que tinham. O IGCP é o maior emitente de dívida português: porque é que um técnico havia de ficar lá a fazer aquele trabalho quando pode ir para uma Galp ou uma EDP ganhar muito mais, a fazer o mesmo tipo de trabalho? Estávamos sempre a perder gente…

A esse propósito, recentemente falou-se muito da polémica em torno dos bónus pagos – em rigor, prometidos – à administração do Novo Banco…
Sim, eu não quero falar muito sobre o Novo Banco porque ainda está em curso a comissão de inquérito, eu próprio estive  no parlamento há pouco tempo. Mas o que posso dizer em relação a isso é que quando os private equity (como o Lone Star) entram neste tipo de situações [a compra do Novo Banco], a transformação que é feita parece fácil mas não é – envolve muito risco. E é por isso que os acionistas normalmente querem compensar bem os gestores, de uma forma muito indexada ao sucesso. Porque este tipo de fundos, pela sua experiência, notam que no passado tiveram melhores resultados quando esses incentivos foram definidos assim.

Mas está a pôr a tónica nos interesses do acionista Lone Star, que não tem 100% do banco, tem 75%.
Sim, mas… A partir do momento em que se foi buscar esse tipo de acionistas para resolver aquela situação, já sabia que ia ser assim. À partida, quando o Estado precisou de alguém para lhe resolver o problema, o Lone Star resolveu e o Estado aceitou. E, que eu saiba, não colocou à partida limitações à forma como o Lone Star podia remunerar os administradores. Eu percebo que para a opinião pública seja difícil aceitar este tipo de prémios, mas quando se lida com este tipo de investidores isto é usual.

Certo, mas repare que vários responsáveis criticaram os bónus, disseram que era uma prática contrária ao que seria correto…
Pois… Isto é mau, porque pode limitar em situações similares no futuro que outros investidores queiram envolver-se. É como na dívida pública, a certa altura falava-se dos hedge funds mas, no princípio, eles foram fundamentais para Portugal dar os primeiros passos de regresso aos mercados. Depois saíram, ganharam dinheiro, mas na altura foram úteis para nós, ajudaram-nos a resolver um problema.

Um investidor "muito importante" perguntou a Moreira Rato, antes de investir, se os seus filhos iriam querer trabalhar em Portugal após os estudos.

MIGUEL A. LOPES/LUSA

Nesta fase está no Banco CTT, mas admite voltar a assumir responsabilidades públicas no futuro?
Eu estou sempre interessado em fazer serviço público. O trabalho que eu fiz na minha vida, com mais significado, provavelmente, foi o do IGCP. Mas sei que só resulta se as condições estiverem asseguradas para se conseguir fazer um bom trabalho. Ou seja, se estivermos a falar de participar num esforço comum para melhorar a vida das pessoas, através do nosso trabalho, do nosso serviço público, é uma sorte, é um privilégio. Mas se os agentes não estão todos alinhados, é um pesadelo.

O que quer dizer com isso?
O trabalho do IGCP, por exemplo, só funcionou porque havia um programa de ajustamento que fazia sentido e havia um Governo com vontade de o seguir. Só assim eu pude explicar aos investidores o que estava a acontecer – se não tivesse tido um ministro das Finanças que estivesse a fazer esse trabalho eu também não teria conseguido fazer o meu. Fazer serviço público só assim, quando as coisas estão alinhadas, senão é um bocadinho como o Dom Quixote a lutar contra os moinhos de vento.

Os (pequenos-)almoços com investidores e o “verão quente” de 2013

O que podemos ler neste livro que acaba de lançar?
O livro é uma história do período que vai de 2008 até 2014, começando por explicar como se chegou àquela situação de crise financeira [em 2011] e depois contando como foi possível fazer o regresso aos mercados com o apoio dos investidores, sem necessidade de um segundo resgate como teve a Grécia. Conta várias histórias sobre como foi o contacto com investidores, com as agências de rating, com jornalistas, etc.

Como está escrito em inglês e inclui essa explicação sobre como se chegou à crise, parece talhado para um estrangeiro que se interesse por estes temas. Mas o que é que o leitor português, que assistiu a esse processo, de fora, vai encontrar no livro?
Vai encontrar uma história de bastidores sobre o trabalho gradual de reconstrução da credibilidade internacional de um país, de um emitente soberano. Quando começou este exercício, Portugal estava mais próximo da Grécia, em termos de perceção dos mercados, do que da Irlanda. E no fim do processo estava mais próximo da Irlanda do que da Grécia – isso foi um trabalho difícil, minucioso, que demorou bastante tempo.

Como é que esse trabalho foi feito, no que diz respeito ao IGCP?
Na interação com os investidores tivemos sempre uma atitude cândida, de transparência total sobre os problemas que levaram Portugal àquela situação, dizer-lhes “daqui para a frente, os riscos são x e y“. Recordo-me de um dia em que fomos ao norte da Europa e tivemos encontro com investidores finlandeses – que não estavam muito para aí virados, para comprar dívida portuguesa. Teve de ser um pequeno almoço, o que já é ilustrativo do interesse que tinham em nós. E houve um gestor que nos interrompeu e disse: “Ouçam, isto vai ser uma conversa de marketing, em que nos vão vender sonhos cor-de-rosa? É que se for para isso eu vou-me embora”. Então decidimos começar pelos problemas, pelos riscos, falámos de tudo – e, depois, notámos que alguns desses investidores finlandeses, que estavam nessa sala, acabaram por investir na dívida portuguesa. Foi em maio de 2013.

Maio de 2013? Passado algumas semanas viria o “verão quente” com a demissão “irrevogável” de Paulo Portas…
Sim, nós tínhamos acabado de aterrar após um roadshow na Califórnia e dá-se a demissão de Vítor Gaspar. Claro que logo recebemos telefonemas de investidores que nos perguntavam: “Então? Demitiu-se o líder do partido parceiro de coligação? Vocês estiveram aqui e não nos avisaram que isto podia acontecer… O que é que se passou aqui?”. Foi um grande recuo naquele trabalho de reconstrução de credibilidade, porque o pior para os investidores é falta de previsibilidade. E aquilo era um risco que não era, de todo, esperado.

Nunca foi tema?
Nas viagens que fazíamos alertávamos para vários riscos, mas não para aquele. Talvez em 2012 pudéssemos ter falado um pouco de riscos políticos, na coligação, mas não em 2013. Depois houve aquela negociação, liderada pelo Presidente da República, para um governo em que todos os partidos participassem, para tentar concluir o programa de ajustamento, etc… Foi uma altura de muita instabilidade, que gerou muita apreensão entre os investidores e os juros da dívida dispararam novamente. E nós ao telefone, a tentar explicar…

O que é que diziam?
No fundo tentávamos dar aos investidores uma forma de pensar sobre o problema, mais do que outra coisa. Fazíamos a “árvore” das várias alternativas possíveis, aquilo que se falava, aquilo que se dizia que podia acontecer. E a probabilidade de cada um desses cenários. E cheguei a ter investidores que me pediam para falar com analistas políticos – aliás, eles falavam com vários, até falavam com deputados. De vários partidos…

"No fundo, tentávamos dar aos investidores uma forma de pensar sobre o problema, mais do que outra coisa. Cheguei a ter investidores que me pediam para falar com analistas políticos – aliás, eles falavam com vários, até falavam com deputados. De vários partidos..."

Para tentar formar a opinião deles, além daquilo que vocês lhes diziam?
Sim, por exemplo na crise da TSU aquela manifestação enorme que houve, comentei com um investidor que a insatisfação que se sentia em Portugal era tão generalizada que até a minha mãe tinha ido à manifestação. Depois disso, em várias ocasiões me perguntavam se a minha mãe andava a ir a muitas manifestações… (risos) Não nos podemos esquecer que estes investidores têm de ir aos comités de investimento, explicar porque é que querem fazer (ou porque fizeram) um determinado investimento. Quando já estão investidos têm de explicar o que se está a passar e têm de explicar porque é que se deve manter o investimento. Ou não manter… houve vários que venderam.

Tiveram medo de perder mais…
Venderam. Fizeram mal, mas venderam. Entraram em pânico e venderam. E os que não venderam tiveram de explicar porque é que não se devia vender. Sobretudo no início o nosso trabalho era muito mais convencê-los a não vender a dívida que tinham do que comprarem nova. Principalmente em algumas áreas do globo, onde havia muitas companhias de seguros que tinham obrigações portuguesas e nós tínhamos de os convencer a não vender porque eles ainda tinham muito. E se vendessem isso perturbava o mercado e afugentaria alguns outros investidores que tínhamos alinhavados e que compravam no mercado secundário…

Os agricultores belgas e a dívida portuguesa. “Vocês tencionam pagar isto ou não?”

Em que “áreas do globo” é que isso acontecia mais? Onde é que houve mais esse risco de venda de obrigações?
Em França, em Frankfurt… A dada altura fomos à Bélgica e tínhamos um encontro com uma companhia de seguros que tinha dívida portuguesa, mas havia pouco tempo porque a viagem não tinha sido bem organizada e no final só tínhamos uns 10 minutos para estar com eles antes de correr para não perder o avião. Sentámo-nos e tínhamos três administradores à nossa frente, a quem dissemos que não tínhamos muito tempo, apenas uns minutos – portanto saltámos a apresentação e passámos logo para as perguntas deles. E um deles começou por lembrar-nos que os investimentos na dívida pública portuguesa, em prazos longos, estavam a garantir apólices de seguros de agricultores belgas, portanto queriam saber uma coisa muito simples: “Vocês tencionam pagar isto ou não?”.

O que responderam?
A nossa resposta era explicar aquilo que se estava a fazer, aquilo que o Governo estava a fazer para cumprir as obrigações, explicávamos porque é que achávamos que a dívida era sustentável, como é que a íamos gerir nos anos seguintes… E teremos sido convincentes, porque penso que eles mantiveram o investimento – embora no mercado secundário nós nunca saibamos ao certo o que acontece, só sabemos as coisas que se dizem, os rumores. Só sabemos com exatidão quem são os investidores que entram quando fazemos as emissões sindicadas.

Além das emissões e da evolução dos juros no mercado, como é que conseguiam ler o apetite dos investidores pela dívida portuguesa, a cada momento?
No livro recordo um roadshow em Frankfurt, no final de 2012 ou início de 2013, onde convidámos várias pessoas mas muito pouca gente apareceu. E eu perguntei a um dos que apareceram porque é que tinham vindo tão poucos – e ele respondeu-me: “está aqui pouca gente porque para mim e para os meus colegas investir em Portugal dá risco de despedimento”. Disse ele: “Ainda há poucos meses tivemos de vender as vossas obrigações, forçados pelo conselho de administração ou pelos acionistas, e agora se algum de nós comprar e a coisa correr mal somos despedidos”. E acrescentou que só se iria sentir confortável, pessoalmente, em comprar dívida portuguesa quando aquela mesa estivesse cheia de gente que quisesse comprar, porque “aí já não era problema, porque já não sou só eu”. Era muito difícil.

"Num 'roadshow' em Frankfurt convidámos vários investidores mas muito pouca gente apareceu. E eu perguntei a um dos que apareceram porque é que tinham vindo tão poucos – e ele respondeu-me "está aqui pouca gente porque para mim e para os meus colegas investir em Portugal dá risco de despedimento".

“Os seus filhos? Estão a estudar. E planeiam ficar a trabalhar em Portugal depois?”

E quando é que se começou a ter sinais positivos, de que as coisas poderiam correr bem?
A dada altura fomos a Boston e estive com o chief investment officer de uma gestora de fundos – era um administrador, já com os seus 60 e tal anos, e tinham-lhe corrido bem os investimentos que tinha feito na América Latina, nos anos 90, na altura da crise do México etc. E ele disse-me logo, depois de ouvir o que tínhamos planeado: “o que vai acontecer com vocês é isto, assim, assado, a certa altura vão poder voltar aos leilões e depois volta tudo ao habitual”. Ele fez-nos, em janeiro de 2013, a história toda daquilo que viria a acontecer até meados de 2014, até à saída do programa da troika. Ele já tinha visto tudo aquilo no passado.

E investiu?
Sim, era um investidor bastante relevante para nós. Outro caso engraçado, também nos EUA, em Filadélfia, estivemos com alguém de uma gestora de ativos também já com 70 ou 80 anos que era o dono da gestora, tinha criado a gestora nos anos 80. Eu comecei a fazer a apresentação e ele interrompeu-me e disse: “Ouça, a apresentação depois faz aqui aos meus colegas. Responda-me só a isto: quando acabar o seu trabalho no IGCP vai continuar a trabalhar em Portugal ou vai voltar a ir para fora? E os seus filhos? Estão a estudar e planeiam ficar a trabalhar em Portugal depois?”

Queria aferir a viabilidade do país…
Exatamente, através de perguntas pessoais que me estava a fazer. Eu respondi às duas perguntas e ele agradeceu e foi-se embora. Foi um fundo que investiu muito dinheiro em Portugal, sobretudo no final de 2013. Muito, mesmo. Sabe que quando eu fui convidado para o IGCP tentei preparar-me, falar com pessoas que tivessem vivido situações parecidas. E falei com um veterano dos mercados, que tinha sido da Solomon Brothers nos anos 80, 90 e pediu-me para lhe dizer como seria o meu “pitch”. No final, ele disse: “muito bem, mas falta aí uma coisa: falta esperança, falta falar de onde virá o crescimento, falta dizer quais seriam os primeiros rebentos de crescimento”. E foi aí que, logo de início, eu, a Cristina [Casalinho] nos agarrámos muito à questão das exportações, que foi uma grande diferença entre Portugal e a Grécia. Tentámos mostrar que Portugal já não era um país que exportava mão de obra barata.

Cristina Casalinho foi braço-direito de João Moreira Rato no IGCP e acabou por suceder-lhe na presidência (onde se mantém).

ANTÓNIO COTRIM/LUSA

E as agências de rating?
Também eram um interlocutor importante e difícil, porque em vários relatórios que eles nos mandavam – eles mandavam-nos as versões preliminares antes de publicarem – tinham várias frases que não eram suportadas em factos. Eram preconceitos.

Lembra-se de algum exemplo?
Por exemplo, referências à pouca durabilidade das reformas, no sentido de não serem cumpridas até ao fim, voltar-se atrás nas reformas. Nós líamos isso e questionávamos se não seria baseado em preconceitos… Era porquê? Porque somos um país do sul da Europa? É por razões culturais? O que é? E eles aí recuavam e retiravam as frases. Mesmo assim, a Cristina Casalinho, que levava estas coisas muito a peito, um dia em Londres em que ela foi muito agressiva com uma pessoa, na defesa do país. Foi alguém que estava a dizer que Portugal não tinha nada a ver com a Irlanda, de forma que ela achou injusta – aliás, era injusta.

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