Depois de dois momentos consecutivos em que tinha surpreendido pela inesperada audácia na retirada dos estímulos, em fevereiro e em março, a presidente do BCE veio nesta quinta-feira fazer exatamente o contrário: apesar de admitir que a inflação irá continuar a intensificar-se “no médio prazo”, Christine Lagarde passou uma mensagem mais suave em relação à forma como a autoridade monetária planeia avançar para o fim das intervenções no mercado de dívida e, depois, subir as taxas de juro. O BCE reconhece que a guerra na Ucrânia está a ser muito danosa para a economia europeia mas o temível conceito de “estagflação” continua fora do vocabulário da presidente do banco central.
Através de videoconferência, porque há vários dias está doente com Covid-19, Christine Lagarde reconheceu que, do lado do crescimento económico, no horizonte predominam os riscos negativos, que “aumentaram substancialmente” nas últimas semanas. “A guerra [na Ucrânia] já está a pesar muito na confiança dos empresários”, notou Lagarde, sendo esse apenas um dos fatores que demonstram o “impacto severo” que a “agressão russa na Ucrânia” está a ter na economia da zona euro.
Em simultâneo, com base nos indicadores utilizados pelo BCE, Lagarde reconheceu que é previsível que os preços de energia continuem elevados “no médio prazo” – depois desse médio prazo, não especificado, os preços podem moderar-se “até certo ponto“. Neste contexto, sendo a energia o principal impulsionador da inflação, é expectável que a taxa de aceleração dos preços continue elevada nos próximos meses, pressionando os orçamentos das famílias e tornando-se mais generalizada nas economias – exatamente aquilo que o BCE tem de evitar, nos termos do seu mandato.
Apesar de estes fenómenos estarem a acontecer em simultâneo, a presidente do BCE não fala em estagflação, o conceito económico que descreve a situação perigosa em que existe uma inflação elevada e um crescimento económico baixo ou nulo. “Lagarde evitou chamar àquilo que vivemos um cenário de estagflação mas, na nossa opinião, se um bicho caminha como um pato e grasna como um pato, então… já se percebe onde queremos chegar“, ironizou Carsten Brzeski, principal responsável pela pesquisa macroeconómica global do banco holandês ING, em nota de análise enviada aos investidores.
Mantendo as taxas de juro em mínimos históricos – incluindo a taxa negativa de -0,5% nos depósitos –, o BCE mostrou estar muito receoso em relação ao impacto da guerra na economia e, por isso, deixou no ar a indicação de que, em junho, deverá haver novas revisões desfavoráveis das estimativas para o crescimento e inflação. A maior evidência de que foi essa a perceção que se gerou entre os investidores é que a cotação do euro-dólar derrapou imediatamente para menos de 1,08 dólares, regressando aos níveis mais pessimistas que marcaram as primeiras semanas da pandemia de Covid-19.
Pressão sobre juros de Portugal e dos “periféricos”? Lagarde lança aviso aos especuladores
Estando ela própria infetada com o novo coronavírus, Christine Lagarde tentou fazer da reunião (à distância) desta quinta-feira apenas um momento para “marcar calendário”, virando as atenções para essa próxima reunião de junho (dia 9), em que se admite que o BCE possa rever as ferramentas de política monetária, com base num conjunto fresco de projeções económicas trimestrais.
Porém, consciente de que ainda faltam várias semanas até lá e que, nos mercados financeiros, as tensões podem formar-se muito rapidamente, Christine Lagarde avisou os possíveis especuladores contra a dívida pública europeia que, embora o BCE ainda não tenha construído um possível novo mecanismo para ser ativado caso haja uma nova divergência (excessiva) dos juros dos diferentes países da zona euro. Mas “somos capazes de o fazer, muito rapidamente, se for necessário“, garantiu a presidente do BCE.
O que está em causa é que foi noticiado há vários dias que o BCE estaria a estudar a criação de uma nova ferramenta que poderia ser ativada caso os juros da dívida de alguns países – como os de Portugal e dos outros países da chamada “periferia” da zona euro – se dilatassem de forma rápida e em divergência em relação às taxas de juro da Alemanha, que são a referência “sem risco” na união monetária.
Ao contrário do que alguns analistas previam antes da reunião desta quinta-feira, o BCE não apresentou qualquer mecanismo concreto e, na sessão de perguntas e respostas com jornalistas esta quinta-feira, Christine Lagarde preferiu repetir conceitos como “flexibilidade” e “opcionalidade”, fugindo a dar detalhes concretos sobre como é que esse possível novo instrumento poderá funcionar.
A francesa deixou um aviso: se for necessário, “o BCE consegue lançar esse instrumento muito rapidamente”. E acrescentou Lagarde: “Penso que demonstrámos que somos capazes de agir com grande rapidez com aquilo que fizemos entre 12 e 18 de março de 2020″ – numa alusão à criação do programa de compras de dívida para responder à emergência pandémica, o PEPP, lançado pelo BCE poucos dias depois da Covid-19 ser oficialmente classificada como uma pandemia.
Mas mesmo esse aviso, para já, parece não ter sido muito levado a sério nos mercados, a julgar pelo aumento das taxas de juro de países como Portugal logo após a conferência de imprensa de Christine Lagarde. As taxas de juro a 10 anos das Obrigações do Tesouro português subiram para 1,85%, em máximos desde finais de 2018, com os juros de Espanha no mesmo prazo também a subirem para 1,78% e a dívida de Itália com taxas de quase 2,5%.
“Consenso crescente” no BCE para subida das taxas de juro ainda no terceiro trimestre
O agravamento dos juros tem, na ótica dos analistas do Commerzbank, uma explicação: “hesitação” por parte do BCE. Para o banco alemão, “a atitude de esperar para ver que estamos a ver, da parte do BCE, é arriscada”, isto porque “quanto mais tempo o BCE se mantém agarrado à sua política ultra-acomodatícia, mais irão subir as expectativas de inflação e maior será o risco de que a inflação mais elevada se enraize, de forma permanente“.
“Infelizmente, a inflação veio para ficar”, lamenta o economista-chefe Jörg Krämer, do Commerzbank, e o BCE está a ser mais lento a reagir do que os outros bancos centrais – como a Reserva Federal dos EUA e o Banco de Inglaterra, entre vários outros – o que pode criar problemas no futuro. Porquê? Porque como numa qualquer infeção respiratória comum, se a medicação não for dada na altura certa, cria-se o risco de ter de se administrar uma dose mais forte, mais tarde, provocando um impacto mais recessivo nas economias.
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Ainda assim, acrescenta o Commerzbank, “continua a ser previsível que o BCE termine as compras de ativos no verão e, depois, suba a taxa dos depósitos uma vez no terceiro trimestre, outra no quarto trimestre e mais outra no primeiro trimestre de 2023 – em 25 pontos-base de cada vez”. A confirmar-se esta projeção de Jörg Krämer, isso significaria o fim dos juros negativos na zona euro ainda antes de terminar 2022, um cenário de subida de juros este ano que ainda em novembro Christine Lagarde considerava “muito improvável” quando visitou Lisboa.
Menos de seis meses volvidos, parece quase certo que essa primeira subida das taxas de juro na zona euro virá não só antes do final do ano como poderá vir ainda no terceiro trimestre. Já depois do final da conferência de imprensa do BCE, “fontes conhecedoras do processo” indicaram à agência financeira Bloomberg que “está a formar-se um consenso crescente” entre os membros do Conselho do BCE no sentido de se avançar para uma mexida nas taxas de juro algures entre julho e setembro.